Por João Peres*
Eis que a história se repete. Tal como se sabia, repete-se na forma de tragédia. Na semana em que a imprensa brasileira decidiu ignorar a memória sobre os vinte anos do chamado “massacre de Corumbiara”, outra matança bateu-nos à porta. Chacina, execuções em série, massacre: o nome, neste momento, não é o mais importante. Nevrálgico é reconhecer que ocorreu de novo. Sujamos nossas mãos com sangue. E tornaremos a sujá-las enquanto nos mantivermos nessa ignorância histórica.
O que um caso ocorrido na Grande São Paulo em 13 de agosto de 2015 tem a ver com um registrado em 9 de agosto de 1995 em Rondônia? Tudo. Mudam as formas, os lugares, as vítimas. Mantêm-se o modo de operação e a chancela social, quase uma tara, para episódios em que a morte se banaliza.
A hipótese mais provável para o caso de Osasco e Barueri, com 18 mortes, é o revide da Polícia Militar ao assassinato de um integrante da corporação.
Como de outras vezes, evoca-se o perfil das vítimas – cor de pele, histórico policial, região de moradia –, como se fosse esta a questão central. Não é preciso ganhar úlceras lendo comentários nos portais de notícias para saber que estão apinhados de defesas da execução de supostos bandidos. É a maneira que uma sociedade encontra para externar seu apreço pela barbárie. É como se tivéssemos um arcabouço legal que outorga à PM o poder de definir pela pena de morte dos cidadãos.
Impossível tratar o caso da última semana como um episódio isolado. Temos uma sociedade que todos os dias mata. Mata muito. Mata de forma desigual. O Mapa da Violência computa 880 mil vítimas de armas de fogo entre 1980 e 2012. A taxa anual de homicídios avançou 387% no período. Quase 25 mil jovens entre 15 e 29 anos são assassinados a cada 365 dias.
Os números mostram que não morremos por igual. Em alguns estados, a chance de um negro ser vitimado é 1.000% maior que a de um branco. De 2002 a 2012, a taxa de homicídios entre brancos passou de 14,5 para 11,8 por cem mil habitantes, enquanto a de negros avançou de 24,9 para 28,5. É a expressão estatística do aval que demos para a naturalização da violência. É a autorização que firmamos para que a história se repita.
Há vinte anos, em um agosto como esse, doze pessoas foram mortas na fazenda Santa Elina, em Corumbiara, Rondônia. Nove sem-terra, dois policiais e um rapaz não identificado são o saldo de se tratar um problema social com força bélica. Após o episódio, mobilizaram-se argumentos para dizer que os posseiros estavam errados por invadir uma propriedade privada, como se isso justificasse o resultado. O comandante da PM à época chegou a afirmar que aquela era uma lição que sua corporação havia dado à sociedade rondoniense. De outro lado, cada grupo tratou como especiais os seus mortos, ignorando os alheios, como se houvesse vidas mais e menos importantes.
Durante o julgamento, realizado em 2000, em Porto Velho, o promotor Tarcísio Leite Mattos fez história ao defender o direito dos policiais ao extermínio. “Ou o Brasil acaba com os sem-terra, ou os sem-terra acabam com o Brasil.” Mattos sintetiza a imperfeição de nossas instituições democráticas. Ao longo da carreira, defendeu inúmeras vezes o direito de uma corporação para atuar à margem da legalidade, sem que por isso fosse punido.
O ano de 2015, entendido como desdobramento dos anteriores, é farto em novos exemplos. Temos um presidente da Câmara capaz de controlar uma bancada suprapartidária indiferente a qualquer anseio social e totalmente subordinada aos interesses privados que defende. Temos um ministro da Justiça disposto a fazer aprovar uma legislação contrária a qualquer direito de reivindicação. Temos, a cada um ou dois meses, marchas como a de domingo 16, que contam com segmentos consideráveis que externam desapreço pela democracia.
O caso de Corumbiara evidencia outro traço desta incompletude democrática. O governador de Rondônia à época, o hoje senador Valdir Raupp (PMDB), não se vê obrigado a prestar contas à sociedade. Guarda para si informações que, em verdade, são públicas, avaliando que a preservação da imagem individual é mais importante que a construção da memória coletiva.
Não é diferente do atual governador paulista. Geraldo Alckmin é um notório defensor da chancela para que se faça da violência o principal instrumento de mediação social e, dentro disso, para que a PM mate muito. “Criamos uma força-tarefa com 50 policiais civis, 12 peritos e 8 médicos legistas para que as investigações sejam feitas o mais rápido possível. Não vamos descansar até que os responsáveis sejam presos. Nenhuma hipótese está sendo descartada pelas investigações”, afirmou após o caso da região metropolitana. É sua resposta-padrão. Uma resposta de quem sabe que não será cobrado mais adiante. Pelo contrário, recebeu no ano passado uma estrondosa aprovação eleitoral à política de mão dura seletiva.
A imprensa, é claro, tem imensa fatia da responsabilidade. Pelo óbvio: Datenas se multiplicaram pelo país à razão do crescimento do número de mortes, espraiando a sensação de medo tão central para a legitimação de respostas bárbaras e imediatistas a uma questão complexa e de longo prazo. Pelo não tão óbvio: ao forçar o esquecimento sobre episódios fundamentais, ajuda a criar uma sociedade com baixa capacidade para contextualizar, avaliar e evitar repetições.
Não é à toa que o caso de Corumbiara passou praticamente batido pela imprensa de alcance nacional. Primeiro, estamos falando de equipes jornalísticas que têm, as próprias, dificuldades severas de memória em meio aos cortes dos profissionais mais experientes. Depois, de uma mídia que perdeu de vista o interesse público em benefício do projeto de extermínio de um partido político que forneceu de lambuja todos os motivos para que esta finalidade se cumpra. Em terceiro lugar, e não menos importante, trata-se de um jornalismo declaradamente elitista. Pobres? Sem-terra? Rondônia? Deixa essa história pra lá. Assim como será relegada ao esquecimento a barbárie da Grande São Paulo. E a repetiremos. Muitas vezes.
* João Peres é autor de Corumbiara, caso enterrado, lançado pela Editora Elefante