Antropoceno ou Capitaloceno? Uma conversa em evolução

Seria o homo sapiens a causa da destruição do planeta? Em novo livro, Donna Haraway, Jason Moore e outros propõem passo adiante: concentrar o foco no sistema que produz a “natureza barata” e a extinção de culturas, linguagens e vidas

Trecho da introdução de Antropoceno ou Capitaloceno?

 

Os capítulos de Antropoceno ou Capitaloceno? não são fáceis de resumir, mas deles emergem dois temas comuns. Primeiramente, todos os ensaios sugerem que o argumento do Antropoceno faz uma pergunta a que ele não pode responder. O Antropoceno faz soar o alarme — e que alarme! Mas é incapaz de explicar como essas mudanças alarmantes ocorreram. Questões acerca do capitalismo, de poder e classe, antropocentrismo, enquadramentos dualistas de “natureza” e “sociedade” e o papel dos Estados e impérios — tudo isso costuma ser limitado pela perspectiva dominante do Antropoceno. Em segundo lugar, os colaboradores deste livro buscam ir além da crítica. Todos argumentam a favor de reconstruções que apontem uma nova maneira de pensar a humanidade-na-natureza e a natureza-na-humanidade.

A primeira coisa que quero dizer é que Capitaloceno é uma palavra feia para um sistema feio. Como aponta Haraway, “Capitaloceno” parece ser uma dessas palavras flutuando no éter, cristalizada por vários pesquisadores ao mesmo tempo — muitos de forma independente.

Como mencionei, ouvi o termo pela primeira vez de Andreas Malm, em 2009. O economista radical David Ruccio parece ter sido o primeiro a divulgar o conceito em seu blog, em 2011 (Ruccio, 2011). Por volta de 2012, Haraway começou a usar o conceito em suas palestras (Haraway, 2015). Nesse mesmo ano, eu e Tony Weis discutíamos o conceito em relação ao que se tornaria sua obra The Ecological Hoofprint [A pegada ecológica] (2013), verdadeira divisora de águas acerca do complexo industrial da produção de carne. Minha concepção do Capitaloceno tomou forma nos primeiros meses de 2013, enquanto aumentava minha infelicidade com o argumento do Antropoceno.

Capitaloceno. Como esclarecem os autores deste livro, o Capitaloceno não significa capitalismo como sistema econômico e social. Não é uma inflexão radical da Aritmética Verde. Em vez disso, entende o capitalismo como uma maneira de organizar a natureza — como uma ecologia-mundo multiespécie, situada e capitalista. Vou tentar usar a palavra com cautela. Já se fizeram outros jogos de linguagem — Antrobsceno (Parikka, 2014), Econoceno (Norgaard, 2013), Tecnoceno (Hornborg, 2015), Misantropoceno (Patel, 2013) e, talvez mais divertido, Mantropoceno [homemtropoceno]. Todos são úteis. Mas nenhum deles captura o padrão moderno histórico básico da história mundial enqunto a “Era do capital” — e a era do capitalismo como uma ecologia-mundo de poder, capital e natureza.

Na Parte I, Eileen Crist e Donna Haraway desmantelam o conceito de Antropoceno e apontam possíveis alternativas. Crist faz um poderoso alerta contra o uso do argumento do Antropoceno — e outros “autorretrato[s] prometeico[s]”, os quais tendem a reinventar e, por vezes, sutilmente recuperar o pensamento neomalthusiano.

Enquanto muitos defensores do conceito indicam de que maneira o Antropoceno introduziu a discussão, Crist vê essa abertura como demasiado seletiva. Para a autora, o conceito “encolhe o espaço discursivo para questionar a dominação [humana] da biosfera, oferecendo, em vez disso, um argumento tecnocientífico em prol de sua racionalização”. Inspirando-se em Thomas Berry, Crist nos direciona para um enquadramento distinto — e mais esperançoso — do presente e de nossos possíveis futuros.

Essa não seria uma “Era do homem”, mas uma “Era ecozoica”: uma visão da humanidade-na-natureza como uma união na diversidade, na qual a humanidade pode abraçar a “comunidade viva integral da Terra”.

O carvão e o motor a vapor não determinaram a história, e, além disso, as datas estão todas erradas, não porque seja preciso retornar à última era do gelo, mas porque é preciso ao menos incluir as grandes remundificações do mercado e da mercadoria dos longos séculos XVIe XVII, mesmo se acharmos (erroneamente) que podemos continuar eurocentrados ao pensar sobre as transformações “globalizantes” que moldam o Capitaloceno.

A geografia histórica do Capitaloceno se desloca para o palco principal na Parte II. Em “O surgimento da Natureza Barata”, eu argumento a favor de um enquadramento interpretativo da história do capitalismo, erigido sobre a crítica que Haraway (2008) faz há muito tempo do “excepcionalismo humano”. O capitalismo é uma maneira de organizar a natureza como um todo, uma natureza na qual organizações humanas (classes, impérios, mercados etc.) não apenas constroem ambientes, mas são simultaneamente criadas pelo fluxo histórico e pelo fluir da teia da vida.

Nessa perspectiva, o capitalismo é uma ecologia-mundo que se junta à acumulação do capital, à busca pelo poder e à coprodução da natureza em configurações históricas sucessivas. Mostro que a ênfase na Revolução Industrial como origem da modernidade decorre de um método histórico que privilegia consequências ambientais e oculta as geografias do capital e do poder. O caso de amor entre Pensamento Verde e Revolução Industrial minou esforços para localizar a origem das crises de hoje nas transformações definidoras de época do capital, do poder e da natureza, que começaram no “longo” século XVI (Braudel, 1953). As origens das crises atuais — inseparáveis, mas distintas — da acumulação de capital e da estabilidade biosférica podem ser localizadas numa série de transformações de paisagem, classes, território e técnica que emergiu nos três séculos após 1450.

Justin McBrien concorda que estamos vivendo no Capitaloceno, destacando o impulso do capitalismo rumo à extinção, num sentido de ecologia-mundo. A extinção, argumenta, é mais do que um processo biológico sofrido por outras espécies. Significa também a “extinção de culturas e linguagens”, o genocídio e o espectro de mudanças biosféricas compreendidas como antropogênicas. McBrien demonstra que a própria concepção dessas mudanças como antropogênicas tem como premissa a exclusão conceitual sistemática do capitalismo. Essas concepções são, na narrativa do autor, um produto da ciência moderna, ao mesmo tempo se opondo e se mesclando dentro das teias de poder imperial e acumulação de capital. Longe de ser apenas um produto do sistema — como na Aritmética Verde —, ele mostra que a “acumulação por extinção” foi fundamental para o capitalismo desde o começo. O Capitaloceno, em sua visão, também é um Necroceno: “A acumulação de capital é a acumulação de extinção potencial — um potencial cada vez mais ativo nas décadas recentes”. Longe de abraçar o catastrofismo planetário e as visões apocalípticas de muitos ambientalistas, McBrien revela como o próprio catastrofismo foi uma forma de conhecimento enquadrada nos sucessivos regimes ecológicos do pós-guerra e do capitalismo neoliberal. O catastrofismo, em sua leitura, transformou ambos os polos do par binário ambientalista — “sustentabilidade ou colapso?” (Costanza, Graumlich & Steffens, 2007) — em imagens espelhadas uma da outra.

Elmar Altvater vai além da economia política para incluir a “racionalidade europeia da dominação mundial” de Max Weber e desafiar as principais bases da racionalidade moderna. Por um lado, Altvater enxerga as origens do capitalismo no longo século XVI e a invenção da Natureza Barata. Por outro, ele vê uma mudança decisiva na transição da subsunção do trabalho pelo capital de um caráter “formal” para “real” no fim do século XVIII e começo do XIX. Altvater chama essas duas periodizações de hipóteses “Braudel” e “Polanyi” — em referência a Fernand Braudel e Karl Polanyi. Longe de competirem entre si, essas periodizações são mais bem contempladas na totalidade do capitalismo histórico: ambas as posições, a de Braudel e a de Polanyi, estão corretas. É importante, para Altvater, que o Capitaloceno não seja apenas uma questão de acumulação do capital, mas de racionalização — imanente ao processo de acumulação. Mapeando as contradições entre o cálculo em âmbito empresarial dos custos e a “racionalidade” microeconômica da externalização, ele ilumina um conjunto mais amplo de problemas da modernidade e sua capacidade de lidar com a mudança climática. Usando a geoengenharia como exemplo, Altvater sinaliza a armadilha da racionalidade burguesa em relação à mudança biosférica de hoje. A tarefa dos geoengenheiros

é muito maior do que construir um carro, uma represa ou um hotel. Os geoengenheiros precisam controlar sistemas terrestres por completo para combater — ou ao menos reduzir — as consequências negativas da externalização capitalista. No entanto, a internalização que se exige das emissões externalizadas é a internalização dos efeitos externos para custos de produção da empresa. Então, de fato — em princípio —, os preços podiam “dizer a verdade”, como nos manuais neoclássicos. Mas ainda não seríamos mais sábios, porque muitas interdependências na sociedade e na natureza não podem ser expressas em preços. Qualquer racionalização eficaz teria de ser holística; precisaria ser qualitativa e levar em conta muito mais coisas do que apenas o preço. E isso é impossível, pois contradiz a racionalidade capitalista, que está comprometida em consertar as partes, e não o todo. Em tal cenário, a modernização capitalista, por meio da externalização, chegaria — inevitavelmente — ao fim. As Quatro Coisas Baratas (Four Cheaps) desapareceriam atrás do “horizonte de eventos”. Seria possível que os geoengenheiros trouxessem a moderação necessária da modernização e das dinâmicas capitalistas? Não, pois os engenheiros não estão qualificados para trabalhar de forma holística.

Na Parte III, os holofotes se voltam a questões de cultura e política no Capitaloceno. No capítulo 6, Daniel Hartley pergunta qual a importância da cultura para pensar a respeito do Antropoceno e do Capitaloceno. Partindo de uma perspectiva de ecologia-mundo, ele sugere que os conceitos de “natureza abstrata social” (Moore, 2014b, 2015a) e “ajuste cultural” (Shapiro, 2014) fornecem guias rudimentares — porém parciais — à história do capitalismo na teia da vida. Alertando sobre os riscos que podem separar “ciência” e “cultura” na criação capitalista do meio ambiente, Hartley aponta as relações entre ciência e cultura, capital e natureza, como fundamentais para as geografias históricas da acumulação infinita. Nessa formulação, desenvolve um argumento robusto a favor da incorporação analítica dessas relações — racismo, sexismo e outras formas “culturais” — que aparentam não ter relação imediata com a ecologia, mas que são, na verdade, fundamentais às diversas relações da humanidade dentro da teia da vida.

Christian Parenti, no capítulo de encerramento, nos conduz da cultura às políticas do Capitaloceno. A inovação de Parenti é dupla. Primeiro, ele reconstrói o Estado moderno, entendendo-o fundamentalmente como um processo de criação de ambiente (environment-making).

O Estado moderno não se limita a produzir mudanças ambientais. Da mesma maneira, o poder estatal, como Parenti mostra em sua exploração do início da história estadunidense, desenvolve-se por meio da transformação ambiental. Em segundo lugar, o Estado moderno opera através de uma valoração peculiar da natureza — o que Marx chama de trabalho social abstrato. A descoberta de Parenti é que o poder, o valor e a natureza só podem ser pensados em relação uns com os outros. Portanto, o Estado moderno “está no cerne da forma valor […], porque os valores de uso da natureza não humana são […] fontes centrais de valor”, e é o Estado quem os fornece. Longe de operar fora ou acima da “natureza”, na visão de Parenti, o Estado se torna o nexo organizativo fulcral da relação entre território moderno, acumulação de capital e percepção da natureza como torneira e pia. As implicações políticas da análise são cruciais. O Estado não é apenas analiticamente central à elaboração da ecologia-mundo capitalista; é a única instituição grande e poderosa o bastante para permitir uma resposta progressiva para os desafios crescentes das mudanças climáticas.

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