‘A Madonna que se atreve a desafiar o status quo já era’

Por bell hooks
Trecho de Cultura fora da lei

 

Depois de toda a sua ousadia, de questionar corajosamente as construções sexistas da sexualidade da mulher, Madonna, no auge de seu poder, parou de ir contra o sistema. Sua nova imagem não tem nem um pouco de radicalismo. A perda desse estilo subversivo é ainda mais evidente no livro Sex. De repente, nada sobre a imagem de Madonna é politizado. Em vez disso, com a publicação de Sex, ela assume o papel de sacerdotisa de um hedonismo cultural que procura substituir uma prática política radical e libertadora, que desataria nossa mente e nosso corpo, pela produção e busca ilimitadas de prazer sexual. 

Sex impõe o hedonismo generalizado como alternativa à resistência. A subjetividade radical inconstante, marca registrada quintessencial de Madonna no início da carreira, em oposição a uma identidade fixa conformista, era uma ousadia de ser diferente que não expressava exibicionismo raso, e sim vontade de confrontar, desafiar e mudar o status quo. 

Lembro-me de suas exibições de assertividade sexual nos primeiros videoclipes, como em “Material Girl”, dizendo no programa Nightline que ela havia imposto um limite à violência, à humilhação e à degradação das mulheres. É esse posicionamento como sujeito que desapareceu. Como Susan Bordo nos lembra em seu ensaio “Material Girl: The Effacements of Postmodern Culture” [Garota materialista: os apagamentos da cultura pós-moderna], o desejo de ser diferente “surge por meio da luta política em curso, e não do ato de interpretação criativa”. É irônico que seja justamente nesse momento cultural, quando Madonna se alia ao status quo, que ela insiste em se identificar como radical, declarando: “Eu me vejo como uma revolucionária a essa altura”. Defende sua crença de que Sex terá função política, que vai “abrir a mente de algumas pessoas”, inferindo que o livro levará espectadores a aceitarem e a tolerarem variadas práticas sexuais. A ironia, obviamente, é que, para aqueles espectadores que sempre consumiram uma variedade de material pornográfico patriarcal e/ou um erotismo progressista, Sex não oferece nenhuma imagem nova. Toda vez que abro Sex, lembro-me de um anuário escolar. O layout e o design parecem meio amadores. A mudança constante de tipo de fonte e de estilo evoca lembranças de reuniões sobre o meu próprio anuário do ensino médio, em que concordamos que tudo era válido para permitir que os desejos de todos fossem representados. Esse efeito descontraído parece altamente intencional em Sex. Onde estariam o rosto de formandos e seus colegas de turma, Madonna nos oferece diversas imagens sexuais, muitas das quais parecem ter sido apropriadas de revistas como Players, Playboy, On Our Backs, e assim por diante, com uma diferença especial, obviamente — todas elas apresentam Madonna.

Embora essa coleção de pornografia e erotismo possa seduzir um público de massa (em especial, um público de consumidores adolescentes) que talvez nunca tenha buscado por essas imagens nos muitos outros lugares onde poderiam ser encontradas, é improvável que o livro seja capaz de mudar a visão de qualquer pessoa sobre práticas sexuais. Apesar da propaganda exagerada de Madonna, que faria o público acreditar que ela é a visionária radical apresentando assuntos transgressores para uma audiência de massa, a realidade é que os anúncios, vídeos, filmes e a televisão já estavam explorando essas imagens. Madonna é, na verdade, apenas um elo na corrente do marketing que explora representações da sexualidade e do corpo para ter lucro, uma cadeia que se concentra em imagens antes consideradas “tabu”. Sem querer comprometer sua própria propaganda exagerada, a garota materialista precisa argumentar que suas imagens são diferentes — originais. A grande diferença, obviamente, é que o espaço que ela ocupa como artista cultural e ícone lhe permite alcançar um público muito maior do que os tradicionais consumidores de imagens pornográficas ou de erotismo progressista. Apesar de suas esperanças de intervenção radical, a grande maioria dos leitores parece lidar com Sex como consumidores convencionais de pornografia. O livro é usado para excitar sexualmente, provocar ou estimular um prazer voyeurístico em se masturbar. Não há nada de radical nisso.

O aspecto mais radical de Sex é a apropriação e o uso de uma imagética homoerótica. Esse uso não é único. (…) Em outras palavras, dentro da atual economia canibal de mercado, a disposição em consumir imagens homoeróticas e/ou homossexuais não corresponde a uma disposição cultural de se posicionar contra a homofobia ou de desafiar o heterossexismo. 

A pornografia patriarcal sempre se apropriou do homoerotismo e o explorou. Vale tudo dentro do contexto maior do hedonismo sexual pornográfico, e todos os tabus se tornam parte da mistura de prazeres. Essa experiência não significa que os indivíduos que consomem essas imagens não estejam fortemente comprometidos em manter o heterossexismo e em perpetuar a homofobia. O desejo voyeurístico de olhar ou de experimentar, por meio da fantasia, práticas sexuais que podem ser percebidas como tabu na vida cotidiana não sinaliza uma ruptura no status quo sexual. Por isso, simplesmente retratar essas imagens, propagando-as por meio do marketing de massa para um público mais amplo, não é, por si só, uma intervenção subversiva, em alguns casos, possa ter um impacto desafiador e disruptivo. […]

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