Por Leandro Melito
O debate sobre a nomeação de novos ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou força no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Após a gestão bolsonarista, na qual ser “terrivelmente evangélico” foi um parâmetro para a composição da corte, há uma crescente mobilização social para que o governo petista contemple a participação feminina e negra em suas nomeações – pelo menos duas em 2023, com a saída de Ricardo Lewandowski, que deixou o STF em maio, e Rosa Weber, que se aposentará em outubro.
A indicação de Cristiano Zanin, homem branco de 47 anos e ex-advogado de Lula, frustrou muitas expectativas dentro e fora do país, inclusive da filósofa e ativista negra estadunidense Angela Davis. “Lula deveria ter nomeado uma mulher negra para a Suprema Corte brasileira, mas não qualquer mulher negra”, disse, em entrevista à Folha de S. Paulo. Davis enfatiza que a importância de nomear uma pessoa negra deve se concentrar não apenas na raça, mas também na política.
Nesse sentido, em três livros publicados pela Elefante, bell hooks, a partir da experiência da indicação do juiz negro Clarence Thomas para a Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1991, aborda a complexidade da nomeação de pessoas negras para uma câmara de justiça dominada pelos valores do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista, baseado na cultura e na política conservadoras, ambiente repleto de armadilhas para a pauta feminista e antirracista.
“Não existe um lugar dentro do patriarcado capitalista supremacista branco para uma discussão sobre as relações de gênero que permita a homens e mulheres negras encarar questões de poder e dominação, do machismo do homem negro e da resistência da mulher negra”, escreve hooks em “Um desafio feminista: devemos chamar todas as mulhers de irmã?”, publicado em Olhares negros: raça e representação (Elefante, 2019).
O ensaio foi escrito com base nas sabatinas que se seguiram à nomeação de Clarence Thomas pelo presidente George H. W. Bush, tornando-o o segundo homem negro a ocupar uma cadeira na Suprema Corte estadunidense. A denúncia de assédio sexual que permeou as audiências, todas transmitidas pela televisão, feita por Anita Hill, mulher negra e ex-assessora de Thomas, não impediu que ele fosse empossado. Na corte, desde então, sua atuação tem sido marcada por grande conservadorismo.
Ao ler a análise visual feita por bell hooks da transmissão daquelas audiências, é impossível não notar a atualidade e semelhança com as sessões do Senado brasileiro que chancelaram a nomeação de Zanin para o STF: a representação do que o patriarcado supremacista branco realmente é, sem diversidade racial ou sexual, nem divisão igualitária das posições existentes na estrutura social.
“Era mais do que evidente, tanto visualmente quanto em termos de conduta, que os laços com a masculinidade e com a supremacia branca transcendiam diferenças de posição política entre os homens brancos membros do comitê do Senado”, escreve bell hooks. Esses laços, continua a autora, poderiam se estender e incluir um homem negro como Clarence Thomas “porque ele fundamentalmente se aliou aos interesses do patriarcado supremacista branco capitalista”.
Além das contradições da figura de Clarence Thomas, hooks também concentra críticas na postura de Anita Hill, pela forma como ela representou a pauta feminista e negra nessa discussão. “Estamos assistindo a duas pessoas negras conservadoras que demonstraram, com suas alianças políticas, que se identificam com a cultura e a política conservadora branca dominante.”
Cuidado com o fogo amigo
As armadilhas para a luta contra o racismo presentes no episódio da nomeação de Clarence Thomas também são abordadas por hooks em “Censura da esquerda e da direita”, que compõe os ensaios de Cultura fora da lei: representações de resistência, com pré-venda aberta no site da Elefante. Aqui, a autora fala sobre as críticas que recebeu ao publicar o ensaio sobre as audiências públicas de Clarence Thomas – críticas que partiram inclusive de suas companheiras feministas.
“Repetidas vezes, preciso insistir que a solidariedade feminista, fundamentada no compromisso com políticas progressistas, deve incluir um espaço para a crítica rigorosa, para a dissidência, ou estaremos fadadas a reproduzir, em comunidades progressistas, exatamente as mesmas formas de dominação às quais buscamos nos opor”, escreve hooks.
Em Cultura fora da lei, ela destaca que o resultado das audiências públicas mostram como “noções de solidariedade racial limitadas e mal orientadas, que reprimem a dissidência e a crítica, podem levar pessoas negras a apoiarem indivíduos que não defenderão seus direitos”. E faz um alerta: “Jamais saberemos qual teria sido o resultado das audiências públicas de Thomas se grandes líderes negros nos Estados Unidos tivessem convocado apoio em massa para resistir a essa nomeação”.
bell hooks aponta que, assim como Thomas usa sua posição na Suprema Corte para “cercear direitos humanos, para barrar o caminho da justiça racial e da luta contra o sexismo”, as pessoas negras “que sentiam que era mais importante apoiar o ‘irmão’, porque os brancos estavam prontos para derrubá-lo, devem, se é que estão de alguma forma conscientes, enxergar como a caminhada delas está equivocada”.
Cuidado ao entrar na cova dos leões
Em Olhares negros, uma das críticas que bell hooks faz à atuação de Anita Hill ao denunciar Clarence Thomas diz respeito à forma como a pauta da violência sexual contra as mulheres foi exposta naquela discussão, em uma performance que sugere que Hill foi à audiência conduzida por uma “fé equivocada em um sistema que raramente trabalhou pelas mulheres que buscavam justiça em casos de assédio sexual”.
“É desnecessário dizer que essa fé a fez entrar na cova dos leões sem a proteção necessária. Isso não é admirável. Se Anita Hill fosse uma defensora do feminismo, moderada ou militante, teria levado para as audiências o tipo de pensamento e consciência feministas que lhe permitiria encarar a realidade do patriarcado supremacista branco que já tinha escolhido Thomas”, escreve hooks.
Em “Sexo bom, pedagodia apaixonada”, publicado em Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, hooks retoma o alerta sobre a necessidade de cuidado e preparação para as mulheres negras durante uma disputa política em um ambiente de dominação patriarcal, branco e conservador, como é o caso da Suprema Corte.
Na vida das mulheres negras, aponta hooks, a ênfase é na “prevenção”, e não em como lidar com a crise depois de se tornar vítima. “No mundo cão da sobrevivência, as vítimas que se colocam em risco fazendo algo considerado estúpido não recebem muita compaixão”. Em seu trabalho, a autora aponta que todas as mulheres, principalmente as mulheres negras, ao viver em um mundo sexista e racista, precisam se proteger e assumir ainda mais responsabilidades do que deveriam.
“Invariavelmente, clamo às mulheres que resistam à identificação com o vitimismo como único lugar possível de luta por mudança social. Na posição de defensora de políticas feministas revolucionárias, eu me oponho a todas as formas de violência sexual contra as mulheres. Ao mesmo tempo, vejo a necessidade de um contexto libertador para afirmar a autonomia sexual das mulheres dentro da cultura patriarcal como um dos interesses igualmente importantes do movimento feminista”, conclui.