A dor daqueles que lembram

Por Chris Hedges
Prefácio de Quero estar acordado quando morrer

 

Um grande número de escritores, jornalistas e fotógrafos palestinos, muitos mortos nos ataques israelenses a Gaza, está determinado a nos fazer ver e sentir o horror desse genocídio. No fim, eles vão vencer as mentiras contadas pelos assassinos.

Escrever e fotografar em tempos de guerra são atos de resistência, atos de fé. Atos que confirmam a crença de que um dia — dia este que talvez os escritores, jornalistas e fotógrafos não estejam vivos para ver — as palavras e imagens poderão evocar piedade, compreensão e indignação, e proporcionar sabedoria. Eles relatam não apenas os fatos, embora os fatos sejam importantes, mas a textura, a sacralidade e a dor das vidas e comunidades perdidas. Eles contam ao mundo como é a guerra, como aqueles que são abocanhados por sua mandíbula mortal suportam a situação, como alguns se sacrificam pelos outros e alguns não, como é o medo e a fome, como é a morte.

Eles transmitem os gritos das crianças, os lamentos de dor das mães, a luta diária diante da violência industrial selvagem, o triunfo através da sujeira, da imundície, da doença e da humilhação de sua humanidade. É por isso que escritores, fotógrafos e jornalistas — inclusive israelenses — são alvo dos agressores na guerra, para serem destruídos. Eles são testemunhas do mal, um mal que os agressores querem que seja enterrado e esquecido. Eles expõem as mentiras. Eles condenam, mesmo do túmulo, os assassinos. É por isso que Israel matou pelo menos treze poetas e escritores palestinos, além de pelo menos 81 jornalistas, em Gaza desde 7 de outubro de 2023. 

Fui repórter por duas décadas em guerras na América Central, no Oriente Médio (incluindo Gaza), na África e na antiga Iugoslávia. Experimentei os sentimentos familiares de futilidade e indignação. Me perguntava se havia feito o suficiente ou se valia a pena o risco. Mas você continua, porque não fazer nada é ser cúmplice. Você denuncia porque se importa. Você vai conseguir pelo menos fazer com que seja mais difícil para os assassinos negarem seus crimes.

Os jornalistas, escritores e fotógrafos em Gaza estão morrendo como moscas, e muitos deles foram deliberadamente alvos de Israel. Suas mortes me assombram, assim como as mortes daqueles com quem trabalhei. Falo com meus próprios mortos, muitas vezes em meus sonhos, às vezes em meus pesadelos, tão frequentemente quanto falo com os vivos. Tento agora — embora não faça mais coberturas de guerra — honrar a memória e a coragem desses palestinos. Ouço suas vozes. Gravei suas imagens em minha mente. Prometo nunca esquecer. Eles me cercam. Eu me vejo nesses palestinos. Vejo aqueles com quem trabalhei e que já se foram.

O poeta grego Giorgos Seferis, cujo país foi ocupado pelos nazistas, escreve em seu poema “A última parada”:

 

nossa mente é uma floresta virgem de amigos assassinados. E se eu falo com você por meio de contos de fadas e parábolas é porque é mais fácil para você ouvir, e o horror
não é discutido porque é muito vívido
porque é silencioso e transitório:
A dor daqueles que se lembram
entra no sono dia após dia, gota por gota.

 

Atef não é estranho à violência da ocupação israelense. Ele tinha dois meses de idade durante a guerra de 1973 e, como escreve, “tenho vivido em meio a guerras desde então. […] assim como a vida é uma pausa entre duas mortes, a Palestina, como um lugar e como uma ideia, é um intervalo no meio de muitas guerras”. Durante o ataque israelense a Gaza em 2008-2009, ele se abrigou no corredor de sua casa por 22 noites com a esposa, Hana, e os dois filhos, enquanto Israel bombardeava e atacava a região. “Lembranças da guerra podem ser estranhamente positivas, pois tê-las significa ter sobrevivido”, observa.

Ele fez o que os escritores fazem, inclusive seu colega de Gaza, Refaat Alareer, que foi morto, juntamente com o irmão, a irmã e os quatro sobrinhos, em um ataque aéreo ao prédio onde moravam, em 7 de dezembro. O Euro-Mediterranean Humans Right Monitor disse que Alareer foi um alvo deliberado, “bombardeado cirurgicamente em seu prédio”. Sua morte ocorreu após semanas “recebendo ameaças de morte por telefone e pela internet, vindas de contas israelenses”.

Refaat, que pesquisou a obra do poeta inglês John Donne (1572-1631) em seu doutorado, escreveu um poema em novembro, “If I Must Die” [Se eu tiver que morrer], que se tornou seu último testamento. Ele foi traduzido para mais de trinta idiomas e visto quase trinta milhões de vezes:

 

Se eu tiver que morrer,
você deve viver
para contar minha história
para vender minhas coisas
para comprar um pedaço de tecido e algumas cordas,
(de preferências brancas e compridas)
para que uma criança, em algum lugar de Gaza, enquanto olha para o céu,
aguardando seu pai que partiu em chamas —
e não se despediu de ninguém
nem mesmo da sua carne
nem mesmo de si mesmo —
veja a pipa, a minha pipa que você fez, voando lá em cima
e pense por um momento que um anjo está lá trazendo o amor de volta.

Se eu tiver que morrer
que minha morte traga esperança que minha morte seja um conto.

 

Atef publica, obstinado, suas observações — muitas vezes difíceis de transmitir devido ao bloqueio israelense da internet e do serviço telefônico — nos jornais The Washington Post e The New York Times, na revista The Nation e em outras publicações.

No primeiro dia do bombardeio, Omar Abu Chawich, um jovem poeta e músico, é morto por um bombardeio naval israelense. Atef fica pensando nos soldados israelenses que o observam com sua família através de “suas lentes infravermelhas e fotografias de satélite”. Será que eles “conseguem contar quantos pães tenho em minha cesta ou quantos bolinhos de faláfel tenho no meu prato?”, ele se pergunta. Ele observa as multidões de famílias atordoadas e confusas, com as casas em escombros, carregando colchões, sacolas de roupas, comida e bebida. Ele fica em silêncio ao ver “o supermercado, a casa de câmbio, a loja de faláfel, as barracas de frutas, a perfumaria, a loja de doces, a loja de brinquedos… Tudo queimado”.

“Há sangue por toda parte”, além de “brinquedos de crianças despedaçados, latas de supermercado, frutas amassadas, bicicletas quebradas e frascos de perfume estilhaçados”, ele escreve. “O lugar parece um desenho a carvão de uma cidade chamuscada por um dragão.”

Atef deixa o filho adolescente com os parentes.

“A lógica palestina é que, em tempos de guerra, todos devemos dormir em lugares diferentes, de modo que, se uma parte da família for morta, outra parte sobreviva”, escreve. “As escolas da UNRWA estão ficando cada vez mais lotadas de famílias desabrigadas, na esperança de que a bandeira da ONU as salve, embora nas guerras anteriores isso não tenha acontecido.”

Na terça-feira, 17 de outubro, ele tenta ajudar nos esforços de resgate quando a casa de sua cunhada Huda é atingida por um míssil israelense; a maior parte da família morre, exceto Wissam, sua sobrinha de 23 anos, que precisa de cirurgia imediata para amputar as duas pernas e a mão direita.

Folhetos em árabe, lançados por helicópteros israelenses, flutuam do céu. Eles anunciam que qualquer pessoa que permaneça ao norte do uádi Gaza será considerada cúmplice do terrorismo, “o que significa”, escreve Atef, “que os israelenses podem atirar na hora”.

A eletricidade é cortada. Os alimentos, o combustível e a água começam a esgotar. Os feridos são operados sem anestesia. Não há analgésicos ou sedativos. Após os ataques aéreos, ele se junta às equipes de resgate sob o zumbido de drones invisíveis no céu. Um verso de T. S. Eliot, “um amontoado de imagens fragmentadas”, perpassa sua cabeça. Os mortos e os feridos são “transportados em triciclos ou arrastados em carroças por animais”.

No dia 21 de novembro, ele decide fugir do bairro de Jabalia, no norte de Gaza, em direção ao sul, com o filho e a sogra, que se locomove em cadeira de rodas. Eles precisam passar pelos postos de controle israelenses, onde os soldados selecionam aleatoriamente homens e meninos da fila para serem detidos.

“Espalhados aleatoriamente, em ambos os lados da estrada, há dezenas e dezenas de cadáveres. Apodrecendo. Derretendo, ao que parece, no chão. O cheiro é horrível. Da janela de um carro queimado, uma mão se estende em nossa direção, como se pedisse algo — a mim, especificamente. Corpos sem cabeça aqui. Cabeças decepadas ali. Membros e partes preciosas do corpo simplesmente jogados fora e deixados para apodrecer.”

Ele diz ao filho Yasser: “Não olhe. Continue andando, filho”.

A casa de sua família é destruída em um ataque aéreo.

“A casa em que um escritor cresce é um poço de onde pode extrair material”, escreve. “Em cada um de meus romances, sempre que eu queria retratar uma casa típica do campo [de refugiados], eu evocava a nossa. Mudava um pouco os móveis de lugar, mudava o nome da rua, mas quem eu estava tentando enganar? Era sempre a nossa casa.”

Quando a primeira edição desses diários foi publicada, como ebook, em 26 de dezembro de 2023, Atef ainda estava preso no sul de Gaza com o filho. Agora ele saiu. Israel continuou a bombardear Gaza durante o Natal, o Ano-Novo e depois, e ainda está bombardeando, no momento em que imprimimos a edição inglesa do livro, no início de fevereiro, com um número de mortos que já passa de 28 mil.

A história do Natal é a história de uma mulher pobre, grávida de nove meses, e de seu marido, forçados a deixar sua casa em Annásira [Nazaré], no norte de Al-Jalil [Galileia]. O poder da ocupação romana exigiu que eles se registrassem no censo a 145 quilômetros de distância, em Bait Lahem [Belém]. Quando chegam, não encontram hospedagem. Ela dá à luz em um estábulo. O rei Herodes — que soube pelos magos do nascimento do Messias — ordena que seus soldados cacem e matem todas as crianças de até dois anos de idade em Belém e arredores. Um anjo avisa José em um sonho para que fuja, e o casal e o bebê escapam sob a cobertura da escuridão e fazem a viagem de 65 quilômetros até o Egito.

No início da década de 1980, eu estava em um campo de refugiados para guatemaltecos que haviam fugido da guerra em Honduras. Os camponeses e respectivas famílias, que viviam na sujeira e na lama, com suas aldeias e casas queimadas ou abandonadas, estavam decorando as próprias tendas com tiras de papel colorido para marcar o Massacre dos Inocentes.

“Por que esse é um dia tão importante?”, perguntei.

“Foi nesse dia que Cristo se tornou um refugiado”, respondeu um fazendeiro.

A história do Natal não foi escrita para os opressores. Ela foi escrita para os oprimidos. Somos chamados a proteger os inocentes. Somos chamados a desafiar o poder ocupante. Atef, Refaat e outros como eles, que falam conosco sob o risco de morte, ecoam essa injunção bíblica. Eles falam para que não fiquemos em silêncio. Eles falam para que peguemos essas palavras e imagens e as levemos aos principados do mundo que estão orquestrando o genocídio em Gaza — a mídia, os políticos, os diplomatas, as universidades, os ricos e privilegiados, os fabricantes de armas, o Pentágono e os grupos de lobby de Israel. O Cristo bebê não nasceria hoje em uma manjedoura de palha, mas em uma pilha de concreto queimado.

O mal não mudou ao longo dos milênios. Tampouco a bondade.

 

Chris Hedges é jornalista, vencedor do prêmio Pulitzer e do prêmio global da Anistia Internacional para jornalismo de direitos humanos.

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