Por Rosemary Daniell
Publicado no New York Times

 

Carriacou é, ao mesmo tempo, uma ilha das Índias Ocidentais e também a ilha da imaginação de Audre Lorde; Zami é ”um nome Carriacou para mulheres que trabalham juntas como amigas e companheiras”. E mesmo que a afirmação de que, “em Zami, Audre Lorde cria uma nova forma, a biomitografia, combinando elementos da história, biografia e mito” seja um pouco pretensiosa, o livro é, na verdade, uma excelente e sugestiva autobiografia.

De fato, entre os elementos que tornam o livro tão bom estão a honestidade de Lorde e a falta de pretensão, características que transparecem na escrita, evidenciando a evolução de uma personagem forte e marcante. O leitor rapidamente começa a amar a garotinha negra robusta – filha de pais imigrantes vindos de Granada para Nova York antes dela nascer – de língua presa incapaz de enxergar sem os óculos; que se obriga a ficar acordada meia hora depois de sua hora de dormir imposta pelos pais para ouvir as histórias noturnas contadas por suas duas irmãs mais velhas; que, em sua solidão, sonha em ter uma ”pequena mulher” só sua; mas que anseia pelos momentos mágicos de privacidade negados por uma mãe severa que, considerando a solidão uma perversão social, insiste que a porta do quarto de Audre permaneça aberta, exceto quando ela estiver estudando, e ela está sempre estudando.

Com a garota, experimentamos a dor de seu reconhecimento gradual do racismo (algo do qual sua poderosa mãe sempre procurou protegê-la); o suicídio da melhor amiga adolescente, por quem ela não pôde fazer nada. Com ela, deixamos os limites rígidos de casa – um apartamento em Washington Heights – aos dezessete anos para nos tornarmos marginalmente independentes; e suportamos (às vezes) a fome, um aborto e o Natal sozinha. Compartilhamos a crescente consciência de sua atração por outras mulheres; seus primeiros casos com pessoas do mesmo sexo; uma desejada viagem sozinha ao México aos 19-sentindo-como-se-tivesse-35 anos, em uma daquelas jornadas que servem como rotas para o autoconhecimento; e a vida de uma ”gay-girl” no Greenwich Village dos anos 1950. Nós vivemos com ela seu primeiro relacionamento amoroso e sua excruciante conclusão; e, finalmente, um caso com uma mulher negra sulista – Afrekete – cuja sensualidade e independência se igualam às suas; é uma relação que se torna metáfora de sua conciliação com a própria realidade e com o mundo.

Por toda a narrativa, suas experiências são pintadas com imagens requintadas. De fato, sua herança se mostra mais claramente no uso de palavras que são sensuais, fumegantes, às vezes quase tropicais, evocando as cores, cheiros – repetidamente, os cheiros –, formas, texturas que formam sua vida. Sua atenção aos detalhes é exata, esteja ela descrevendo um jantar com tamales quentes e leite frio na Cidade do México, ou uma noite em um bar em West Village, duas décadas atrás. Seu uso da linguagem é muitas vezes imaginativo, mas não artificial, como na descrição de sua primeira amante, Ginger, com “bochechas altas e proeminentes”, ou sua referência, em uma das muitas refeições deliciosamente detalhadas no livro, a cebolas douradas em margarina.”

No entanto, Lorde está no seu melhor quando suas imagens se tornam – como muitas vezes fazem – metáforas para estados de espírito: uma meia rasgada balançando ao vento na lateral de um prédio se torna símbolo de seu terror quando, ainda criança, ela ficou pendurada apenas por uma mão na janela de seu apartamento e foi salva pelo retorno oportuno de sua mãe para casa. Ou o dia em que teve sua primeira menstruação: deixada sozinha na cozinha por sua mãe sempre presente, ela esmaga com um pilão folhas de aipo, alho e cebola que irão temperar a carne para o jantar; enquanto ela bate – e bate e bate –, se deixa levar, os aromas das ervas moídas misturando-se com os dela. E sua participação durante o colegial na Hunter High School, no que ela chama de As Marcadas, a Margem Lunática, é realmente sua participação mais ampla nessa parte da população composta por artistas, negros, mulheres e homossexuais.

Apesar de sua evidente facilidade com símbolos, metáforas e imagens, suas referências a si mesma como poeta – vocação mantida desde a infância – não são enfáticas: ”… às vezes tinha comida feita, às vezes, não. Às vezes tinha um poema, às vezes, não. E sempre, nos fins de semana, havia as idas aos bares”, ela escreve, descrevendo a vida com sua amante Muriel. E quanto a minimização de seu compromisso com a poesia, pode ser, em parte, uma tentativa de evitar criar uma distância entre o leitor e ela mesma; mas também pode ser a escolha, tanto em Poemas escolhidos quanto em Zami, de uma escritora com preocupações mais urgentes – como cozinhar uma refeição, fazer algum dinheiro ou simplesmente viver o estilo de vida que para muitos homossexuais é uma ocupação em si.

É como se a vida nas ruas fosse tão rica que deixasse pouco tempo para a meticulosa costura literária em alguma torre de West Village ou Staten Island (Audre Lorde agora vive, segundo a capa de Poemas escolhidos, em Staten Island, e leciona no Hunter College, em Nova York); ela se distancia de Sylvia Plath ou Anne Sexton que, por conta do isolamento, até mesmo alienação, faziam a linguagem gritar; ou Cynthia McDonald e Marilyn Hacker, com seus intrincados bordados linguísticos. Esse imediatismo imperativo às vezes dá aos poemas de Lorde um ar abstrato e pouco desenvolvido, fazendo com que o leitor anseie pelos detalhes exatos de sua prosa, a evocação do mundo concreto que ela tornou totalmente tangível em Zami.

Ao mesmo tempo, os poemas de Lorde são agradavelmente distantes das obras insossas e estáticas de muitos poetas, que parecem imobilizados pela imagem de si mesmos como poetas. Em vez disso, ela é uma poeta de seu tempo, seu lugar, seu povo e, ao contrário dos poetas cujas obras se desfazem quando tocadas pela convicção, ela está no ápice em suas peças mais políticas. Nos poemas mais recentes de Poemas escolhidos, que seleciona obras escritas ao longo de trinta anos, ela emprega cada vez mais recursos imagéticos; no entanto, mesmo alguns dos poemas anteriores – como “Martha”, um longo artigo sobre uma mulher hospitalizada e lutando por sua vida –, são fortes o suficiente para dar ao leitor o tipo de choque que Emily Dickinson considerava mais confiável julgamento de qualidade de um poema.

Ler esses dois volumes é sentir, pelo menos por algumas horas, que se viveu, não apenas intelectualizou, a vida de Audre Lorde. Ao longo de cada um dos volumes, percebe-se o crescimento da autora em direção a uma autonomia inusitada. Para os leitores que começam com Zami, Poemas escolhidos servirão como indícios reconhecíveis dessa jornada e, como a autobiografia termina em 1960, uma extensão para a consciência do tempo presente. Suas obras serão importantes para aqueles verdadeiramente interessados em crescer sensíveis, inteligentes e conscientes na segunda metade do século XX.

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