Madonna: amante da casa grande ou irmã de alma?

Por bell hooks
Trecho de Olhares negros: raça e representação 

 

“Estrelas” brancas como Madonna, Sandra Bernhard e muitas outras falam publicamente sobre seu interesse pela cultura negra, sobre a apropriação que fazem dela, como mais um símbolo do seu radical chic. Elas buscam intimidade com aquela negritude “indecente” da qual as boas moças brancas mantêm distância. Para consumidores brancos e não negros, isso confere a elas um sabor especial, um tempero extra. Afinal, é um fenômeno histórico recente que qualquer garota branca possa ir longe ostentando sua fascinação e inveja da negritude. O problema com a inveja é que ela é sempre capaz de destruir, apagar, dominar e consumir o objeto de seu desejo. É exatamente isso o que Madonna tenta fazer quando se apropria de aspectos da cultura negra e os transforma em mercadoria. Não há necessidade de dizer que esse tipo de fascinação é uma ameaça. Impõe um risco. Talvez esse seja o motivo pelo qual tantas mulheres negras adultas com quem conversei sobre Madonna não têm interesse por ela e fazem comentários do tipo: “A vadia nem sabe cantar”. Foi apenas entre as jovens negras que consegui encontrar fãs fervorosas de Madonna. Embora eu com frequência admire Madonna, e sim, às vezes, até a inveje porque ela criou um espaço cultural onde pode se inventar e reinventar e receber apoio público e recompensas materiais, não me considero uma fã de Madonna.

Uma vez li uma entrevista em que Madonna falava de sua inveja da cultura negra, na qual declarou que queria ser negra quando criança. É um sinal de privilégio branco ser capaz de “ver” a negritude e a cultura negra de um ponto de vista em que sejamos marcados e definidos apenas pela rica cultura de oposição criada pelas pessoas negras como resistência. Tal perspectiva permite que a pessoa ignore a dominação supremacista branca e a dor que ela provoca via opressão, exploração, feridas e mágoas diárias. Pessoas brancas que não veem a dor negra nunca entendem realmente a complexidade do prazer negro. E não surpreende então que, quando tentam imitar a alegria de viver que enxergam como a “essência” e a alma da negritude, suas produções culturais possam ter um ar farsesco e uma falsidade que podem atiçar e mobilizar ainda mais públicos brancos, embora deixem várias pessoas negras indiferentes.

Não é preciso dizer que, se Madonna dependesse de multidões de mulheres negras para manter seu status como ícone cultural, teria sido destronada há algum tempo. Muitas das mulheres negras com quem falei expressaram um ódio e um desprezo profundo por Madonna. A maioria permaneceu indiferente às minhas tentativas cuidadosas de insinuar que, debaixo daqueles sentimentos negativos, poderia estar à espreita a inveja e, ouso dizer, o desejo. Nenhuma mulher negra com quem conversei declarou que queria “ser Madonna”. No entanto, basta olhar para o número de artistas/estrelas negras (Tina Turner, Aretha Franklin, Donna Summer, Vanessa Williams, Yo-Yo etc.) que receberam grande reconhecimento na cultura de massa quando demonstraram que, assim como Madonna, também tinham uma dose saudável de “ambição loira”. Suas carreiras foram claramente influenciadas pelas escolhas e estratégias de Madonna. 

Para uma massa de mulheres negras, o racismo e a supremacia branca são a realidade política que está por trás do reconhecimento por parte de Madonna e por nós mesmas de que esta é uma sociedade onde “loiras” não apenas “se divertem mais”, mas também têm mais possibilidades de ser bem-sucedidas em qualquer iniciativa. Não podemos encarar a mudança da cor de cabelo de Madonna apenas como uma mera questão de escolha estética. Eu concordo com Julie Burchill quando ela nos lembra, em seu trabalho crítico Girls on Film[Garotas no cinema]: “O que se pode dizer da pureza racial se as melhores loiras eram todas morenas (Harlow, Monroe, Bardot)? Acho que isso significa que não somos tão brancos quanto pensamos. Acredito que isso significa que a Pureza é uma Chatice”. Também sei que é o desejo expressado pela Outra não loira por aquelas características vistas como marcas essenciais da estética da superioridade racial que perpetua e mantém a supremacia branca. Nesse sentido, Madonna tem muito em comum com as multidões de mulheres negras que sofrem de racismo internalizado e são eternamente aterrorizadas por um padrão de beleza que sentem que jamais poderão corporificar de verdade.

Como muitas mulheres negras que ficaram de fora da fascinação cultural pela beleza loira e que conseguiram alcançá-la apenas por meio da imitação e do artifício, Madonna frequentemente se recorda de que era uma moça branca da classe trabalhadora que se achava feia, fora do padrão de beleza dominante. E, de fato, o que algumas de nós gostamos nela é a forma como desconstrói o mito da beleza natural branca ao expor até que ponto ela pode ser, e geralmente é, construída e mantida artificialmente. Ela zomba do ideal de beleza convencional racista ao mesmo tempo que se esforça para incorporá-lo. Dada a sua obsessão em expor a realidade de que a beleza feminina ideal nesta sociedade pode ser obtida por artifício e construção social, não deveria surpreender que muitos de seus fãs sejam homens gays, e que uma maioria de homens não brancos, particularmente os negros, estejam entre eles. 

[…] Certamente ninguém, nem mesmo os fãs mais fervorosos de Madonna, insiste que sua beleza não é resultado de um artifício habilidoso. E, de fato, um dos principais pontos do documentário Na Cama com Madonna (1991) era demonstrar quanto trabalho envolvia a construção de sua imagem. No entanto, quando as cartas estão na mesa, a imagem que Madonna mais explora é a “garota branca” por excelência. Para manter essa imagem, ela deve sempre se posicionar como uma forasteira em relação à cultura negra. É essa posição de forasteira que possibilita que colonize e se aproprie da experiência negra para seus fins oportunistas, mesmo quando tenta mascarar seus atos de agressão racista como reconhecimento. E nenhum outro grupo nesta sociedade vê isso tão claramente quanto as mulheres negras. Pois nós sempre soubemos que a imagem de inocência da feminilidade branca construída socialmente se baseia na produção contínua do mito machista/racista de que mulheres negras não são inocentes e nunca poderiam ser. Uma vez que sempre fomos codificadas como mulheres “maculadas” na iconografia cultural racista, nunca poderemos, como Madonna, trabalhar nossa imagem como a da mulher inocente ousando ser má. A cultura dominante sempre lê o corpo da mulher negra como um sinal de experiência sexual. Em parte, muitas mulheres negras que ficam enojadas com a ostentação que Madonna faz da experiência sexual estão enfurecidas porque a própria imagem da agência sexual que ela é capaz de projetar e afirmar com ganhos materiais tem sido o padrão usado por esta sociedade para justificar seus contínuos ataques e agressões ao corpo da mulher negra. A vasta maioria das mulheres negras nos Estados Unidos, mais preocupada em projetar imagens de respeitabilidade do que com ideias de agência sexual e transgressão, frequentemente não sente que temos a “liberdade” de agir com rebeldia  em relação à sexualidade sem sermos punidas. Basta contrastar as histórias de vida de Tina Turner e de Madonna para vermos as diferentes conotações que a agência sexual “selvagem” recebe quando é afirmada por uma mulher negra. Só recentemente Turner foi capaz de assumir o controle sobre a própria vida e carreira representando-se publicamente como um ser sexualmente ativo. Durante anos, a imagem pública de uma postura sexual agressiva projetada por Turner escondia o grau de abuso e exploração sexual que ela sofria em sua vida privada. Ela também foi explorada materialmente. A carreira de Madonna não seria tudo isso se não houvesse uma Tina Turner — e, ainda assim, ao contrário de sua contemporânea Sandra Bernhard, Madonna jamais expressa a dívida cultural que tem com as mulheres negras. 

[…] Às vezes é difícil encontrar palavras para fazer uma crítica quando nos vemos atraídos por algum aspecto de uma performance, mas incomodados por outros, ou quando um artista demonstra mais interesse em promover causas sociais progressistas do que o habitual. Podemos ver esse artista como à prova de críticas. Ou podemos sentir que nossa crítica não irá intervir na idolatria a esse artista como um ícone cultural.

Entretanto, não falar nada é ser cúmplice das mesmas forças de dominação que fazem a “ambição loira” necessária para Madonna alcançar o sucesso. Tragicamente, tudo no trabalho de Madonna que é transgressor e potencialmente empoderador para mulheres e homens feministas pode ser enfraquecido por tudo o que ele contém de reacionário e que não é, de forma alguma, incomum ou novo. Em geral são os elementos conservadores em seu trabalho, que convergem com o status quo, os que têm maior impacto. Por exemplo: diante da homofobia galopante nesta sociedade e a concomitante obsessão voyeurística heteronormativa com estilos de vida gay, até que ponto Madonna tenta desafiar isso de forma progressista se ela insiste em principalmente representar gays como de algum modo aleijados ou defeituosos emocionalmente? Ou quando Madonna responde à crítica de que explora homens homossexuais afirmando com arrogância: “O que significa exploração? […] Em uma revolução, algumas pessoas se machucam. Para fazer as pessoas mudarem, você precisa virar a mesa. Alguns pratos são quebrados”.

Eu só posso dizer que não soa como libertação para mim. Talvez quando Madonna explorar aquelas memórias de sua infância numa família problemática da classe trabalhadora de maneira que lhe permita compreender intimamente as políticas da exploração, da dominação e da submissão, ela terá uma conexão mais profunda com a cultura negra de resistência. Se e quando esse questionamento radical acontecer, ela terá o poder para criar produções culturais novas e diferentes, trabalhos que serão realmente transgressores — atos de resistência que transformam em vez de apenas seduzir.

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