O convite de bell hooks para que os homens mudem

Por Paulo Silva Junior

Já corria o início do século XXI quando bell hooks revelou algo que, para ela, era bastante instigante em relação ao feminismo: por que é que as mulheres pareciam ter tão pouco a falar sobre os homens? Dentro do ambiente da militância, parecia estar permitido mostrar todo repertório de elaboração do ódio e da revolta diante do patriarcado. Mas não havia interesse em discutir o que significa amar os homens, e mais: expressar esse amor sem medo; muito menos discutir como o patriarcado atinge exatamente quem supostamente se beneficia dele.

A vontade de mudar bagunça essa impressão. “Um livro para falar de macho?” Sim. bell hooks recorda a pensadora Barbara Deming como uma das poucas figuras feministas a buscar um espaço de conversa sobre o sentimento em relação aos pais, filhos, irmãos, amigos, companheiros, paixões, amantes, parceiros do sexo masculino. Para além de pensar que, “ah, os homens não têm salvação”, a proposta é imaginar que eles não sejam assim tão incapazes de se afastar desse estado de dominação masculina.

A própria bell hooks escreve, ainda no prefácio, que “pensadoras feministas que queriam incluir os homens na discussão, como eu mesma, eram frequentemente taxadas de machocentradas — e desprezadas. Estávamos dormindo com o inimigo”. E então ela reconhece uma certa virada onde, à medida que o feminismo evoluiu, foi ficando mais evidente que o sexismo não seria vencido sem que os homens também se engajassem na luta.

No limite, a escritora acredita que não passa de ficção de “falso feminismo” a ideia de que as mulheres podem encontrar poder num mundo sem homens, ou que neguem qualquer conexão com eles. A saída seria enfrentar a realidade e expressar a verdade diante dos homens. Articular-se não para recusá-los, mas para reforçar claramente que, se os homens não vão desaparecer do mundo, é preciso que mudem.

Acontece que, diante dos fatos cotidianos, vira e mexe volta à tona a reflexão sobre o pacto da masculinidade. Vale muito na política, que o diga o Gabinete do Ódio formado pelos assessores de Jair Bolsonaro para tocar as redes sociais do ex-presidente, numa espécie de milícia virtual propagadora de mentiras (com seus fetiches como o kit gay). Vale para as audiências de casos de violência contra a mulher, como quando Mariana Ferrer teve de ouvir, em julgamento, a tese de “estupro culposo” diante de um público majoritariamente masculino, claro. Vale para as amizades entre os jogadores de futebol — no ambiente dos “parças”, pouco se altera quando um colega de vestiário é acusado de agressão ou até chega a ser preso, como os casos recentes de nomes de sucesso tipo Robinho e Daniel Alves.

Então bell hooks, entendendo bem esse contexto, percorre o tema por diversos ângulos, pisando com firmeza nesse terreno arenoso. Se os homens parecem tão capazes de manter esse vínculo que os protege e mantém as coisas como estão, ela começa dando um passo atrás, lembrando que as mulheres querem ser amadas pelos homens, sejam lésbicas, héteros, bissexuais — não importa a orientação sexual. Por mais que uma mulher não tenha interesse de se relacionar sexualmente com homens, existem o pai, o avô, eventualmente um irmão, amigos. No livro, além de falar de parceiros amorosos, bell hooks expõe a relação com o pai e com o irmão, nessa busca iminente, ingrata, pelo vínculo.

“O ato de escrachar os homens, tão intenso quando o feminismo contemporâneo surgiu, por volta dos anos 1970, foi, em parte, o colérico disfarce da vergonha que as mulheres sentíamos, não porque os homens se recusassem a compartilhar seu poder, mas por não conseguirmos seduzir, convencer ou persuadir os homens a compartilhar suas emoções – a nos amar. […] A vontade de mudar é a oferta que trato ao banquete da reapropriação e recuperação masculina de si, do seu direito emocional de amar e ser amado. […] Em suma, homens e meninos salvam a si mesmos quando aprendem a arte de amar.”

Nesse convite ao que ela bem chamou acima de banquete, há um interesse didático de decifrar como é que chegamos até aqui. Entender o patriarcado, entender o que significa ser um menino quando criança, para aí sim chegar na violência, no ser sexual e no trabalho, ou seja, na prática adulta do homem. Trata-se de um texto valente diante da possível recusa de algumas leitoras — que certamente terão seus motivos para tal. Não é trivial compreender que bell hooks está falando em cura da masculinidade e recuperação da integridade masculina. É um otimismo, racional e bem organizado, frente a um tema tão duro.

O capítulo “Masculinidade feminista” é especialmente provocador. Entre outras abordagens, bell hooks escreve que esse contexto de dominação masculina impede inclusive que os pais toquem o coração de seus filhos e filhas, e que eles são impedidos de se amar pela própria regra patriarcal, que também os torna submissos. No fim, é uma visão que acredita que as novas gerações, se livrando de um pensamento sexista e com mais atenção ao seu redor (à paternidade, por exemplo, que seria um percurso de mudança nas habilidades relacionais), podem caminhar para uma parceria mútua e recíproca, uma troca em que seja realmente possível nutrir um amor se livrando da hierarquia e da diferença que estão postas. 

A vontade de mudar é um livro aberto, uma conversa corajosa que puxa a cadeira numa roda de mulheres para falar: precisamos ficar ao lado dos homens que estão dispostos à cura, homens que amam e que desejam amar. De braços e corações dispostos, a reflexão indica a quem lê — mulheres e homens — uma proposta de união em torno de espíritos feridos buscando encontrar o caminho de casa. Do homem que quer se transformar, do menino com sede de mudança, bell hooks se faz parceira. Com censo crítico e olhar atento, claro. Sem evitar palavras duras. Mas de mãos dadas.

Também pode te interessar