Israel quer destruir memória de Gaza, diz autor palestino convidado para a Flip

Por Clara Balbi
Publicado em Folha de S. Paulo

 

É o quinto dia da guerra Israel-Hamas. O Exército de Tel Aviv ataca um prédio moderno na Cidade de Gaza. “Os israelenses sempre optam por esse tipo de edifício: novos, impressionantes e empolgantes centros de desenvolvimento. O objetivo é sempre nos fazer voltar no tempo, fazer com que a cidade pareça pobre e feia novamente”, narra o escritor palestino Atef Abu Saif.

Dali em diante, muitas outras construções de Gaza seriam destruídas por Israel em resposta a uma incursão do Hamas ao seu território que deixou cerca de 1.200 pessoas mortas. Haveria baixas na faixa palestina também —mais de 39 mil delas, nos cálculos das autoridades de saúde da Faixa de Gaza que, ligadas ao grupo terrorista, não distinguem civis de combatentes.

Enquanto nos jornais essas mortes de palestinos são contabilizadas às dezenas, às vezes centenas, Abu Saif quase não usa números ao falar sobre os parentes, amigos e conhecidos que perdeu em Quero estar acordado quando morrer, um diário do conflito lançado pela editora Elefante.

O escritor, que acaba de ser anunciado como convidado da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, em outubro, prefere chamar os mortos por seus nomes.

Escreve então sobre Bilal, diretor de uma associação de imprensa local a quem o livro é dedicado. Sobre Ali, seu primo, que vendia ovos no campo de refugiados de Jabalia. Sobre Huda, sua cunhada, morta ao lado do marido, Hatem, da filha e do neto.

Abu Saif nasceu em Gaza em 1973, ano em que o território palestino foi cenário de outro conflito, a Guerra do Yom Kippur. Quando os enfrentamentos mais recentes irromperam, no entanto, ele não estava morando lá —na época atuando como ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina, órgão que é uma espécie de embrião de um Estado palestino, ele estava na faixa a trabalho e tinha aproveitado para levar o filho adolescente para visitar familiares seus que ainda vivem no local.

De sua casa, em Ramallah, na Cisjordânia, o autor conta à Folha que sua motivação para registrar os cerca de 80 dias que passou em Gaza era a princípio egoísta. “Queria que as pessoas soubessem quem eu fui quando eu morresse”, diz.

À medida que as pessoas ao seu redor começaram a pedir que ele escrevesse também sobre elas, porém, o desejo se transformou em uma missão. “Entendi que Gaza inteira poderia morrer. É um genocídio”, diz ele.

Israel nega as acusações e afirma que sua campanha militar é justificada por seu direito à autodefesa. Em janeiro, após uma denúncia da África do Sul, a Corte Internacional de Justiça, conhecida como Corte de Haia, determinou que Tel Aviv tomasse medidas para evitar atos de genocídio, mas não reconheceu as ações militares israelenses como genocidas.

“Quero Estar Acordado Quando Morrer” funciona como um relato alternativo dessa guerra que, se no início mobilizou debates por todo o mundo, parece se reduzir cada vez mais a imagens de ruínas e de sofrimento humano à medida que adentra seu décimo mês.

Não deixa de chamar a atenção, aliás, o fato de que esta é a primeira obra de Abu Saif, finalista do Prêmio Internacional para Ficção Árabe em 2015, considerada a maior premiação literária do mundo árabe, a ser publicada no Brasil. Seu exemplo é simbólico da dificuldade que a produção artística de Gaza enfrenta para atingir outros mercados.

Abu Saif diz estar acostumado com essa lacuna. Ele menciona que nenhum de seus cinco romances foi publicado em inglês, só seus trabalhos de não ficção. “Ninguém olha para essa outra Gaza, em que há literatura, música, teatro.”

Por um lado, afirma o escritor, essa tendência data de antes da fundação de Israel e do êxodo massivo do território outrora conhecido como Palestina que ela provocou, chamado de “nakba” —palavra em árabe para “catástrofe” ou “desastre”.

Por outro, Abu Saif diz acreditar que a cultura tem sido um dos principais alvos de Tel Aviv ao avançar sobre Gaza. O autor lista uma série de locais históricos da faixa que foram destruídos desde outubro, como o antigo porto, construído pelos fenícios há 5.000 anos, ou o Qasr Al-Basha, conhecido como Forte de Napoleão em razão dos rumores de que o imperador teria passado três noites lá no século 19.

“Esta não é uma guerra contra humanos. É contra um lugar, sua beleza, sua memória. Não querem que as pessoas se lembrem de Gaza como era. E, é claro, contra o nosso futuro”, diz.

“As pessoas de Gaza sonham. Mas nenhuma delas tem a chance de concretizar esses sonhos”, prossegue o escritor que, como seus conterrâneos, também sofre com as limitações que Israel impõe ao trânsito de palestinos por seu território —sua viagem ao Brasil será antecedida por um período em que dará aulas em Florença, na Itália.

O escritor cita o caso de uma aluna que morava em Rafah, cidade no extremo sul da faixa, na divisa com o Egito, e conseguia ver a fronteira de sua janela. Mas ela nunca tinha saído de Gaza, assim como a maioria dos jovens da região, isolada pelo menos desde que o Hamas passou a controlá-la, em 2007.

“Em Gaza, vive-se em uma jaula. E não importa se ela tem 360 km² [o tamanho da faixa] ou 1 m². Você não pode sair dela.”

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