
Resgatar comunidades, periféricas e pré-capitalistas, para salvar o mundo
Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala
Estamos diante daquele clássico anseio das esquerdas. Uma vida mais justa e menos presa aos valores modernos de individualismo e exploração. Para isso, vamos então ao resgate e à releitura de formas de vida pré-capitalistas, na urgência de recuperarmos ideias que possam inspirar outros futuros. O socialismo indo-americano de Mariátegui, os conceitos de negritude e Ubuntu, os socialismos africanos do século XX, a ideia de Bem Viver, a felicidade interna bruta do Butão… São ricas e variadas as propostas da periferia global.
O Elefante na Sala é o podcast da Editora Elefante, disponível nas plataformas de streaming (link para Spotify e Youtube) e no player acima. Você nos apoia curtindo, seguindo e avaliando nossos canais. Nesta primeira temporada, a partir de março de 2025, vamos trazer uma série de conversas com autores do nosso catálogo, com novos episódios às quintas-feiras. O sexto programa trata de Em busca da comunidade: caminhos do pensamento crítico no Sul global, numa conversa com Fabricio Pereira da Silva (que aqui na Elefante também é co-organizador de Os futuros de Darcy Ribeiro). A transcrição está abaixo, e estará sempre aqui no nosso blog e na seção Podcast.
Fabricio, você começa o livro com a seguinte frase: “não há futuro sem passado”. Queria que você listasse casos de ideias de comunidade construídas no passado, nessas periferias do mundo, que te parecem mais interessantes para o momento que a gente vive, que podem nos instigar a abrir a cabeça. Ao menos enxergar outros projetos de mundo.
Eu destacaria os mais contemporâneos. O Bem Viver dos países andinos, que é o mais próximo da gente aqui, se expressou principalmente na Bolívia e no Equador, durante os governos do Evo Morales e do Rafael Corrêa, respectivamente, e a partir de diversas atividades – com os movimentos indígenas e outros diversos movimentos sociais nesses dois países – houve, inclusive, transformações importantes. Transformações institucionais, novas constituições, reconhecimento de novos direitos e a ideia de plurinacionalidade na Bolívia, que implica numa nova concepção de Estado com ideias de democracia comunitária envolvidas.
No Equador, eu destacaria também os direitos da natureza, que foi algo revolucionário, de ter a natureza como sujeito de direitos. Claro que há diversas limitações na implementação disso tudo, há muitas forças contrárias, há muitos bloqueios, mas de todo modo é uma ideia muito interessante, e isso é analisado no livro. Um pouco mais distante da gente, mas não tanto, atravessando o Atlântico, tem as experiências em torno do Ubuntu, que é essa ideia que atravessa diversos povos do Sul da África, mais particularmente da África do Sul, a partir da transição do Apartheid para o regime democrático e plurirracial atual do país. Muitas personalidades bem conhecidas, como o arcebispo Desmond Tutu e o Nelson Mandela, foram alguns dos divulgadores dessa ideia que é expressada em algumas noções muito simples, como aquela frase, “eu sou porque nós somos”.
Uma outra experiência já menos conhecida da gente, um pouco mais distante, mas também contemporânea, é a noção da felicidade nacional bruta que vem sendo desenvolvida num estado pouco conhecido lá no alto dos Himalaias, na Ásia, que é o Butão. Nas últimas décadas vem havendo também todo um debate filosófico, também imbricado com uma religiosidade budista majoritária naquele país, que defende uma vida mais comunitária, mais comunal, e uma noção não ocidental de felicidade, uma noção não ocidental de desenvolvimento. Uma ideia de desenvolvimento que não é baseada num crescimento econômico, mas que é baseada em tentativas até mesmo de medir a felicidade, o bem-estar dos indivíduos e das famílias no Butão. Essa ideia da felicidade nacional bruta derivou num índice de medição. E ele vem sendo aplicado em outros países, outros estados, outras cidades do mundo, no Ocidente inclusive.
Mas além disso, Paulo, esse livro na verdade faz uma viagem a partir do começo do século XIX por diversas noções que têm como centro a ideia de comunidade. Desde as reflexões lá dos chamados populistas na Rússia, lá na Rússia czarista, no século XIX, os socialistas populistas, socialistas românticos, comunitários da Rússia no século XIX. Passa pelo grande pensador peruano Mariátegui, primeiras recepções do marxismo na América Latina, com uma faceta própria, uma faceta indígena. Passa pelas noções de panafricanismo e negritude, tudo que há de debate em torno da comunidade, reflexão em torno de uma vida de maior integração entre as pessoas, menos consumista, até chegar a essas experiências contemporâneas que eu já mencionei aqui.
Agora, a gente está pensando nessas experiências do passado enquanto inspiração para um novo tempo e do mesmo modo a gente tem uma sensação de esgotamento da vida cotidiana. Por exemplo, quando a gente lê sobre recorde de temperatura a cada verão, sobre inteligência artificial, e tudo parece meio catastrófico hoje em dia. Que sensação é essa de que a gente está caminhando para um fim da vida? E ainda assim, dá para dizer, Fabricio, que o cidadão está mais atento a isso? Que as pessoas em geral estão mais ligadas, mais críticas às vidas que estão levando?
Me parece que sim, Paulo. Essa sensação de fim de mundo tem muita relação com uma ausência das utopias. Essa sensação que começou talvez nos anos 1970-80 do século passado a partir das crises do marxismo, crises de algumas experiências socialistas, das principais experiências socialistas naquele momento, até chegar a desembocar naquele momento, no final do século XX, em que se falava que não havia mais alternativa. “Não há alternativas”, era a declaração famosa da então primeira ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher.
Desde então, há essa ausência de utopias, e isso se mantém, apesar de algumas expressões aqui e ali de esperança, como os fóruns sociais mundiais, as revoltas de Seattle, as primaveras árabes. Mas de um modo geral, cada um de nós parece atravessado por uma vida muito focada no presente e uma ausência de perspectiva de futuro, especialmente de futuros utópicos revolucionários. E com esse livro eu tentei mostrar que há nas periferias globais, no hoje chamado Sul global, experiências no século XIX, no século XX, diferentes daquelas mais conhecidas do socialismo, outras alternativas, e que contemporaneamente seguem havendo alternativas.
A ideia do livro não é apresentar modelos fechados, é apresentar inspirações, é mostrar que existem alternativas. Algumas dessas alternativas talvez não possam ser seguidas estritamente, não possam ser implementadas em outro país, outra região do mundo, talvez não possam ser implementadas stricto sensu no Brasil. Mas existem experiências nos países pobres do mundo, entre os condenados da terra, que são experiências inspiradas em tradições, sim, inspiradas no passado, mas um passado que se reproduz no presente, que faz parte da modernidade, não uma coisa que ficou parada no tempo, que ficou parada lá atrás. São projetos que se inspiram no passado, em concepções, às vezes, de um socialismo romântico, ou de uma projeção de uma vida comunitária que havia entre esses povos, antes do capitalismo, antes da modernidade, que de alguma maneira se preservam ainda. Não foram totalmente destruídos, foram readaptados na modernidade, e inspiram o projeto futuro, por isso que eu falo lá na abertura que não há futuro sem passado.
E me parece que essa consciência tem aumentado entre as pessoas, entre uma certa esquerda, entre certas pessoas progressistas, entre grupos alternativos, isso tem aumentado, não sei se é uma coisa que se generaliza, me parece que não, mas aumentaram alguns nichos, respondendo à segunda pergunta que você fez. E aí é muito interessante conectar esse senso de comunidade com uma outra dimensão de comunidade também, que é essa comunidade e comunhão dos seres humanos com a natureza. A gente tem uma inspiração muito grande aqui no Brasil do Krenak, do Kopenawa, de pensamentos indígenas, e a gente vai vendo que a modernidade separou o ser humano da natureza. A gente se entende como algo apartado da natureza, e talvez o único caminho para a salvação do planeta, ou para a salvação da humanidade, é a gente se reconectar com a natureza.
Agora, a gente sempre tende a pensar que a reflexão, que esse olhar para outras comunidades, é um interesse exclusivo da esquerda. Que uma política de esquerda vai sempre buscar essa sociedade mais igual, mais coletiva, mais justa. Mas como isso se dá nesses casos, Fabricio? A gente tem tido políticos, planos de governo de esquerda, que têm dado vazão a isso, ou esse termo já não dá mais conta?
Tem mais vazão em candidatos e projetos de esquerda do que em candidatos e projetos de direita, mas, dito isso, há que se considerar, como você mesmo mencionou, algo muito fundamental, que é entender que existem várias esquerdas e existem várias direitas, e que existem também algumas políticas e algumas concepções que vão além da concepção de esquerda e de direita. Não estou aqui reafirmando aquela noção lá do final do século XX de uma superação da esquerda e da direita, dessa dicotomia, de uma ideia de ir para além da esquerda e da direita, nada disso. Eu só estou fazendo uma observação de que a gente vê claramente que alguns desses projetos, alguns desses pensadores que desenvolvem esses projetos e conceitos, eles não se encaixam nessa dicotomia esquerda e direita porque consideram essa dicotomia ocidental. Consideram essa dicotomia uma imposição do ocidente, da modernidade, e tentam escapar e ir além disso.
Propostas de transmodernidade, propostas indigenistas… Tem muitos pensadores indígenas dos Andes e da Amazônia que não se declaram e não se consideram de esquerda, muito menos de direita, claro. E tem pensadores também que trabalham com o Ubuntu no sul da África ou que trabalham com essa noção de felicidade nacional bruta no Butão, nos Malaias, na Ásia Central, que não se definem como de esquerda nem de direita, muito pelo contrário. Exatamente porque eles consideram as suas propostas (às vezes algumas versões mais fortes dessas propostas) não ocidentais; Consideram uma superação da modernidade e aí colocam a própria ideia de esquerda e a própria ideia do socialismo e do marxismo como ideias que fazem parte do ocidente também.
Mas eu considero, particularmente até, pela minha formação, que essa dicotomia esquerda e direita expressa muita coisa ainda e não deve ser abandonada. Mas se deve considerar que tem coisas que não entram nela, tem expressões da vida social e política do mundo que não entram nela. Eu falo aqui a partir da academia, disciplinas da ciência política, das ciências sociais, eu sou professor, sou pesquisador na área da ciência política, da política internacional, são disciplinas muito ocidentais, são disciplinas muito atravessadas por isso, por ideias, concepções de Estado, de democracia, de esquerda, de direita, que são muito ocidentais. A gente precisa ir além disso, a gente precisa entender que existem outras formas de vida e outras formas de lidar com o mundo, com a natureza e tudo mais.
Falando especificamente da esquerda brasileira, me parece que em comparação com algumas outras esquerdas da periferia, do Sul global, a nossa esquerda nessa comparação ainda é bastante eurocêntrica, inspirada na Europa Ocidental, inspirada nas ideias chamadas ocidentais. E a gente está em processo de superação disso, mas observando o governo, observando os partidos hegemônicos e as principais figuras da esquerda brasileira, é claro que elas estão totalmente focadas ainda na ideia de desenvolvimento ocidental, de crescimento econômico, na ideia de subir o PIB, de explorar os recursos naturais da forma mais enfreada possível. Isso me parece evidente, a gente precisa superar e é muito difícil superar.
E trazendo mais um ponto muito próximo da realidade brasileira, queria te ouvir um pouco sobre o que você percorre ali no capítulo A Invenção da Negritude. Você vai dizer que o conceito é muito importante como resposta ao racismo que segue vigente, também numa ideia de formulação transnacional, e aí queria te ouvir um pouco sobre como esse conceito tem puxado discussões, empurrado de certa forma a sociedade a pensar outras saídas, pensar outros futuros.
Essa noção de negritude surgiu há quase um século atrás, tem uma origem entre pensadores caribenhos e pensadores africanos, que foram se encontrar em Paris, quando Paris era a capital do mundo intelectual e era a metrópole das colônias das quais esses pensadores vinham. É uma ideia de encontros, de encontros entre realidades diferentes, ocidente e não ocidente, uma ideia muito forte no século XX que entrou no Brasil muito rápido, muito cedo, ali nos anos 1940, através principalmente do Abdias Nascimento, nossa grande referência intelectual da história do movimento negro brasileiro, na minha opinião.
E é um conceito que já foi muito criticado por conta de essencializar um pouco a figura do negro, até biologizar um pouco características inatas dos povos negro-africanos. Essas eram as propostas principalmente do Léopold Senghor, um dos criadores do conceito, mas um outro grande criador do conceito, o Aimé Césaire, que hoje é mais conhecido e hoje é mais resgatado, ele tinha propostas bem menos essencialistas e menos biológicas. Eu discuto bastante isso no capítulo sobre negritude no livro, com mais profundidade.
Mas esse conceito, apesar de muitas críticas que recebeu, ele segue vigente. É quase um senso comum entre diversos movimentos, movimentos negros, inclusive no Brasil, e é um conceito, uma ideia, uma noção que vai sempre sendo resgatada. Ela sempre volta, sempre volta, volta os que não foram. E ela, como uma bandeira política, tem muita força, inspirou muitas correntes de pan-africanismo, inspirou ideias de valorização de literaturas africanas e caribenhas, a ideia do Black is Beautiful e tudo mais. E percorreu o mundo inteiro, ainda tem muita força no Brasil.
Nessa nova geração mais recente dos movimentos negros brasileiros, sempre no plural, segue sendo uma das inspirações intelectuais, principalmente através do Césaire, que é muito analisado no livro. Há um resgate muito forte do Césaire nos últimos anos no Brasil, através de pensadores pós-coloniais e decoloniais. E a palavra negritude ficou, às vezes sem aprofundamento, sem lembrar muito qual é a origem, mas essa ideia ficou e hoje me parece o movimento social mais importante e revolucionário no Brasil.
Da mesma forma, para a gente fechar, trazer um pouco do pensamento indígena, de forma geral, Fabricio, no caso brasileiro: que impacto tem a circulação das ideias de gente como Ailton Krenak, como Davi Kopenawa, mais tantas pessoas que a gente poderia citar aqui, ocupando locais políticos, culturais, enfim, o que esses espaços conquistados nos provocam também na hora de imaginar esses outros futuros possíveis?
Isso vai forçando a gente, nas esquerdas e entre intelectuais brasileiros, a se reinventar e a refletir. A partir da minha perspectiva, do lugar de onde eu falo, de onde eu expresso aqui, é fundamental.
Eu dou aulas, disciplinas de pensamento brasileiro. Até alguns anos atrás, não havia nessas disciplinas, entre os que vieram antes de mim, bibliografia com autoras e autores negros e indígenas. Não havia mulheres. E hoje é inconcebível dar uma aula sobre o pensamento brasileiro, sobre a história das ciências sociais no Brasil, sem tratar de pensadoras mulheres, negros, indígenas. Isso só no meu campo, aqui na minha área, minha sub-área. Isso tem um impacto muito grande na sociedade e também tem bastante reação.
A gente sabe que parte dos ódios provocados no Brasil e na América Latina toda, nos últimos 10, 15 anos, pelo menos a partir do começo dos anos 2010, boa parte desses ódios tem a ver com o nascimento, o renascimento ou visibilização de todas essas questões, de todos esses grupos. Não é que não existissem antes, mas houve um fortalecimento muito grande nos últimos anos. E isso é parte do crescimento das novas direitas, das extremas direitas no Brasil e na região.
Então são várias dimensões para serem consideradas, mas os avanços em termos de políticas públicas, de direitos, das mal chamadas minorias, das minorias políticas, são fundamentais. Ideias que são trazidas por esses pensadores muito importantes. Tanto o Krenak quanto o Kopenawa trazem ideias muito semelhantes às que estão no livro.