Oswaldo de Camargo é uma referência do movimento negro brasileiro, no qual começou a militar aos dezenove anos. Agora, aos 84, o poeta lida com uma questão pessoal. Seu segundo filho, Sérgio, atual presidente da Fundação Palmares, tem ganhado manchetes por deslegitimar a luta antirracista e sugerir acabar com o “vitimismo” do Dia da Consciência Negra. Para Sérgio, a militância negra brasileira é uma “escória maldita”.
Depois de algum tempo evitando comentar as posições do rebento que trabalha para o deprimente desgoverno de Jair Bolsonaro, Oswaldo tratou do assunto em uma entrevista à Folha de S. Paulo na última semana, por ocasião do relançamento de sua obra. “Seu caminho não é o meu. Pai sempre será pai; filho, filho”, disse. “A única fórmula para saber minha posição diante da gestão do Sérgio é ler meus livros. Eu os escrevi sem me vigiar.”
minúsculas
A afirmação de Oswaldo Camargo oferece uma boa oportunidade para comentar a figura de uma das autoras mais celebradas do catálogo da Elefante. Pois falar de Gloria Jean Watkins é falar de sua obra. Por isso, ao adotar o pseudônimo pelo qual tornou-se conhecida, ela não só resolveu homenagear sua bisavó, Bell Blair Hooks, como quis firmá-lo minúsculas — para que sua pessoa fosse quem menos importasse diante de suas ideias. A única fórmula para saber mesmo quem é bell hooks, portanto, é ler seus livros.
Neste artigo do The New York Times, Min Jin Lee conta que frequentava as aulas de Introdução à Literatura Afro-estadunidense e de A Mulher Estadunidense e Sua Ficção, em Yale, ambas ministradas por uma professora chamada Gloria Watkins. Tocada pelas ideias ouvidas na universidade, foi atrás de pesquisar de onde vinham e encontrou E eu não sou uma mulher?, assinado com o nome de bell hooks.
Aquele texto começou a nascer quando Gloria tinha ainda dezenove anos, mas o livro (o primeiro que publicou) apareceria apenas uma década depois. Era o início dos anos 1980 e, desde então, bell hooks se consolidou como uma das principais vozes para debater raça, gênero e classe, passando por temas que tocam a arte, a educação e a cultura. Em mais de trinta livros, construiu uma obra cuja força tem ganhado o público brasileiro nos últimos anos.
ensaiando…
“Quando me candidatei a uma vaga de docente em Yale, fiz isso porque se tratava de uma nomeação conjunta com os estudos afro-estadunidenses. Eu não teria aceitado um trabalho somente no departamento de inglês. Acreditava que iria encontrar nos estudos afro-estadunidenses um lugar dentro da universidade onde a pesquisa com foco em pessoas negras seria inequivocamente considerada valiosa como uma parte da produção de conhecimento — tão necessária quanto qualquer outro trabalho.”
Esse é um trecho do livro Erguer a voz, publicado originalmente em 1989 e lançado pela Elefante no ano passado. É uma mostra de como a autora parte de suas experiências pessoais para teorizar sobre racismo, feminismo, política, educação. É nessa mesma coleção de ensaios que ela reflete, por exemplo, sobre o uso do pseudônimo, pontuando que o culto à personalidade às vezes tira o foco do conteúdo do debate. Isso porque, como defende bell hooks, o que se diz muitas vezes importa mais do que quem diz.
Publicamos, também em 2019, Anseios, que apareceu pela primeira vez em 1990. Aqui, a autora junta textos que vão passar por autores de referência como Toni Morrison e Malcolm X, além de longas-metragens como Faça a Coisa Certa, de Spike Lee — que, segundo hooks, “abriu um novo espaço cultural de diálogo, o que não quer dizer que seja um espaço inerentemente contra-hegemônico. Apenas uma prática política radical e progressista poderá fazer desse espaço um local de resistência cultural”.
Para fechar nosso trio bell hooks publicado em 2019, Olhares negros, de 1992, segue a pegada das narrativas culturais jogando luz na forma como as pessoas negras são representadas na literatura, na música, na televisão e no cinema. Temos visto com alegria os caminhos trilhados por este livro no Brasil: a capa já apareceu em videoclipe e peça de teatro — sinal de que está enriquecendo reflexões sobre raça e representação por aqui, e também tornando-se ícone cultural de parte do movimento negro.
…e ensinando
Já está aberta a pré-venda de Ensinando pensamento crítico, livro que faz parte de uma série escrita por bell hooks chamada Trilogia do Ensino. Como o próprio nome já diz, aqui os textos mergulham em temas relacionados principalmente à educação, refletindo sobre o modelo da sala de aula e possíveis formas de aprimorar a relação entre professores e estudantes, muito tocada inclusive pelo legado de Paulo Freire.
“A escola não deveria ser um lugar onde os estudantes são doutrinados para apoiar o patriarcado capitalista, supremacista branco e imperialista, mas sim onde aprendam a abrir suas mentes e se engajem em estudos rigorosos para pensar criticamente”, diz o prefácio da nossa edição, escrito por Sérgio Haddad, da ONG Ação Educativa, que apoia a publicação.
E que bom que esse gás nas traduções e publicações de bell hooks tem garantido a presença de suas ideias nos mais variados temas da discussão brasileira. É difícil imaginar uma conversa sobre algum tema da política, da sociedade e da cultura nacionais atuais que não possa ser enriquecida com as opiniões e pontos de vista da autora.
Quando um portal adiciona mulheres negras a seu quadro de colunistas; quando se pensa em livros para crianças entenderem o que é o racismo; quando se trata da insurgência do pensamento feminista negro ou da necessidade de se superar o feminismo burguês; quando se pensa o racismo a partir de um programa de televisão; quando se fala de amor; quando se reflete sobre o identitarismo; quando se traz o recorte social para a pandemia; quando se conversa sobre diálogo em tempo de redes sociais…
O nome bell hooks está lá, sempre. E que bom.