A sensibilidade como campo de batalha

Por Amador Fernández-Savater
Publicado em elDiario.es

 

A Elefante abriu as pré-vendas de 2023 com o livro A ofensiva sensível, do cientista político e militante argentino Diego Sztulwark. Os textos que serviram de ponto de partida para o livro foram escritos entre 2016 e 2018, período que o autor define como o “auge fugaz e da decadência prematura da chamada ‘nova direita’ democrática”, não apenas na Argentina, mas em várias outras nações latino-americanas. Para trazer um pouco mais sobre o contexto dessa publicação, trazemos uma entrevista do autor para o jornal espanhol elDiario.es em janeiro de 2020

 

elDiario.es: Diz o filósofo Alain Badiou que esta é uma época de revoltas, mas não mais (ainda não?) de revoluções. As revoltas gritam “não”, põe limites ao poder, desalojam ditadores ou governos autoritários, mas sem um modelo social alternativo e de substituição. Neste impasse do intervalo (não mais / ainda não), onde você está? Onde se situa seu pensamento e a escrita deste livro?

Diego Sztulwark: Não vejo outra opção que situar-me precisamente no interior deste impasse. Nem no desalento que faz com que consumamos raciocínios interessados em aprofundar a impotência, nem em alguma classe de utopismo que, paradoxalmente, não pode afirmar-se sem negar aspectos importantes da situação que descreve. Nem no prestígio do realismo pessimista, nem no auto engano de quem incentiva a ação sem atentar ao que não funciona. O filósofo argentino León Rozitchner empregava uma fórmula que ainda me interessa: “quando o povo não luta, a filosofia não pensa”. É óbvio que há lutas muito importantes e há novas formas de pensar. E também é evidente que o tamanho dos problemas que enfrentamos é enorme.

 

O filósofo japonês Juan Fujita Hirose, comentando justamente a Badiou, disse que esse impasse tem a ver com a “dificuldade de ligar a outra vida [já em curso em uma infinidade de experiências] com o outro mundo”. Há outras vidas, mas não outro mundo.

Há alguns anos dizíamos que não se tratava tanto de tomar o poder, mas de mudar o mundo, o que implicava criar novas formas de vida. Diremos agora que as coisas se inverteram? Que já estão entre nós as novas formas de vida, mas falta inventar uma tradução política? Talvez seja mais justo afirmar que no reverso do político se articulam mal-estares e capacidades de colocar limites ao poder e à exploração, e que é preciso dinamizar a partir daí novas articulações entre poder de veto e pensamento político radical.

 

As revoltas recentes — Chile, Colômbia, Equador, mas não apenas — do que te falam, do que nos falam?

O que se escuta é um rechaço ao estado de coisas, uma soma de mal-estares e insatisfações. Olhemos o Chile: é claríssima a fadiga social com os dispositivos neoliberais de gestão e exploração da vida. Um movimento de protesto extenso, que abarca povos e cidades, que surge de colégios e universidades, que encontra um novo dinamismo nas populações empobrecidas e que se soma ao rechaço da privatização dos serviços sociais. Embora seja possível objetar que não está claro ainda que novo regime político surge de toda essa potência de lutas, toda a discussão aberta em torno da Constituinte evidencia um fenômeno que percorre todo o continente: um forte atraso do político em relação ao que é tecido no seu reverso, isto é, as capacidades plebeias de revolta e resistência.

 

O que é a “ofensiva sensível”?

Esta formulação, que surgiu em uma conversa com uma companheira, me pareceu muito expressiva de um estado de coisas no qual a sensibilidade se tornou o campo de batalha em que operam tanto as opções individuais como as forças coletivas da economia e da política. Tanto o rechaço como a instauração do que se costuma chamar de “subjetividade neoliberal” se desenrolam neste nível.

Uso o termo “neoliberalismo” esclarecendo que seu significado é plural, e às vezes cria confusões. Designa, ao mesmo tempo, pelo menos três coisas diferentes: a reestruturação das relações sociais capitalistas operadas globalmente a partir da década de 1970; um partido político que, em cada conjuntura, tenta aprofundar um programa pró-empresarial; e micropolíticas e modos de governar a vida, a partir de uma coação específica destinada a subordinar nossas estratégias de existência mediante dispositivos de mercado.

O livro quer afirmar então duas coisas por vez: por um lado, que não há neoliberalismo sem uma violência contra a sensibilidade; e, por outro, que não há luta efetiva contra o neoliberalismo por fora de uma ofensiva sensível sobre o campo social. Tomei emprestado o uso da “sensibilidade” de dois pensadores contemporâneos, sobretudo: da antropóloga Rita Segato, que consegue explicar claramente a relação entre neoliberalismo e patriarcado como uma enorme pedagogia da crueldade contra as mulheres, a comunidade e a natureza; e de Franco Berardi, Bifo, que detecta na inovação tecnológica uma dinâmica de apropriação corporativa da inteligência coletiva em termos de aniquilação de todos os aspectos sensuais que permitiriam ir mais além da codificação com que opera a internet e, em geral, as formas digitais de cooperação.

 

E os fenômenos recentes de “fascistização”, como ocorreu no Brasil com Bolsonaro ou na Bolívia? Também tem a ver com esse ataque à sensibilidade?

Sim. E me parece muito importante apontar a conexão entre a exasperação do neoliberalismo e esse tipo de neofascismo. Se o neoliberal é inseparável de uma tentativa de submeter o desejo à realização das mercadorias, o ódio à vida do neofascismo é a cara intolerante e militarizada deste neoliberalismo. Se em tempos de paz os neoliberais ensinam os benefícios de viver de acordo com o mercado, em tempos de crise mostram seu rosto hostil, por meio do ataque a toda tendência de autonomização da vida em relação aos mandatos de valorização capitalista.

Santiago López Petit explicou isso muito bem em seus livros: cada vez que o “querer viver” entra em conflito com o projeto de vida organizado no mercado, se desencadeia uma agressividade contra a existência que abarca tudo aquilo que, na vida, se apresenta como sintoma: anomalia ou inadequação; intolerância com o que na vida não é produtividade, não é desejo dócil a padrões e marcas. O ódio cresce com relação a tudo aquilo que não se adequa ao mandato dos mercados, a tudo que se apresenta como anomalia.

O neofascismo neoliberal, exemplificado em Bolsonaro, é um perigo muito real. Algo que subestimam algumas pessoas de esquerda que não viram com clareza a gravidade do golpe contra Dilma e o encarceramento de Lula. Pelo contrário, uma política do sintoma se abre se vamos além do tratamento neoliberal do sintoma, que oscila entre o coaching e a repressão. A opção de escutar o sintoma pode se conectar com o processo de criação de formas de vida e de sua politização.

Neste contexto, o golpe oligárquico e racista na Bolívia é particularmente grave, porque reverte a luta política aos tempos em que os governos constitucionais eram derrotados por golpes militares abertamente repressivos e “pró-ocidentais”. Insisto na importância de contar com uma linguagem própria para caracterizar esses processos: nossas críticas aos governos chamados progressistas não têm ponto de contato com as razões que movem os golpistas. Os golpes reacionários devem ser repudiados e a eles se deve resistir por todos os meios possíveis, porque não se fazem só contra dirigentes, mas sobretudo contra os povos em luta.

 

Escutar o sintoma — os mal-estares que percorrem o social — ao invés de geri-los ou reprimi-los. A partir daí pode surgir, se entendo bem, uma força rebelde que você define como “plebeia”. O que é o plebeu?

Parece que na antiguidade se chamava de plebeus aos filhos naturais da terra, isto é, àqueles que não tinham sobrenome ou títulos públicos: escravos libertos, migrantes. Logo, na época das revoluções, o significado de “plebeu” parece oscilar entre o proletário e o vilão. Finalmente, na história argentina e sul-americana recente, o plebeu aparece reiteradamente ligado a uma gestualidade irreverente e igualitarista, incapturável pela política convencional.

O plebeu não deixou de irromper sob formas semi-insurrecionais, ou animando lutas coletivas, como reverso da política populista e também da neoliberal. Talvez se possa dizer que o plebeu é aquele que, em nossas sociedades, insiste como desacato dos modos burgueses de regular estilos de vida, seja por subtração ou transbordamento. Não me propus a estudar o plebeu como objeto de uma sociologia ou uma política, pelo contrário: partir dessa gestualidade incapturável como um ponto de vista que permite vincular a sequência crítica que vai da escuta do sintoma à criação de formas de vida, atravessando micro ou macro politizações. Mais que descobrir o plebeu, me interessa o plebeu como perspectiva desde a qual descrever a escritura de uma ordem. Partir de um ponto de vista da crise para ler, a partir daí, o que se supõe ser normal.

 

Você resgata Maquiavel quando afirma que toda sociedade está dividida entre os Grandes (que governam e exploram) e a plebe (que rechaça ser governada e explorada). Como essa divisão Grandes/plebe se dá no neoliberalismo?

Nos últimos anos não pude resistir a Maquiavel, a partir da tradição republicana (Spinoza) e sobretudo da esquerdista, iniciada por Antonio Gramsci. Claude Lefort argumenta que, em Maquiavel, a política é uma divisão entre aqueles que desejam dominar e aqueles que não querem ser dominados. Essa leitura funciona muito bem, com toda esta referência sobre o plebeu, minha tentação é usar Maquiavel para ler o comportamento de uma linha divisória que se tornou tão ambígua e imprevisível. Um pouco o que escrevia Paolo Virno acerca da “ambivalência da multidão”, ou a risada do Coringa do cinema estadunidense atual: uma risada que é por sua vez dor e alegria, inseparável de uma certa impossibilidade de discernir o que é real e o que é mental. Toda essa ambivalência passional torna difícil distinguir de modo pleno fenômenos de submissão e de rebelião, ou antecipar explosões. Em suas aulas dos anos 1980, Gilles Deleuze buscava o revolucionário no que chamava “linhas de indiscernibilidade” na proliferação de fluxos “indizíveis”.

É possível convocar de novo aqui Maquiavel porque o Príncipe é, antes de tudo, um leitor sintomático, um leitor de sintomas. Na tradição de Freud e Marx, o sintoma anuncia uma nova maneira de ler e pensar, em que a anomalia não deve ser apaziguada, mas desprendida. O “novo príncipe” — que com Gramsci torna-se uma figura coletiva e, hoje agregaríamos, sem exclusão de gênero — é antes de tudo um leitor interessado por captar o potencial cognitivo das desobediências (os sintomas), porque esse potencial é a matéria para inventar uma nova política.

 

Em Maquiavel, o “tumulto” é o motor de maior vitalidade política e de justiça social desde que o conflito se inspire no “desejo de não ser governado” do povo-plebe. Mas na realidade que se mostra a nossos olhos, as coisas às vezes não estão tão claras. A divisão social já não se deixa ler simplesmente no eixo esquerda/direita. Penso no 15M, nos coletes amarelos franceses, no movimento brasileiro de Junho de 2013, no conflito independentista na Catalunha… Poderíamos falar de politizações impuras, do plebeu obscuro? Como situar-se diante delas?

Talvez a leitura política seja difícil sempre, dado que o texto a ser lido está escrito em tinta de limão. É um texto atravessado pelos enunciados “indizíveis” dos que falava Deleuze. Que política se faz possível na base do que em nós não quer obedecer? Formular essa pergunta abre uma fenomenologia complexa: sintoma-plebeismo-criação de formas de vida-politizações. O príncipe coletivo deve aprender a ler nessa indiscernibilidade de que falávamos. Deve extrair dessa leitura um sentido para o anômalo. Deve extrair dali as linhas que permitam percorrer uma transformação histórica. É sua tarefa: criar uma nova instituição.

Resulta útil a distinção esquerda/direita nesta tarefa? Creio que sim. Se retomamos a ideia de Maquiavel, segundo a qual Roma teve as melhores leis graças à condição tumultuosa de seu povo, talvez possamos derivar daí uma certa ideia de esquerda: aquela que liga a criação de forma de vida com a luta popular e deduz de lá a melhora, a mudança de natureza histórica, das leis e das instituições. O que em termos contemporâneos significa afirmar, ao mesmo tempo, o caráter comum da propriedade e o caráter coletivo das decisões. Em um sentido oposto, pode observar-se a conformação de “direitas tumultuosas” como é o caso recente do macrismo na Argentina. A direita também ganha eleições e se mobiliza, inclusive pode tomar as ruas. Mas essa conflitividade reacionária aponta a separar e a privatizar o problema da propriedade e o da decisão, a reestabelecer hierarquias raciais, de gênero e de classe. Isto é mais extremo ainda no Brasil ou na Bolívia. Os tumultos que produzem uma nova imaginação política partem de e reivindicam a experiência e o desejo do comum, não partem da reivindicação da propriedade privada.

 

Entre os Grandes e a plebe, há uma terceira figura: o Estado. Que partido vai tomar o Estado, a favor dos Grandes ou do povo? Pode o Estado estabelecer com o povo-plebe uma certa aliança? Pode o Estado apoiar-se na plebe e amortecer o poder dos Grandes? Tua posição não é “purista”, não busca um “revolucionário por fora”, como poderia ser o caso do Comitê Invisível. Você se pergunta sobre a possibilidade dessa aliança precária Estado-plebe. Mas, ao mesmo tempo, faz um balanço muito crítico da última experiência kirchnerista que alguns lêem precisamente como um tipo de articulação assim.

Tenho a impressão de que a língua do Estado obstaculiza a da emancipação, sem que isso implique cair em uma posição de indiferença entre governos progressistas e reacionários. Não é fácil organizar esta discussão. É indispensável fazer uma crítica a partir de baixo sobre o que foram as experiências dos governos chamados progressistas da região latino-americana, que descansaram sobre um modo de acumulação de capital que não se atreveram a questionar. Ao mesmo tempo, essa crítica exige elaborar um discurso antagônico em relação ao utilizado pela direita reacionária. Eles falam de “corrupção”, enquanto me parece muito mais útil falar de precariedade e de acumulação por desapropriação.

Dito isto, não dispomos de um “fora” preexistente em relação à dominação neoliberal. Seria muito mais fácil contar com um lugar incontaminado, a partir do qual defender uma alternativa. Se existem, em transformação, modos de estar “dentro e contra”. Modos que talvez apontem um “mais além”. Para pensar esta dinâmica, utilizo a reflexão de Deleuze e Guattari, segundo a qual o capitalismo atua segundo uma lógica axiomática, resolvendo suas crises no espaço do mercado mundial, e efetuando em seguida modelos de acumulação no plano da política nacional ou regional. Esses modelos variam e funcionam de acordo a uma oscilação entre dois polos: um propriamente neoliberal tende a privilegiar o mercado exterior, e outro de tipo social democrata (ou populista) prioriza o mercado interno e as demandas sociais. A lógica axiomática impõe aos estados uma atividade de adição/subtração de regulamentos de acordo com os requisitos da acumulação.

Vemos isso na Argentina de hoje, por exemplo, onde a exigência do pagamento da dívida se traduz em uma intensificação das economias neo extrativistas. Me parece impossível que a política possa projetar momentos democráticos efetivos sem pretender destruir esse jogo de oscilações. Como romper esta circularidade? Essa pergunta leva a indagar no reverso da política, em todas aquelas existências que não se deduzem automaticamente da axiomática, senão que fogem desse esquema de oscilações entre ambos polos. Então, se me interessa a posição que chama “purista” (nomeia o Comitê Invisível) é porque é a única que aparece com nitidez discursiva por fora desta dinâmica de controle. Só que é preciso fugir de tudo o que é puro porque, como dizia Nietzche, só expressa valores sacerdotais. Os purismos escondem as próprias dificuldades para produzir realidade de um modo alternativo. Por isso, prefiro o pragmatismo das resistências populares. A possibilidade de combinar momentos novos entre aqueles que lutam para evitar a oscilação até o polo neoliberal-totalitário do capital, e aqueles que lutam contra a axiomática como tal. Se trata de um espaço complexo, cheio de contradições mas, nas quais, talvez possam ser produzidas novas áreas comuns de ação.

Me parece que este tipo de ações comuns se impõem quando se compreende a impossibilidade de sustentar uma distância absoluta entre forma de vida e política, ou entre micro e macro política. E volto a colocar como exemplo uma situação argentina atual: a recente revogação da lei que favorecia a utilização de contaminantes de águas para a atividade da mega mineradora na Província de Mendoza. Uma formidável mobilização popular fez um parlamento inteiro recuar. É exagerado ver nestes episódios uma comunicação com a rua chilena?

Para voltar ao que dizíamos de Maquiavel, o Príncipe coletivo só tem chance caso aprenda a diferença radical entre governar e dominar. O governo sem dominação está a caminho de criar formas de autogoverno. Mas sim, pelo contrário, as lutas democráticas se desligam do problema do poder, a formação de maiorias eleitorais permanece impotente ante os dispositivos duros da dominação (financeiros, repressivos, midiáticos). Portanto, para voltar a falar em democracia, é necessário que a constituição de maiorias eleitorais consiga penetrar e alterar o funcionamento destes dispositivos ditatoriais.

 

Não estou seguro de que tenhamos aprendido isto ainda. Em uma recente entrevista a Pablo Iglesias, que ingressa como vice-presidente no novo governo de coalizão de esquerdas na Espanha, observo pouca inovação na hora de pensar a relação entre governo e movimentos: o governo cristaliza demandas, mas não abre ou reparte o poder. Os movimentos funcionam como legitimação democrática, mas não como força de transformação. No livro, você fala de “ampliar a decisão política de novos atores”. O que significaria isto?

Em seu livro El huracán rojo (Critica, 2015), o professor Alejandro Horowicz reconstrói como a teoria e a prática do duplo poder permitiu conectar, tanto na França como na Rússia, democracia e revolução. Essa conexão está determinada por sujeitos coletivos em estado de experimentação de novos planos de igualdade. O que surgirá do que ocorre nestes dias no Chile em torno da demanda da Assembleia Constituinte? Se aprendemos algo, é que existe uma correlação direta entre o modo de acumulação por despossessão e restrição dos espaços de decisão política. Um governo que se quer progressista ou popular, penso, deve honrar o compromisso de abrir espaços de transformação estratégica com todos aqueles que resistem ao modo de acumulação (mega mineradoras, monocultivo, destruição do meio ambiente, exploração via endividamento, precarização das condições de vida). Ampliar o sistema de tomada de decisões até abarcar atores sociais em disputa com o modo de acumulação é o único caminho que imagino para modificar, em um processo real, a realidade neoliberal em que vivemos. Esse é o sentido último de “ofensiva sensível”: aprender dos movimentos sociais que, como as Mães da Praça de Maio, os Piqueteros de 2001 e os feminismos populares têm contribuído para ressensibilizar o campo social.

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