Lições do genocídio em curso
Por Raúl Zibechi
Publicado em Nais
“O campo de concentração, e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do Ocidente”, escreveu, há 25 anos, Giorgio Agamben. Para o filósofo italiano, o campo de concentração é o acontecimento fundamental da modernidade, a partir do qual não há “retorno possível à política clássica”.
Agamben dedicou grande parte de sua vida e vários livros ao estudo dos campos nazistas, agrupados sob o título de “Homo Sacer”. Seu trabalho contribuiu para mostrar com maior clareza a política moderna após a Segunda Guerra Mundial, iluminando situações como a vivida pelos palestinos em Gaza e por muitos outros povos em diversas regiões do mundo.
Ele relaciona o campo de concentração com o estado de exceção e, portanto, com as políticas de segurança dos Estados atuais. Destaca que o campo de concentração é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar a regra, mas acrescenta que está sendo progressivamente substituído por “uma generalização sem precedentes do estado de exceção como técnica normal de governo”.
Consequentemente, Agamben define o totalitarismo moderno como “uma guerra civil legal, que permite a eliminação não apenas dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer motivo, não se integram ao sistema político”.
O desenvolvimento desse argumento leva a considerar que o campo de concentração é um espaço onde predomina a “vida nua”, desumanizada e desprovida de qualquer direito. Portanto, aqueles que foram excluídos e reclusos no campo “podem ser mortos, sem que se cometa homicídio”. Ou seja, matar essas pessoas deixa de ser um crime.
Isso é exatamente o que acontece em Gaza, mas também nas favelas do Rio de Janeiro, na cerca de Melilla [que separa o enclave espanhol do território marroquino] e em todos os espaços habitados por seres humanos desumanizados pelo sistema opressor, pelos monopólios midiáticos e pelos Estados a serviço do capital financeiro.
No entanto, há algo que gera desconforto, que mostra que as coisas não estão funcionando. Concordo plenamente com essa análise, pois escancara a realidade para torná-la transparente. O que gera desconforto somos nós. Escrevi algo semelhante, em 2008. E temos lido textos semelhantes há um bom tempo.
O que quero dizer é que, toda vez que o sistema produz uma atrocidade, nós denunciamos, criticamos, analisamos e nos manifestamos. Mas isso, na realidade, não é suficiente, porque a história se repete e a cada vez o resultado é pior — como agora.
Na minha opinião, o “modelo Gaza” é muito eficiente e está sendo exportado ou adotado por outras classes dominantes em outras partes do mundo, com o objetivo de vigiar, controlar e punir as classes populares, os povos originários e negros. Essa mutação progressiva dos modos de dominação no Ocidente, e especialmente na América Latina, nos coloca diante de novos desafios. Vou expô-los brevemente.
O primeiro está relacionado com a democracia e, particularmente, com a importância que conferimos ao sistema eleitoral em um regime que se tornou impermeável a mudanças estruturais. Pelo menos neste continente, cada vez mais, os movimentos investem grande energia para tentar alçar o menos pior ao governo, mesmo sabendo que nenhuma transformação profunda virá daí.
O segundo é muito mais complexo, pois afeta diretamente nossas culturas organizacionais e os nossos modos de fazer política. Até agora nos envolvemos em formas de ação “para fora”, por assim dizer. A denúncia e as declarações, a propaganda e a agitação, as manifestações e todas as formas relacionadas a ela são destinadas a convencer as pessoas afins da necessidade de participar de ações (greves, paralisações etc.) ou eleições.
Esse tipo de atividade pública e voltada para o público, somada às reuniões internas para preparar tarefas nessa direção, consomem a maior parte das energias dos movimentos e das forças de esquerda. No entanto, essa cultura política destinada a modificar a correlação de forças na sociedade e nas instituições encontrou limites muito precisos, porque a estrutura do sistema nunca esteve em questão — e não pode estar, pois o sistema se transformou a ponto de que as antigas formas de ação “para fora”, incluindo a tomada do poder ou do governo, não o afetam, nem minimamente.
Essa falta de significado da ação coletiva afeta com muito mais intensidade os jovens e os setores populares na América Latina, que são os que mais sofrem com as ofensivas militares e a crise climática, as violências de gênero e racial. O desvio de muitos jovens, especialmente homens, para posições de extrema direita deve ser entendido mais como sintomas de desespero por não terem futuro do que como uma opção ideológica definida.
A terceira questão está ganhando centralidade e se refere à necessidade de construir “nosso” mundo, já que pouco se pode esperar dos governos de qualquer espectro. O que está acontecendo nos últimos anos na Argentina é um exemplo a ser analisado: sob um governo progressista, a pobreza ultrapassou a parcela de 40% da população, o que dá uma ideia do fracasso do sistema político, independentemente da posição ideológica do presidente.
Com “nosso” mundo, me refiro à construção de espaços de educação, saúde e até formas de trabalho que não dependam das migalhas do governo. Em Buenos Aires, empreendimentos derivados do movimento piquetero voltam a ganhar força, especialmente na região sul metropolitana, com a criação de bairros comunitários e cooperativas de cultivo agroecológico, entre outras iniciativas.
O genocídio contra o povo palestino é a vanguarda de um projeto que está sendo tramado contra os povos do mundo, e ainda não estamos preparados para enfrentá-lo.
Imagem: Prisioneiros palestinos dentro de um campo de concentração do exército britânico em Jenin, na Cisjordânia – 08/06/1939 (Keystone/Getty Images)