Por Margareth Rago
Publicado no prefácio de Devir quilomba

 

“Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. Ouço muito”, diz Conceição Evaristo na epígrafe escolhida por Mariléa de Almeida para este livro sobre as práticas femininas antirracistas das mulheres quilombolas, no Rio de Janeiro, em nossa atualidade. Empresto a frase dessa famosa escritora brasileira para dizer que gostaria mesmo é de continuar ouvindo os relatos que nos conta a historiadora feminista autora desta tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2018, e agora transformada em livro. Não é novidade dizer, além do mais, que, inúmeras vezes, a orientadora mais aprende do que orienta. Assim é…

Nas últimas décadas, tem crescido de maneira notável o número de trabalhos de pesquisa publicados em artigos e livros que dão visibilidade às mulheres, sobretudo às mulheres negras, destacando a maneira pela qual transformam o cotidiano, subvertem as interpretações naturalizadas, questionam os costumes tradicionais e inovam com suas práticas libertárias e seus saberes singulares. Sem dúvida, graças à crescente pressão dos movimentos feministas em sua multiplicidade, que denunciam veementemente a colonialidade do poder e da vida, que se insurgem contra a violência de gênero, a misoginia e o racismo estrutural e pressionam pela feminização do imaginário social, ou seja, por outra relação com a cultura feminina também em profunda mutação, passamos a contar com a emergência de histórias protagonizadas por personagens antes silenciadas pela historiografia.

Desse modo, outros passados entram em cena, trazendo novas paisagens e figuras menos conhecidas, deixando claro que já não nos interessa uma história que sirva para garantir o jogo consolante do espelho dos vencedores, em geral homens brancos, heterossexuais e poderosos. Excluídas das narrativas históricas desde sempre, mas reconhecidas como “guardiãs da memória”, como observa Michelle Perrot, as mulheres sabem que ter passado é uma necessidade pessoal e coletiva que permite o fortalecimento dos vínculos pessoais e subjetivos, tanto individualmente quanto nos grupos que reivindicam o direito à própria vida. Sabem também que aos regimes fascistas interessa a produção de indivíduos atomizados, sem passado e sem referências históricas que os ancorem e unam, transformados em corpos vulneráveis facilmente capturados pelo poder. Desmobilizam-se ou neutralizam-se, assim, possíveis ações coletivas transformadoras.

Escrevendo a história a contrapelo, para lembrarmos dos apelos de Walter Benjamin, o presente estudo de Mariléa de Almeida nos apresenta as mulheres quilombolas no Rio de Janeiro, que, com seus saberes diferenciados, introduzem outros modos de pensar e de agir, abrindo poderosas linhas de fuga em direção a um “devir quilomba”. A historiadora destaca a diferença do fazer político dessas quilombolas, fazer que ultrapassa as dimensões tradicionais do que conhecemos como ação política na esfera pública, marcadamente masculina, objetiva e racional. Expandindo-se para domínios que envolvem as subjetividades, as emoções, os sentimentos, as práticas quilombolas femininas possibilitam a emergência do que a autora conceitualiza, na esteira de Espinosa e Deleuze, como “territórios de afetos”.

Assumindo a abordagem feminista que recusa a oposição binária entre corpo e alma, razão e emoção, público e privado, entre outras, a historiadora aproxima-se da “virada afetiva”, que nos Estados Unidos, desde a década de 1990, e no Brasil, mais recentemente, tem sido privilegiada na produção do conhecimento, valorizando o poder do afeto nas relações intersubjetivas, sociais e raciais. Nesse sentido, é com muita emoção que Mariléa de Almeida nos traz as experiências de tristeza e de dor diante das situações de violência racial sofridas por quilombolas, mas também aponta para a potência transformadora dos afetos positivos que emanam das falas de suas inúmeras entrevistadas, especialmente voltadas para a construção do comum, cada vez mais ameaçado pelas políticas neoliberais.

Certamente há que se levar em conta a delicadeza da sensibilidade da própria autora, para além de seu excelente domínio teórico; com sua escrita poética, ela é capaz de feminizar seu próprio trabalho acadêmico, radicalizando a luta por subverter a normatividade que nos é incessantemente imposta, inclusive na construção da discursividade. Assim, Mariléa de Almeida parte para reconstituir genealogias, conduzindo-nos para regiões desconhecidas, muitas vezes pouco percebidas, e para situações que acontecem cotidianamente aos nossos olhos, mas que não vemos, o que remete ao que aponta Foucault quando afirma que o trabalho da filosofia é “tornar visível o que é visível”.

Aqui, trata-se do trabalho da historiadora feminista negra, preocupada com as questões de gênero e com a denúncia da violência do racismo estrutural — que, aliás, conhece de perto —, dedicada a desnaturalizar as epistemologias hegemônicas, a questionar recorrentes interpretações e concepções coloniais e a evidenciar as relações de poder constitutivas dos saberes. Ao mesmo tempo, com muita sensibilidade, não deixa de lado a memória da própria experiência de vida familiar desde a infância, chegando ao contato com o ativismo estadunidense do movimento Black Lives Matter, que pôde conhecer por ocasião de seu estágio doutoral na Universidade Columbia, em Nova York. Poderíamos pensar, nesse sentido, na dimensão autobiográfica deste texto, que também pode ser lido como um acerto de contas inadiável diante de um passado pessoal e coletivo que continua presente e sufocante, marcando o corpo e a alma de várias gerações.

A partir de entrevistas com 48 quilombolas, na maioria mulheres negras cisgênero, de idades, formações acadêmicas, filiações políticas e práticas religiosas diferentes, a historiadora feminista mapeia os problemas centrais experimentados nos quilombos, constantemente ameaçados nas últimas décadas tanto pelo racismo estrutural que caracteriza a sociedade brasileira desde sempre, como pelas capturas da racionalidade neoliberal e, ao lado delas, das forças religiosas retrógradas que se apresentam como a única possibilidade de salvação neste mundo.

Valendo-se das teorizações de Foucault, Mariléa de Almeida aponta sobretudo as insubordinações e as resistências das(os) quilombolas, também na forma de contracondutas, como a recusa a serem governadas(os) ou conduzidas(os) pelo poder patriarcal. Aqui, a autora destaca as estratégias que resultam numa “feminização dos quilombos”, nas maneiras femininas de fazer política diante das capturas do capitalismo empresarial desde a década de 1980, profundamente desagregador ao promover diversos mecanismos normativos pautados pela lógica do mercado. Diante dos inúmeros problemas vivenciados por esses grupos, como alcoolismo, prisões e mortes, muitas mulheres negras, observa a autora, passam a garantir a sobrevivência de suas famílias e comunidades. Portanto, o cuidado de si e o cuidado do outro tornam-se fundamentais, como se pode constatar na fala de uma das entrevistadas, quando afirma: “Eu cuidando aqui, dentro de casa, e cuidando no terreiro é a mesma coisa” (p. 197), e, nesse sentido, podem ser percebidos como prática política diferenciada.

Considero este trabalho de pesquisa necessário para nos aproximarmos das comunidades quilombolas no presente. Discutindo questões fundamentais que marcam a atualidade, Mariléa de Almeida aborda as ameaças que afetam os quilombos, como o neoliberalismo e o poder pastoral. Analisando a governamentalidade neoliberal, que promove a figura do(a) “empresário(a) de si mesmo(a)”, isto é, do sujeito neoliberal competitivo e individualista, a autora mostra a busca pelo “devir quilomba”, caracterizado pelo investimento em práticas que visam a outras formas de existência, mais solidárias, humanizadas e filóginas, ou seja, que valorizam o que de muito positivo oferece a experiência das mulheres.

Ao leitor e à leitora, insisto no convite para conhecer mais de perto esse universo tão potente, constantemente ameaçado, mas rico de experiências libertárias que apontam para a construção de um mundo mais justo, solidário e livre.

 

Margareth Rago é professora titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora de diversos livros e artigos, entre eles Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista – Brasil, 1890-1930 (Paz & Terra, 2009).

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