A masmorra para Eike!
Ou um debate sério sobre o sistema prisional?

Desterros, livro que a Editora Elefante lança em fevereiro, conta histórias do único hospital-prisão do estado de São Paulo, lutando contra a tentativa de vingar, calar e esquecer – e contra a ideia de que a prisão é a panaceia para as mazelas sociais do país

Eike Batista deve ir para a masmorra? Ou todos os presos têm direito a condições dignas? Ou, ainda melhor, temos condições de discutir a sério se a cadeia é o melhor caminho de se fazer justiça?

A recente prisão do ex-bilionário voltou a expor um mundo de pensamentos contraditórios que surge a cada vez que se fala sobre encarceramento. Mesmo pessoas e setores da sociedade considerados “progressistas” vibraram com a ideia de que Eike, investigado no âmbito da Operação Lava Jato, iria para uma cela comum de Bangu 9, submetendo-se, assim, às condições desumanas que diariamente são impostas aos detentos e às detentas brasileiras desprovidas de diploma universitário, fama, dinheiro, bons advogados… e tantas outras coisas.

É por essas e outras que decidimos lançar Desterros: histórias de um hospital-prisão. O livro da psiquiatra Natalia Timerman, que trabalha há cinco anos atendendo presidiários e presidiárias de todo o estado de São Paulo no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, na zona norte da capital, mostra como o absurdo segue sendo absurdo, mesmo que tenha se tornado banal. O violento segue sendo violento. São nossos olhos – ora surrados, ora sedentos de sangue – que tentam naturalizar o que em verdade é o horror. Não raro há quem queira piorar o que parece impiorável.

desterros_livro_3D_altaA Editora Elefante começa 2017 em sua paquidérmica toada, com paciência, desencavando aquilo que insistem em soterrar. “Se eu considerasse que todos os homens e mulheres presos são apenas criminosos, quase nada sobre eles poderia ser escrito”, escreve Natalia em seu livro de estreia. “Não digo que quase todos não tenham cometido crimes, mas me parece que, na maioria dos casos, esse é um acontecimento de sua história, muito determinante, mas que não os exclui da comunidade dos homens, como faz supor o estigma que recai sobre quem está ou já esteve preso.”

Para além do ineditismo de colocar atrás das grades um sujeito que até outro dia era “o homem mais rico do Brasil”, capa de revistas, rodeado de belas mulheres, exemplo para o mundo dos negócios e case de sucesso para executivos ávidos por dinheiro, o caso de Eike – e sua repercussão – escancara a visão de que a prisão é uma desgraça. Para muitos, porém, é uma desgraça apenas percebida quando quem tem de fazer suas necessidades num buraco e tomar banho num fiapo d’água é um bilionário; quando ele não pode receber visitas antes de cumprir uma imensa burocracia e é forçado a comer a lavagem que alguma empresa faz, recebendo para isso as verbas surgidas de um contrato suspeito.

Tente mentalizar a expressão “cela comum”: cheiro podre, comida de péssima qualidade, ratos, superlotação, dormir sobre o cimento gelado, riscos diversos ao corpo, violência de todos os lados. “Agora ele vai ver o que é bom tosse”, pensaram alguns – muitos. Os jornais informam que Eike divide um espaço de 15 metros quadrados com outros seis presos, o que não chega a ser o pior dos casos em nosso sistema carcerário. Isso não fará com que seja menos corrupto. Nem fará com que a corrupção seja extinta do território nacional.

De fato, nem Eike, nem ninguém deveria ter direito a privilégios. A prisão especial justamente para quem tem infinitas oportunidades na vida é uma dessas excrescências que não deveriam existir. O que tem, sim, de existir são boas condições para o cumprimento de pena para todos e para todas, sem exceções. Não porque os presos sejam dignos de regalias. Mas porque todo ser humano tem o direito de ser tratado como um ser humano. Isso é o básico do básico. Para além disso, precisamos debater se a prisão é a melhor forma que já inventaram para a punição daquilo que uma sociedade considera como crime. E achamos, honestamente, que Desterros coloca algumas contribuições nesse debate, problematizando o cárcere como panaceia.

Temos a terceira maior população carcerária do mundo. Ultrapassamos a Rússia. Ficamos atrás apenas de Estados Unidos e China. O Ministério da Justiça informa que temos 600 mil presos – e 370 mil vagas. A “solução” encontrada pelo governo golpista e ilegítimo de Michel Temer frente aos massacres ocorridos em janeiro foi liberar verba para construir mais e mais e mais unidades. Para quê? Pedro Abramovay, ex-secretário nacional de Justiça, e Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas, escreveram recentemente artigo para a Folha de S. Paulo no qual advogam que penas alternativas são muito mais eficientes se o que se busca é a chamada “ressocialização”.

A grande maioria das pessoas presas – e, sobretudo, das mulheres presas – responde por tráfico de drogas. Desses, novamente a maioria eram réus primários, sem ligação com facções criminosas, usuários “confundidos” com traficantes por uma polícia cujo modo de agir remonta ao século retrasado. “Os presídios servem, sobretudo, para arregimentar criminosos e transformar pessoas que nunca cometeram crime violento em massa de manobra para organizações criminosas altamente violentas”, escrevem Abramovay e Vilhena, repetindo uma cantilena demonstrada por todos os estudos, mas que nenhum governante até hoje dignou-se a implementar.

A julgar pelo ponto de vista evocado por setores da sociedade, o conceito de justiça por trás da prisão é um castigo que se torna tão mais efetivo à medida que se medievaliza: é vingança, e não justiça. Se Eike estivesse em uma cela com colchão individual, comida de boa qualidade, condições de vida minimamente humanas, muitas pessoas ficariam irritadas: “Isso é um hotel”. Um hotel, certamente, não é o caso do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, onde a autora do livro Desterros trabalha desde 2012. O espaço é a única unidade para atendimento de saúde dos presidiários e presidiárias de todo o estado de São Paulo.

A partir da percepção dos próprios presos — de histórias que foi acumulando, digerindo, transformando —, Natalia reflete sobre as condições de quem está submetido ao cárcere. As já tradicionais mazelas do sistema penitenciário paulista, como a superlotação, os maus tratos e a ação de facções, estão todas presentes em Desterros. Ao longo do livro, porém, o leitor tem a chance de acompanhar a relação única que cada ser humano, detento ou funcionário, acaba desenvolvendo com o ambiente prisional.

É justamente o oposto do que buscam fazer o Estado e a sociedade, pasteurizando as histórias de todas e todos que cruzam a porta de uma prisão. “A perplexidade em que nos lança o olhar do terrível é algo que meu contar procurou manter quando percebi que minha dificuldade em simbolizar o horror não era minha: pertencia ao próprio horror. O indigesto deve permanecer indigesto”, conclui Natalia.

Sobre a autora

Natalia Timerman é médica psiquiatra pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP) e psicoterapeuta em formação pela Associação Brasileira de Daseinsanalyse. Desde 2012 atende mulheres e homens no sistema carcerário do estado de São Paulo, quando estes adoecem e passam — ou ficam — no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário. Pós-graduanda em formação de escritores pelo Instituto Vera Cruz, no núcleo de ficção — embora este livro, infelizmente, não seja um livro de ficção.

Ficha técnica

Desterros — histórias de um hospital-prisão
Natalia Timerman
Posfácio: Bruno Zeni
Projeto gráfico: Bianca Oliveira
Capa: Karen Ka
192 páginas
Editora Elefante
Publicação: fevereiro de 2017
ISBN: 978-85-93115-02-8

Lançamento

14 de fevereiro, 19h

Rua Conselheiro Ramalho, 945 – Bela Vista – São Paulo – SP

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