Por Cecília Floresta
Prefácio de Zami: uma nova grafia do meu nome
Audre,
Seu nome ainda ecoa em nossa boca e em nossos ouvidos, resiste forte em cores variadas e cruza oceanos para o nosso encontro. É para a sua memória ancestral que dedico esta carta, uma forma de dizer que eu me lembro, que nós nos lembramos. Pois suas palavras tornaram possíveis minha vida e a de muitas pessoas como eu, de variadas formas. E não esqueceremos.
Sempre que tenho contato com sua escrita, tão sábia, generosa e corajosa, eu me recordo do que me faz retornar a você quando algo me falta, mesmo que esse algo ainda não tenha nome. Sua voz está entre aquelas que me ensinaram a lembrar, que me ensinaram que escrever é lembrar, que lembrar é não ceder ou, nas suas palavras, impedir que eles nos peguem.
Então agradeço imenso a você e a todas as outras pessoas que tornaram possíveis existências como a minha dentro de um escopo literário ou no íntimo das palavras ainda não ditas. Que encararam e encaram como missão contar histórias sobre a gente, pois as histórias sobrevivem ao tempo, as histórias sobrevivem. Foi uma viagem incrível encontrar em Zami fragmentos de um tempo cujos momentos são quase sempre apresentados sob o olhar dos outros, aqueles outros em quem sua mãe te ensinou a não confiar. Por isso, vislumbrar a história pelos seus olhos me relembrou também quantos relatos e visões existem por aí que se perdem num propósito perverso de atribuir ao mundo a rigidez do único. E que presente inestimável, mais um, você nos deu quando se colocou o desafio de elaborar as próprias memórias em uma porção de histórias que contam tanto sobre a gente, que poderiam ser minhas — e, em grande medida, são.
Com Zami relembrei onde começa e não termina a minha tríade ancestral “avó mãe filha” e senti uma saudade imensa de casa, a mesma casa que aqueles outros planejavam tirar de nós e para a qual sempre retornamos quando lembramos de onde viemos, do que é feita a nossa substância, quando acessamos nossas histórias mais íntimas guardadas na memória ou quando inventamos nossas próprias narrativas, quando nos voltamos para as nossas mães internas, externas, escolhidas, destinadas.
Minha mãe também soube e sabe muito bem “transformar as necessidades em virtudes”, uma sabedoria em grande parte responsável por nossa sobrevivência, para que hoje eu tivesse escolha. Minha mãe também não me deixava ver as lágrimas dela, também não. O choro, os acessos, os sentimentos vazados do peito para o mundo deviam ser privilégios de outras pessoas, não da minha mãe. Também me lembrei de que eu, no início dos tempos curtos que chamamos de épocas da vida, no fim de um dia difícil ou na soleira de alguma porta em despedida, também não me deixei verter muitas lágrimas. Aprendi a esconder minha água de mim muito cedo por não querer preocupar a mãe, vendo suas tantas outras preocupações, tomando talvez como exemplo seus olhos secos diante de tudo, das violências diárias que ela sofria. Hoje ainda me vejo relutante em não poupar os olhos do sal, mas certamente não ao acessar estas memórias.
Temperos também são aliados das minhas lembranças, Lorde, os cheiros, os gostos, os prenúncios, o pilão sempre ali, a postos na cozinha. Lá em casa era cebola, alho e coentro, colorau e pimenta-do-reino, mais tarde dendê, azeite e uma porção de pós, o pilão ainda reinando. O olfato, o gosto milenar e ancestral na boca, o cuscuz da minha mãe, a galinha guisada da minha vó — os sentidos despertam a gente praqueles caminhos que nossas pernas nunca deixaram de cruzar.
Minha mãe também traçou comigo as primeiras letras, numa tarefa cúmplice de garantia de futuro. Foi com um gibi, eu me lembro, que perdeu a capa em algum lugar e ainda assim servia de rumo pros meus olhos, que primeiro memorizaram e depois reproduziram, para então abrir caminho a uma curiosidade que nunca cessou. Lembro do sorriso dela dizendo bem devagar as palavras dos balões. A alegria em nossos olhos quando enfim aprendi a desvendar sozinha aquelas formas no papel que me acompanhariam muito tempo ainda, que me abririam muitos caminhos mais tarde, como foram abertos os seus caminhos.
Mas, muito tempo depois de aprender a decodificá-las, ainda assim eu “não tinha palavras para o racismo”, como você confessou não ter, nos idos da adolescência. E em muitas ocasiões ainda não temos. O racismo, afinal, esse sistema muito bem elaborado, que assume as mais variadas formas, que se transforma infinitamente com o único fim de subalternizar, também de variadas formas. Mas aqui não é meu desejo me ocupar com a complexidade desse sistema, e sim te agradecer por nos ter dado muitas das palavras que não definem o racismo, um algo disforme, mas que nos permitem entendê-lo, esmiuçá-lo, pois só assim, por meio do entendimento e de palavras como as suas, é que a gente consegue ir além de qualquer fronteira, dor ou subjugação que perdem hoje o seu lugar, amanhã e depois.
O seu primeiro amor na adolescência e aqueles que se seguiram, cujos cheiros e gostos e movimentos de que precisamos pra caber uma na outra são elaborados por sua prosa profundamente poética e sensível, me fizeram lembrar dos meus próprios amores e da ausência de histórias sobre nós, me fizeram ressignificar o amor que sinto e o que esse amor significa pra mim, não pros outros, que o podem ler como ameaça. Mas então você também me fez lembrar que esse amor que sinto é visto assim por suas inúmeras qualidades transgressoras. Nós transgredimos, Lorde, transformamos e enfim não cedemos, pois estamos aqui, nós estamos, e suas memórias me remeteram a um reconhecimento muito íntimo. Me pergunto quanto eu teria me poupado de tantos tipos de sofrimento se tivesse ouvido da boca de alguém, lido em algum lugar, visto na TV alguma história de primeiro amor como a sua, e dos amores que vieram depois, se fosse possível acessar mais histórias de pessoas parecidas comigo, as histórias das minhas irmãs. Um algo tão poderoso, o reconhecimento, que mesmo hoje, já munida de tantas histórias, ainda desperta espanto, o sal no fundo dos olhos.
Daí testemunhar pelo seu olhar as vestimentas das butches e femmes e seus códigos meio duros, meio rígidos, numa festa, seu incômodo de ter que se incluir em uma ou outra categoria, me ligar na sabedoria do corpo que sabe aonde está indo sem se importar em conduzir ou ser conduzido, ou me entristecer com os términos catastróficos de relacionamentos seus, os caminhos percorridos por gerações de mulheres e mulheres lésbicas e sapatões pretas que me precederam, Lorde. Essas sim são fontes de força e conhecimento pra mim, pras minhas irmãs — aprender com as mais velhas, da boca, das memórias delas. Não à toa, certas histórias são silenciadas, afinal, como verdadeiras “ameaça[s] ao status quo”.
O amor que sentimos, alheio a tudo o que é deles, sendo nosso apenas, foi um amor que tivemos de aprender numa solidão involuntária, compulsória — isso também você nos lembra aqui. Porque o que nos ensinaram foi esse amor do outro, um amor que não tem as cores que temos, que não guarda nossos desejos, que não permite que corpos como os nossos se toquem, se encontrem, nossos corpos cujo som do encontro “é a prece de todas as que são diferentes e de todas as irmãs”. Esse amor que tivemos de aprender sós porque ninguém nos ensinou e por isso mesmo guarda uma qualidade revolucionária, de inerência mesmo, um amor que escolhemos. Veja, num mundo em que o diverso ganha em número daquilo que ainda se considera padrão, as contas são muito simples, a gente só pode pensar em medo. E não no nosso medo, mas no medo do outro em seu desejo pela ordem da qual resulta poder e que, portanto, nos vê como ameaça ao “mundo civilizado”. Ainda assim, você vislumbrou tudo isso do alto da sabedoria de que “nosso lugar [é] a própria morada da diferença, e não a segurança de uma diferença específica”, e isso lá nos idos dos anos 1950, perscrutando com seus olhos — que, imaginando daqui, não deviam parar um minuto — a “atmosfera da presença de outras lésbicas”.
Ser mulheres juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser gays juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser negros juntos não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser negras juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser lésbicas negras juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Admitir que somos diferentes, acolher as nossas diferenças, aquilo que nos afasta e inevitavelmente nos aproxima, e procurar compreendê-las mutuamente são alguns dos seus grandes ensinamentos. Se há algo que possui esse tom, esse algo é o amor que inventamos dia após dia, por nós mesmas, pelas nossas irmãs, por tudo aquilo que conseguimos ser num mundo em que “muitas de nós nem sequer sobreviveram”.
Então, evocar o amor das zami, sempre vivas naquela lenda de Granada, é recorrer a esse amor inventado por nós, esse mesmo amor que nasce sem qualquer outro propósito a não ser a sobrevivência física, psicológica, espiritual, um amor que não serve a nada, mas que nutre nossas relações. O amor das zami, que pra mim representa todo tipo de amor do qual não abrimos mão toda vez que nos lembramos. Nós precisamos de Zami, das memórias que compõem este livro, pois são memórias e histórias que nos atravessam, ainda que não sejam contadas ou sejam silenciadas por pudor, por vergonha imputada, em nome da ordem, porque insistem em dizer e tentar nos convencer de que aquilo que somos não é certo ou não importa. Zami guarda histórias pelas quais almejamos porque são nossas histórias.
Lorde, você nos ensina a encontrar voz e a saber usá-la, a buscar aquelas palavras das quais precisamos e desejamos. Que presente inestimável te encontrar nesta vida, te encontrar mais uma vez aqui. Zami, pensei, ao chegar ao fim de suas páginas já com saudades, é um dos galhos daquelas árvores que a pássara sem pés tanto procurou, pois aqui, no abrigo de suas folhagens, pousamos em segurança como no colo de nossas mães, todas elas.
Com amor,
Cecília Floresta, zami