
Aquecimento global, ponto zero: quando a água virou carvão
Por Miranda Trimmier
Publicado em The New Inquiry
“Como nos metemos nessa confusão?”, pergunta Andreas Malm, professor da Universidade de Lund, na Suécia, chegando rapidamente ao centro da questão logo nas primeiras páginas de Capital fóssil: a ascensão do motor a vapor e as raízes do aquecimento global. O subtítulo capta a essência do problema e sua resposta, um consenso para um bom número de especialistas: essa “confusão” – a crise climática – começou com os combustíveis fósseis.
Malm não perde tempo delimitando o espaço mais específico de sua pesquisa. Ao fim da rápida introdução, o leitor tem em mãos as suposições iniciais de Malm, temas centrais da investigação, metodologias gerais e uma ampla compreensão da linha do tempo e dos desafios. Em resumo: precisamos de história se quisermos responder à crise climática com uma noção clara dos obstáculos e riscos. Precisamos ser capazes de explicar que o clima de hoje é “produto das emissões de ontem”. ”Essa tempestade é eminentemente temporal”, escreve Malm. E, assim preparados, seguimos.
No centro dessa história está o surgimento da economia fóssil, “uma economia de crescimento autossustentável baseada no consumo crescente de combustíveis fósseis”. Hoje isso pode descrever vários tipos de economia, claro, e o capitalismo global está trabalhando duramente para fortalecer aqueles que não se incluiriam; o pano de fundo da crise climática é uma dinâmica econômica que irá queimar cada vez mais combustíveis fósseis se for deixada à própria sorte.
Capital fóssil argumenta que essa dependência nasceu nas particularidades com que o Reino Unido do século XIX trocou a energia hídrica [os moinhos de água] em favor do carvão e do vapor; não se deu, como outras histórias já afirmaram, no primeiro momento em que um ser humano bateu duas pedras para fazer fogo, nem durante nenhum dos tantos períodos históricos anteriores ao uso de carvão e petróleo para subsistência, nem como uma simultaneidade mágica com a invenção da máquina a vapor no século XVIII. Materialista, Malm se opõe a qualquer história que trata o crescimento dos combustíveis fósseis como algo natural ou inevitável.
O seu relato é sobre o trabalho e as contingências que permitiram que os combustíveis fósseis emergissem como uma ferramenta indispensável nas lutas de controle do capital. Num dos pontos mais sugestivos do livro, Malm coloca que, embora a palavra em inglês power descreva tanto correntes de energia como estruturas hierárquicas entre pessoas, não existe uma tendência semelhante em francês, espanhol ou alemão, línguas de outros centros do desenvolvimento capitalista. “Por que os dois pólos se transformaram num só em inglês?”, ele pergunta. […]
Nos anos que seguiram à patente da máquina a vapor em 1784, James Watt e seu parceiro de negócios, Matthew Boulton, visitaram os cada vez mais poderosos proprietários de moinhos de água, sabendo que a aprovação deles seria crucial para o sucesso das máquinas. Mas eles não aprovaram, ao menos num primeiro momento. A maioria dos primeiros a utilizarem o motor achou-o bastante inferior à energia hidráulica. Os motores a vapor exigiam reparos frequentes, às vezes explodiam, e tinham uma vida útil pouco confiável; a tecnologia da roda-d’água era testada há tempos, e uma boa roda de ferro podia durar cem anos. O carvão “vomita fumaça, polui a terra e o ar por quilômetros ao redor”, nas palavras de um engenheiro; a água não. E o mais importante: a água era gratuita, enquanto o carvão era caro. Os próprios Watt e Boulton mantiveram rodas-d’água em seus negócios até boa parte do século XIX, acompanhando a tendência geral. Por anos, donos de usinas seguiram desinteressados pelo vapor. […]
A escolha entre vapor e energia hidráulica foi feita, crucialmente, quando os barões do algodão pesaram os benefícios entre as fábricas urbanas e rurais. Essa decisão também se mostrou menos simples do que pode parecer. De um lado, os espaços rurais afastavam os proprietários da crescente agitação sindical; forças de trabalho estavam isoladas e os danos de rebeliões proletárias podiam ser mais contidos. Mas essas forças de trabalho também eram menos dispensáveis que nas cidades, onde os donos tinham enormes reservas de mão de obra. E os incentivos que os patrões rurais tinham para manter os trabalhadores – belas casas, vacas e jardins, escolas – acabavam significando que eles tinham que investir mais capital que os proprietários urbanos. Quando os trabalhadores faziam greves e quebravam máquinas, destruíam janelas ou danificavam estradas, os operadores rurais arcaram com todos os custos. Isso tornou a energia hídrica cava vez mais insustentável.
À medida que a indústria seguia em torno de instalações urbanas, o carvão permitiu aos capitalistas refazerem o espaço para satisfazer ainda mais suas necessidades. Eles podiam criar densos aglomerados de fábricas que não precisavam estar obrigatoriamente localizadas ao longo dos principais trechos do rio. O carvão ainda manteve vantagem onde o aumento dos sindicatos exigiu reformas nas leis de trabalho que incluíram uma jornada de dez horas. Os moinhos de água ficavam a mercê de fluxos irregulares [regime de chuvas] que podiam parar a produção por horas. Tradicionalmente, trabalhadores eram forçados a compensar o tempo mais tarde naquela noite ou no dia seguinte; essa prática se tornou ilegal com as novas regras, que especificavam exatamente quando os dias de trabalho começavam e terminavam.
Podia-se contar com o carvão para produzir um fluxo constante de energia, e sua intensidade era mais manipulável, permitindo que os donos mantivessem (e aumentassem) as taxas de produção dentro da jornada de trabalho reduzida. Nesse caminho, explica Malm, o carvão deu ao capital uma habilidade sem precedentes para refazer não só o espaço mas o tempo de acordo com as necessidades – e nesse processo se tornou parte fundamental do seu jeito de crescer. Power adquiriu um duplo sentido: a capacidade do capital de aproveitar os combustíveis fósseis para gerir trabalhadores indisciplinados ao mesmo tempo que seguia buscando novos lucros; power se tornou o capital fóssil.
Foto: The Museum of English Rural Life