Mamdani transformou indignação em entusiasmo em Nova York

Por Paolo Demuru
Autor de Políticas do encanto
Publicado na Folha de S. Paulo

Política é semiótica, uma arte de disputa de sentidos, e Zohran Mamdani, prefeito eleito de Nova York, parece saber disso. Das pautas aos slogans, das ruas às redes, dos logotipos à roupa, sua campanha foi um exemplo de coesão, coerência e eficácia discursiva —de como ideias progressistas simples, fortes e bem comunicadas podem, hoje, se impor em um cenário marcado pelo avanço do autoritarismo.

“Vencemos porque os nova-iorquinos acreditaram que o impossível podia se tornar possível”, disse Mamdani a seus apoiadores na noite de 4 de novembro, logo depois da apuração dos votos. O impossível: colocar um homem de 34 anos nascido em Uganda, muçulmano e socialista no comando da maior cidade dos Estados Unidos, no centro do capitalismo mundial, na terra natal de Donald Trump. Um candidato que propôs ônibus gratuitos, congelamento dos aluguéis e mercados públicos com preços controlados. Deu certo.

A campanha de Mamdani tem muito a ensinar sobre política na era das plataformas digitais. No entanto, para tirarmos as devidas lições da sua eleição, é preciso se desvencilhar de leituras imediatistas, que atribuem seu sucesso ao bom uso das redes: sim, o candidato soube usá-las de maneira sagaz, apostando em vídeos curtos e verticais e mensagens diretas, assim como em participações em esquetes de influenciadores, mas sua vitória tem razões mais profundas, que vão além do formato dos reels de TikTok e dos chatbots de Instagram.

Antes disso, Mamdani tinha uma boa história, com estruturas narrativas e valores facilmente compreensíveis e replicáveis. Uma história inclusiva e envolvente que podia ser contada por meio de linguagens e suportes diversos, seja nas mídias sociais, em um debate ou em uma conversa no metrô. Uma história de esquerda.

CONCRETUDE E UTOPIA | “Uma cidade que podemos pagar”, “creche para todos”, “fazer o halal (prato de comida árabe vendido nas ruas de Nova York) custar 8 dólares de novo”, alusão ao slogan trumpiano “Make America great again”. As propostas e os lemas de Mamdani abordaram problemas e desejos concretos. Ele conseguiu se reapropriar de uma pauta, o custo de vida, que foi central na campanha eleitoral de Donald Trump em 2024 falando do preço da comida, das escolas e do ônibus.

No entanto, o foco nas condições de existência material dos nova-iorquinos só ganhou potência e projeção ao ser inserido em uma dimensão narrativa utópica: “o nosso tempo é agora”, “a esperança está viva”, “uma vida digna não deve ser reservada apenas a pouco afortunados“. “Afford to live and afford to dream”, se lê em um cartaz na frente do qual Mamdani discursou durante a campanha que joga com o duplo sentido de “afford” —”poder pagar (para viver)” e “poder se permitir (sonhar)”.

PARTICULAR E UNIVERSAL | Isso nos leva a outro ponto forte do discurso de Mamdani: a relação entre valores particulares e universais. Moradia, transporte e escolas dizem respeito a demandas semanticamente claras e circunscritas. Porém, a função que tais termos assumem na narrativa do prefeito eleito de Nova York extrapola os limites de sua definição primeira. Elas falam de algo maior: dignidade, justiça e, sobretudo, liberdade, palavra que também se tornou propriedade exclusiva da extrema direita, preocupada em defender a ideia de uma liberdade de expressão irrestrita contra a suposta censura das esquerdas.

Em um discurso proferido na reta final da corrida eleitoral, Mamdani afirmou: “Por tempo demais, a liberdade pertenceu apenas a quem pôde comprá-la”. “Juntos, Nova York, vamos congelar os aluguéis. Juntos, Nova York, vamos tornar os ônibus mais rápidos e gratuitos. Juntos, Nova York, vamos entregar creches […]. Faremos da nossa cidade um lugar onde cada pessoa que a chama de lar possa ter uma vida digna […]. Dignidade, meus amigos, é apenas outra forma de dizer liberdade.”

Dos aluguéis, dos ônibus e das creches à dignidade e à liberdade. Eis o que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, teóricos do populismo de esquerda, chamariam de uma sólida cadeia de equivalências, que une demandas diversas e elege alguns termos guarda-chuva —significantes vazios, nos termos dos autores— para abarcá-las e abrir espaço para outros possíveis encadeamentos.

Garantir essas conexões entre demandas precisas e, simultaneamente, entre essas e valores universais —dignidade e liberdade no caso mencionado— é tarefa imprescindível para os progressistas. O que deve ser feito é construir novas modulações que desloquem os quadros de sentidos construídos pela extrema direita mundo afora.

Mamdani fez isso. Ele mostrou que liberdade não significa falar o que bem se quer no X ou no Instagram, como dizem Trump, Elon Musk ou Nikolas Ferreira, mas viver em cidades e em um mundo acessíveis, em todos os sentidos do termo: financeiros, físicos e culturais. Um redirecionamento semântico que pode ser replicado em outras esferas temáticas: trabalho, família, pátria e segurança pública, cujos contornos aguardam ainda uma redefinição mais marcadamente de esquerda.

PERTENCIMENTO | Outro ingrediente do sucesso de Mamdani foi falar dele, de suas propostas e das pessoas que representa. Ele escapou de um dos piores vícios das esquerdas contemporâneas: correr atrás do discurso de seus adversários, negando, desmentindo, desconstruindo e rebatendo incessantemente suas falas. Sim, ele os identifica, pois apontar os inimigos —Andrew Cuomo, Trump e os oligarcas das big techs— é crucial para a construção do eu e do nós.

Há nesse oscilar entre rivalidades locais e globais uma tentativa de capitalizar insatisfações transversais —o custo dos aluguéis e a precarização da existência causada pela plataformização do trabalho, por exemplo— por meio das quais une e energiza ainda mais o seu grupo.

A força desta agenda “a favor” foi tão aglutinadora que, quando os adversários resolveram atacá-lo explorando temas escorregadios, como o seu apoio à causa palestina, com o objetivo de fragmentar a sua base de seguidores, foram eles que se feriram. Ao reconduzir a luta entre nós e eles no campo narrativo do alto custo de vida, Mamdani se esquivou de armadilhas posicionadas ao longo do seu caminho, obrigando o inimigo a jogar onde menos se sentia à vontade.

A campanha envolveu algo em torno de 100 mil voluntários, que foram bater nas portas de seus vizinhos e conversar sobre seus anseios e desafios. Junto a eles, o candidato ocupou a cidade, caminhou pelos seus bairros, andou de bicicleta, taxi e metrô e abraçou sua diversidade, produzindo vídeos em espanhol, hindi e bengalês e comendo pratos típicos de imigrantes. Até a identidade visual dos seus cartazes, que retoma os letreiros das bodegas, mercados de bairro da cidade, é um signo dessa dupla inserção: de Mamdani em Nova York e de Nova York em Mamdani.

A campanha do prefeito eleito criou um senso de comunidade, nas redes e nas ruas. Foi uma resposta ao individualismo exacerbado do capitalismo neoliberal, da política do cada um por si, e ofereceu conexão a milhares de jovens abatidos pela solidão. Ou seja, o nós emergiu também dos afetos compartilhados e do estar e do sentir juntos a outras pessoas com as mesmas visões e os mesmos propósitos.

POSITIVIDADE VS. NEGATIVIDADE | Em uma época em que o debate público está marcado por paixões negativas —ódio, ressentimento, resignação, indiferença—, a campanha de Mamdani conseguiu um feito notável: entusiasmar. Ou melhor, transformar a indignação em entusiasmo.

A indignação —outra paixão do nosso tempo, a cujo espetáculo assistimos cotidianamente nas redes sociais— é estática e autocomplacente. Como dizia o semioticista Paolo Fabbri, o indignado se deleita com a sua própria indignação: se queixa, mas não faz nada para mudar a situação.

O entusiasmo, ao contrário, não é um mero estado de ânimo, mas uma disposição à ação. O entusiasmo, nos termos da semiótica discursiva, é uma paixão do fazer, que nos leva a colocar todas as nossas energias na realização de um projeto. Há um trecho do discurso de vitória de Mamdani em que isso fica nítido: “Vencemos porque insistimos que a política não seria algo feito para nós. Agora, é algo que nós fazemos”. O candidato captou a indignação contra o atual estado de coisas e a transformou em entusiasmo. Uma boa política precisa apreender a articular paixões.

Mamdani respondeu ao ódio com ironia. Em um vídeo icônico, está prestes a subir em uma bicicleta. Do outro lado da rua, alguém grita: “Comunista!”. Sem perder o sorriso e a compostura, ele responde: “Se diz ciclista!”. Seus gestos, falas e motes são otimistas.

Ele não fez campanha dizendo coisas como “se Cuomo ganhar, Nova York vai acabar”. Não gastou seu tempo reafirmando quão fascistas e antidemocráticos são Trump e seus colegas. Não desenhou cenários cinzentos e apocalípticos. Convidou os nova-iorquinos a se juntarem na construção de uma cidade e de uma democracia melhores.

Talvez esse seja um aprendizado útil para repensarmos os discursos sobre o clima, tão centrados na ameaça (real) e no medo (legítimo) da iminente extinção do planeta. Uma narrativa com cargas afetivas opostas não seria mais eficaz?

LIÇÕES | Existe uma tendência e, talvez, um certo gozo em julgar os erros e os acertos da comunicação das esquerdas com base no bom ou no mau uso das redes sociais. Ter ciência de suas linguagens, práticas discursivas e arquiteturas algorítmicas é crucial para ter êxito na arena do debate público. No entanto, se esquece com frequência que não basta fazer um vídeo de capivaras para construir consensos. Antes, as capivaras precisam ter algo contundente para dizer.

Os recentes avanços do governo Lula (PT) nas plataformas não se devem apenas à forma das postagens, mas também ao seu conteúdo, em particular ao fato de terem começado a promover pautas claras e assumidamente de esquerda, como a isenção do Imposto de Renda e a taxação dos super-ricos.

Pegar a estratégia de Mamdani e transformá-la em uma cartilha para qualquer campanha progressista pode ser um erro. Uma coisa é um candidato socialista ganhar em Nova York, outra é vencer na Pensilvânia ou em São Paulo. Quando o campo muda, as modulações das narrativas e dos valores em jogo devem mudar. Dito isso, há ensinamento gerais que podem ser extraídos da sua história.

Primeiro: juntar pragmatismo e utopia e partir do cotidiano e projetar sonhos. “Roti and roses” (pão indiano e rosas) foi outro slogan de Mamdani, que resume bem a junção entre as duas dimensões.

Segundo: disputar valores universais e reenquadrá-los em novos universos semânticos. O campo progressista não pode deixar que temas como liberdade, trabalho e família se tornem prerrogativa da extrema direita. Quanto a isso, um caso bem-sucedido é o do patriotismo, reformulado no Brasil, após o tarifaço de Trump, nos termos da defesa da soberania nacional e do povo brasileiro. Por outro lado, os próximos meses virão com um desafio: o tema da segurança pública, cuja urgência se impôs recentemente.

Terceiro: falar “a favor” e não apenas “contra”. As conquistas do governo Lula se deram justamente quando o presidente teve a coragem de defender suas propostas e não recuar depois de ataques dos rivais, como aconteceu no caso da falsa taxação do Pix.

Quarto: construir paixões positivas. A indignação é importante, mas precisa ser organizada e, sobretudo, transformada em afetos que levem à ação, capazes de fomentar o entusiasmo e, de uma forma ou de outra, encantar.

A democracia não será salva com uma mensagem que insiste nas ameaças à democracia. A democracia será salva fabricando e difundindo o desejo de uma sociedade mais justa, de empregos mais dignos, de um custo de vida mais baixo, de mais tempo para passar com a família e os amigos e de um mundo, parafraseando Mamdani, que podemos pagar e onde podemos nos permitir sonhar.

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