Agora não existe mais “lá”
Por Atef Abu Saif
Publicado em piauí
O escritor palestino Atef Abu Saif, de 51 anos, estava na Faixa de Gaza a trabalho, quando ocorreu o odioso ataque terrorista do Hamas ao território israelense e teve início a reação deslanchada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Então ministro da Cultura da Autoridade Palestina, Abu Saif preferiu não deixar a região, onde ele nasceu e viviam familiares e amigos. Durante quase três meses, ele registrou o dia a dia da tragédia, na mais horrenda agressão militar dos últimos tempos, que já matou mais de 37 mil, segundo o Ministério da Saúde da Autoridade Palestina. Seus relatos saíram inicialmente em publicações como o jornal The New York Times e a revista The Nation. Agora, foram reunidos no livro Quero estar acordado quando morrer: diário do genocídio em Gaza, que será lançado no Brasil em agosto. Abaixo, um trecho.
SEXTA-FEIRA, 1o. DE DEZEMBRO DE 2023, DIA 56
A guerra está de volta. Nenhum milagre veio nos salvar, nenhuma prorrogação indefinida foi acordada. A trégua, no final, foi apenas isto: uma pausa. E o que volta com a retomada das hostilidades não é tanto o medo da morte quanto o medo do desconhecido. Não saber o que me aguarda no meu próximo passo, não ser capaz de prever como um evento pode afetar outro, não ser capaz de seguir a estranha lógica ilógica da guerra. Viver em uma guerra é como ter de renovar seu contrato com a vida todos os dias. Você assina um novo contrato todas as manhãs e vive de acordo com os termos e condições até o final do dia. Depois, reza para que a noite não leve esse contrato embora. Então, pela manhã, você assina na linha pontilhada mais uma vez. Você não consegue negociar mais dias; não há mais do que isso de garantia. A trégua foi somente uma extrapolação do mesmo contrato – no fim, você acaba se acostumando com a paz, só para arrancarem-na de você. Essa foi a situação ontem. Tivemos uma prorrogação de um dia de trégua. Nada mais.
Ontem à noite, nenhum de nós conseguiu dormir. Estávamos todos rezando muito para que a trégua fosse prorrogada. À medida que a meia-noite se aproximava, ainda não havia notícias de uma possível prorrogação. A incerteza era insuportável. Começamos a nos dar conta de que amanhã não haveria nenhuma prorrogação, pois os esforços dos intermediários haviam fracassado. Mesmo nos últimos dias da trégua, testemunhamos uma lenta escalada. Uma pessoa foi morta em Bait Hanoun por atiradores de elite, e os temores aumentavam. Quando acordei, não conseguia distinguir, pelo zumbido alto do drone sobre nós, que algo estava diferente.
Na semana anterior, enquanto durou a trégua, centenas de caminhões entraram na Faixa de Gaza, carregados de ajuda humanitária: parte dela, ajuda médica; o restante, alimentos e água. Mas não foi suficiente. Um homem do Crescente Vermelho Palestino[1] me disse, alguns dias atrás, que centenas de caminhões carregados de garrafas d’água haviam entrado na Faixa. Para ele, era um desperdício. Se apenas um poço voltasse a funcionar, forneceria mais água do que todos esses caminhões. E o necessário para que o poço voltasse a funcionar era combustível para operar a bomba.
Um dos grandes benefícios da trégua foi poder, de repente, falar com os membros da minha família de novo, verificar o bem-estar deles e colocar em dia tudo pelo que passaram nas últimas oito semanas. Na trégua, foi a primeira vez que a internet e as redes móveis ficaram remotamente confiáveis. Em uma dessas conversas, minha sobrinha Iman, que mora com o marido e o filho em Sheikh Radwan,[2] me disse o quanto sentia falta de sua vida monótona. Ela tinha plena noção de como era entediante, comparada com a atual. Mas ela ansiava por esse tédio. Jurou que nunca mais se queixaria de estar entediada.
Enquanto tomamos nosso café da manhã, projéteis começam a atingir os prédios ao nosso redor. Um míssil assobia no ar da manhã, seguido de uma explosão estrondosa. Logo calculamos que caiu perto do Hospital Nasser. O som dos ataques aos vilarejos e cidades a Leste pode ser ouvido claramente de onde estamos. O café da manhã continua na mesa, enquanto ficamos sentados ouvindo as explosões. Penso em meu pai, que continua no Norte. Mais uma vez, me pergunto se vir para o Sul foi a decisão certa.
“Eles vão invadir o Sul?”, indaga Yasser, meu filho de 15 anos. Outra pergunta sem resposta. É uma possibilidade que tem se tornado cada vez mais comum nos noticiários. O impensável, de alguma forma, torna-se mais provável quando é normalizado pelo noticiário. Há pouco tempo, uma invasão também era impensável no Norte. Conversando com as pessoas em Khan Yunis,[3] é possível perceber a mudança de humor: todos ficaram subitamente inquietos.
Os israelenses continuam a lançar panfletos sobre nós. Dessa vez, pedem aos habitantes dos vilarejos e cidades a Leste de Khan Yunis que evacuem a região e se dirijam a Rafah. Rafah, não Khan Yunis, apesar de esta ser mais próxima. “Khan Yunis é uma zona de batalha”, diz o folheto. Os vilarejos que precisam ser evacuados incluem Bani Suheila, Khuzaa, Al-Qarara e Abasan. Há duas “Abasans”: a Grande Abasan e a Pequena Abasan. Desde o início da madrugada, essas áreas têm sido submetidas a bombardeios maciços. Isso só pode significar uma coisa: a cidade de Khan Yunis e seus campos de refugiados adjacentes são os próximos.
De vez em quando, o prédio treme quando outro míssil atinge as proximidades. É a mesma dança em zigue-zague, sacodindo para a esquerda e para a direita, com a qual me acostumei na casa de Faraj em Jabalia.[4] Mamun vai até a janela e aponta para a fumaça que sai de um prédio na rua ao lado. Como não sou familiarizado com a área, não sinto o mesmo fascínio em descobrir qual prédio foi destruído e como eu faria em Jabalia. Também já estou mais acostumado com tudo isso agora. Para Mamun, ainda é um processo relativamente novo.
Hoje é o “dia da água” na casa de Mamun, o evento que acontece duas vezes por semana em que todos os membros da família trabalham juntos para carregar muitos galões de água do poço até o topo das escadas para encher os tanques no quarto andar. É um turno difícil. Homens, mulheres e crianças, todos arregaçam as mangas e participam. Ahmad, irmão de Mamun, não conseguiu os 2 litros de gasolina necessários para alimentar o gerador, portanto não há bomba. Ele esperou por horas em vão. Para Ahmad, a trégua não trouxe nem mesmo água encanada. Todos nós trabalhamos até meio-dia para encher os tanques. Estamos exaustos, mas também felizes com a sensação de realização: teremos água pelo menos nos próximos três dias.
Os israelenses publicaram um novo mapa que divide a Faixa em centenas de blocos, cada um com um número especial. Devemos aprender esses números e seguir as ordens de Israel sobre qual bloco deve fazer o quê. O bloco no qual estamos agora é o número *** (oculto por motivos de segurança). Portanto, adeus, belos nomes – por exemplo, um vilarejo chamado Juhor al- ( “a toca do galo”, em árabe) –, olá, números desumanizados e sem sentido. Como palestinos, estamos acostumados a isso: para existir aqui, temos que obter a huwiya, uma carteira de identidade e um número monitorados por Israel. Estamos acostumados a ser reduzidos a números. Agora, porém, nossa terra também precisa ser despojada de seus nomes, despojada de sua identidade e história, e eles querem destruí-la com o velho mito de que ninguém jamais viveu aqui, de que a terra não está impregnada de um milhão de memórias. Quando recebi a notícia, apenas ri. “Bom dia, 96 713”, eu disse a Mamun, inventando os números. “Bom dia, 83 932!”, ele riu de volta.
SÁBADO, 2 DE DEZEMBRO, DIA 57
De repente, com a retomada da guerra, Khan Yunis se tornou o alvo primário de Israel. É como se tivessem me seguido até aqui. Na noite passada, era possível ouvir bombardeios e ataques de mísseis de todos os lados. Não tinha visto um ataque no estilo “anel de fogo”[5] desde que saí do Norte, mas, quando me deitei no chão da casa de Mamun, tentando dormir, a orquestra da guerra voltou a tocar. Da mesma forma, os velhos hábitos retornaram: contar os ataques, especular sobre os tipos de foguetes utilizados, imaginar onde teriam caído.
Ontem à noite, fui ao Hospital Nasser para recarregar o celular e o notebook. Enquanto aguardo, já se tornou um hábito sentar em uma das tendas reservadas para jornalistas e conversar com alguns dos que trabalham lá. Desde a retomada da guerra, o hospital voltou a ficar cheio; aqueles que haviam passado os poucos e preciosos dias de trégua em casa agora voltaram para as tendas no terreno do hospital, ou para os corredores e escadas que os abrigavam antes. No caminho para a tenda dos jornalistas, vi fileiras e fileiras de tendas ocupando cada centímetro de espaço livre. Um novo campo de refugiados ganhava vida ali, com seus becos e rotas principais, seus bairros e redes. Vi pessoas cozinhando ao redor de uma fogueira. Uma mulher fazia pão. Duas meninas cochichavam, olhando para três rapazes fumando narguilé. Uma nova comunidade estava se formando.
Mustafa, um produtor da rede de tevê Russia Today, me disse que muitos jornalistas ali tinham vindo da cidade de Gaza e se reunido, com suas famílias, em um espaço próximo aos muros do Hospital Nasser. Montaram ali as próprias barracas e fizeram delas seus lares, como um minicampo especial só para jornalistas. Na verdade, a cidade de Khan Yunis inteira se tornou um campo de refugiados imenso. Há barracas em cada esquina. Os recém-chegados vêm com sonhos não mais ambiciosos do que comprar uma barraca e encontrar um lugar para montá-la. Durante o dia, Mustafa e muitos outros jornalistas ficam diante das câmeras, fazendo reportagens a cada hora. À noite, caminham alguns metros, entram nas tendas de suas famílias e retomam a vida como pais e mães.
Acordei às 6 horas. Mamun já estava acordado. Ele listou os lugares, as casas e as ruas que haviam sido atingidas enquanto eu dormia. Embora os ataques tenham ocorrido em toda parte, os mais violentos foram nos bairros ao Leste de Khan Yunis. Uma invasão terrestre também já começou por lá. Os civis estão sendo orientados a deixar suas casas. “Você acha que os israelenses vão invadir nosso bairro?”, me pergunta Mamun. Com base em minha própria experiência no Norte, só posso dizer que sim. Talvez leve algum tempo, talvez até demore mais, mas eles estão chegando. Os israelenses queimam tudo o que encontram pela frente, não deixam nada de pé: nem prédios, nem árvores, nem pessoas. Eles matam tudo. “Bom, eu não vou a lugar nenhum”, diz Mamun. “Deixei meu apartamento em Rimal e agora ele está em escombros. Não tenho mais para onde ir. Não vou mais me mudar.” Ouvi-lo falando me faz lembrar a maneira como Bilal[6] e eu costumávamos conversar.
No Norte, os israelenses retomaram as operações, principalmente nas partes ocidentais de Jabalia. Telefono para minha irmã Asmaa, que está aguentando firme em sua casa em Fallujah.[7] Ela está aterrorizada: estilhaços de um foguete atingiram seu quintal ontem e incineraram todas as plantas. Na mesma noite, um enorme incêndio atingiu um souq[8] próximo, espalhando-se pelo complexo ao lado e por uma escola vizinha. “Tudo estava pegando fogo”, minha irmã diz. “O calor das chamas fez a noite mais quente do que o dia.” Depois de falar com ela, ligo para meu pai, mas não consigo falar com ele.
Esta manhã, cerca de oitenta novos membros da família estendida de Mamun chegaram de Al-Qarara, um vilarejo ao Norte de Khan Yunis. Começaram a chegar por volta das 7 horas, com tudo o que podiam carregar: roupas, colchões, travesseiros. Os israelenses dispararam contra o vilarejo deles, destruíram várias casas e depois pediram àqueles ainda vivos que fossem embora. Portanto, agora a casa bem grande de Mamun, que já acomodava setenta parentes desabrigados da cidade de Gaza, tem que acomodar outros oitenta. A Rua “2”, em Al-Qarara, foi a mais atingida pelo ataque, e as casas das famílias Abadalla e Kidra foram destruídas. Muitas pessoas ficaram feridas em fazendas e propriedades rurais ao redor do vilarejo. Três mesquitas locais também foram danificadas. Conforme o lugar fica mais lotado, percebo que a família vem em primeiro lugar, que eles são a prioridade de Mamun. Precisamos ir para Rafah e ficar com meu irmão e primos.
Uma nova atmosfera domina a cidade nesta manhã. A guerra está de volta e, para o povo de Khan Yunis, ela é muito mais grave do que antes. A trégua fez com que todos tivessem um falso sentimento de segurança. O véu foi levantado, e podemos ver a faceta verdadeira dos israelenses de novo.
Andando pela rua, vejo que Khan Yunis ficou bem mais cheia. Os chefes militares israelenses falaram sobre cinquenta ataques diferentes na cidade na noite passada. Os tanques estão saindo da fronteira oriental da Faixa, atravessando vilarejos e fazendas, e vindo em nossa direção, mas, antes de chegarem, uma multidão invade a cidade.
Encontramos um carro para nos levar de volta a Rafah, mas ficamos uma hora parados em um cruzamento. Há uma enorme cratera no meio da estrada, em um ponto atingido por um míssil disparado por um F-16 na noite passada. O tráfego está congestionado ao redor dela, em ambos os lados, enquanto os motoristas tentam evitar que o carro tombe no buraco. Quando olho para baixo, não consigo deixar de pensar se essa cratera se tornará a nova linha divisória entre Khan Yunis e Rafah na invasão terrestre que está por vir. Da mesma maneira com que o uádi[9] era a linha natural entre o antigo Norte e o Sul. Rafah logo se tornará o último refúgio em toda a Faixa, especialmente a parte a Oeste, na região costeira. Mandaram todos irem para lá. Mas e depois?
DOMINGO, 3 DE DEZEMBRO, DIA 58
A casa da minha família foi destruída ontem à noite, junto com outras seis casas, quando mísseis de um F-16 atingiram aquela parte de Jabalia. Por sorte, ninguém estava lá dentro, todos tinham saído algumas horas antes. A casa está localizada perto da Avenida Yāfā, onde os refugiados da cidade de Jafa montaram acampamento pela primeira vez em 1948. A casa onde nasci e cresci foi devastada. O lugar onde dei meu primeiro passo, onde aprendi minha primeira letra, onde escrevi minha primeira linha de ficção. A casa onde Hana e eu começamos uma família e tivemos nossos primeiros quatro filhos. O piloto do F-16 escolheu nossa casa em particular. Com toda a tecnologia à disposição, os israelenses poderiam ter visto que estava vazia. Ainda assim, esta foi a missão do piloto na noite passada: destruir a casa de minha família e outras seis. Quando deixei o local há dez dias, não imaginei que seria a última vez que a veria. Ninguém sabe quando é a última vez que vai fazer alguma coisa. Passei alguns minutos lá com meu pai, compartilhando os pensamentos de sempre – sobre a guerra, sobre diferentes membros da família – e saí dizendo a ele: “Fique em segurança.” Não pensei em me despedir ou dizer “fique em segurança” para a casa. Imaginei que veria tudo de novo: a escada de madeira, as fotos da minha formatura, a foto emoldurada do meu falecido irmão, Naim, que ficou pendurada na parede durante todo o tempo em que ele esteve preso e continuava lá desde então.
Meu pai não tem mais onde dormir. Ontem à noite, quando os projéteis caíram aleatoriamente sobre o campo de refugiados, ele decidiu se mudar, com outros vizinhos, para o que achava ser um lugar mais seguro. Vários locais estavam sendo alvejados e, em momentos como esse, a perspectiva de ter companhia é, de certa forma, tranquilizadora. Agora, como milhares de outros habitantes de Gaza, não tem onde morar. Ele me ligou pelo WhatsApp às 6h30 desta manhã. “A casa se foi”, disse, e não falou mais nada. Sua voz estava trêmula, e eu conseguia até imaginar as lágrimas em seus olhos. Agora, um homem de 74 anos está desabrigado porque alguém tomou a decisão estratégica de fazê-lo sofrer, e por nenhum outro motivo. As coisas estão muito ruins em Jabalia. Liguei para minha irmã Asmaa. É sempre um alívio ouvir o telefone chamando. Geralmente, os telefones são destruídos quando os donos acabam debaixo dos escombros. Portanto, se o telefone dela ainda funcionava, talvez esteja viva. Por fim, em minha terceira tentativa, Asmaa atendeu. “Bom dia”, minha irmã disse. Essas duas palavras são tudo de que preciso. Posso respirar aliviado. Ela continuou descrevendo os horrores da noite anterior, como ficou contando os minutos para que a sequência interminável de explosões terminasse. Ao ver o prédio dos vizinhos em chamas, tentou descobrir de que lado da casa os mísseis estavam caindo, mas não conseguiu, pois estavam muito próximos. Foi somente quando o primeiro raio de Sol entrou pela janela quebrada que Asmaa se deu conta de que havia sobrevivido. “Não tenho certeza de que verei outro amanhecer, Atef”, pontuou ela.
Ontem, caminhei pela Rua Tal al-Sultan em direção ao Centro da cidade de Rafah. Foi bom pegar um pouco de Sol, agora que as nuvens se foram. No escritório do Departamento de Desenvolvimento Social, tive uma reunião com o diretor responsável pela Faixa de Gaza, Luai Madhum. Depois de alguns minutos, outros cinco colegas se juntaram a nós para conversar e analisar a situação. Luai é responsável pela assistência às pessoas desabrigadas e passou a maior parte do dia na passagem de Rafah, recebendo caminhões e supervisionando sua distribuição. Ele ponderou que o que entrou em Gaza até agora é apenas 10% do necessário. Com a grande quantidade de pessoas que chega de várias partes da Faixa, principalmente de Khan Yunis, a questão mais urgente é saber onde elas vão dormir. É um desafio que se repete noite após noite. A maioria está se abrigando nas escolas, sejam as da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA, na sigla em inglês) ou as do governo. Mas todas elas já estão lotadas há muito tempo – até mesmo faculdades e universidades foram transformadas em abrigos. E não há espaço para mais ninguém, em lugar nenhum.
Antes de ir para casa, conversei com minha tia-avó Nur, irmã de minha avó Salwa. Ela é provavelmente o único membro sobrevivente da família que realmente nasceu em Jafa, antes da Nakba.[10] Acompanhada dos pais, ela teve de fugir de sua bela casa para passar a maior parte do resto da infância em uma tenda, a alguns quilômetros ao Norte daqui. Seu pai tinha sido o mukhtar da cidade – um prefeito tribal –, posição de extremo prestígio. Então, de repente, ele se viu sem nada, um refugiado desabrigado. Agora, ao que parece, sua filha Nur precisa fugir para um novo campo. Durante toda a minha vida, ela me contou a história do dia em que teve de largar seus livros de escola e sair de casa correndo ao ouvir projéteis voando de Tel Aviv. Ela se lembrava de como havia ficado chateada na época por não ter levado os livros com ela. Nur adorava sua escola em Jafa e nunca mais foi para outra escola. Quando ela me contou a história novamente, ontem à noite, percebi que estava misturando alguns detalhes com a da saída apressada de sua casa em Jabalia, algumas semanas atrás. Era como uma montagem em um filme, juntando cenas de diferentes épocas, ao longo de 75 anos. Um grande editor cinematográfico não poderia ter feito uma montagem melhor do que a de Nur em sua confusão.
Ontem à noite, os israelenses atacaram o bairro Shejaiya, na cidade de Gaza; centenas de civis foram mortos e cerca de cinquenta edifícios, incluindo partes da cidade velha, foram destruídos. Hoje, mais pessoas chegam de Khan Yunis, e Rafah parece pronta a explodir. Mal se consegue abrir caminho entre a multidão no mercado, de tão lotado. Não há quase mais nada para comprar, as pessoas só saem porque precisam caminhar, tomar um pouco de ar. Meu amigo do Crescente Vermelho explica que, nos próximos dias, será necessário distribuir milhares de novas barracas para os recém-chegados. Você pode passar 3, 4, 5 dias sem comida, mas, se chover, ninguém aguenta uma noite na rua.
SEGUNDA-FEIRA, 4 DE DEZEMBRO, DIA 59
Não consigo parar de pensar na casa da minha família. Ao perdê-la, perdi uma pequena parte de mim.
Foi naquela humilde estrutura de concreto, sentado aos pés de minha avó Aicha, que ouvi minhas primeiras histórias. Cresci e me tornei um escritor para poder compartilhá-las com o mundo e revisitar a vida que minha avó teve em uma grande vila em Jafa. Isso foi antes da Nakba de 1948, antes de ela ir morar na casinha estreita que se tornou o lar da minha família no campo de refugiados de Jabalia. Ela havia caminhado sobre a areia quente com milhares de outras pessoas e seus filhos pequenos a tiracolo.
Foi naquela casa que escrevi meu primeiro conto – nunca publicado, claro –, sobre um velho que adorava contar histórias, mas sempre esquecia o final delas. Aos 13 anos, comecei a manter um caderno no qual escrevia todos os meus rascunhos. A maioria das histórias se passava no reino mágico que era aquela casinha, capturando os acontecimentos diários de nossa vida, como as reuniões semanais das mães dos becos ao redor, suas conversas em voz altíssima, suas fofocas e suas piadas.
Embora pequena – menos de 100 m2 e apenas um andar –, a casa era nosso refúgio. Havia dois quartos principais e um terceiro cômodo menor, uma espécie de sala de estar. Quando meu irmão e eu ficamos mais velhos, meu pai acrescentou um segundo andar para criar um salão de jogos para nós. Para chegar lá, subíamos uma escada de madeira que balançava a cada passo, pois não estava bem fixada na parede. Naquela sala de jogos, eu li meus primeiros romances, ouvi música e fumei meu primeiro cigarro, longe da vista enxerida dos meus pais. No telhado ao lado da sala de jogos, eu criava pintinhos em gaiolas como animais de estimação.
Depois de me formar na universidade, planejava me casar, então colocamos uma laje de concreto sobre o resto da casa e construímos um andar totalmente novo, que dividimos em dois pequenos apartamentos: um para minha futura família e outro para meu irmão Naim, que acabara de ser libertado de uma prisão israelense. Foi nesse apartamento que Hana e eu começamos nossa família e onde ouvi o choro do meu primogênito. Na sala comum do novo andar, todos nós nos reuníamos e passávamos longas noites conversando, jogando cartas e fumando narguilé. Foi lá que vi Naim pela última vez, na noite anterior à minha partida rumo à Itália, para o doutorado no Instituto Universitário Europeu em Florença. Poucos meses depois, ele seria arrancado de nós, morto por uma bala das Forças de Defesa de Israel. Quando eu ficava sozinho naquele quarto, quase ouvia sua voz novamente – rindo quando ele me contava piadas ou os sonhos que teve na prisão.
Nos últimos anos, eu ia até lá para visitar meu pai já idoso. Sentávamos na sala da frente e, enquanto conversávamos, eu olhava para os muitos livros e fotos, entregando-me às lembranças, ouvindo vozes da minha infância, lembrando-me daqueles que havíamos perdido. Perdemos tantos ao longo dos anos.
A casa em que um escritor cresce é um poço de onde se pode extrair material. Em cada um de meus romances, sempre que eu queria retratar uma casa típica do campo de refugiados, eu evocava a nossa. Mudava um pouco os móveis de lugar, mudava o nome da rua, mas quem eu estava tentando enganar? Era sempre a nossa casa. Todas as residências em Jabalia são pequenas. Foram construídas de forma aleatória, fortuita, e não foram feitas para durar.
Elas substituíram as tendas em que palestinos, como minha avó Aicha, viveram após os deslocamentos de 1948. Aqueles que as construíram sempre pensaram que logo voltariam para as belas e espaçosas casas deixadas para trás nas cidades e vilarejos da Palestina histórica. Esse retorno nunca aconteceu, apesar de nossos muitos rituais de esperança, como guardar a chave da antiga casa da família. O futuro continua nos traindo, mas o passado é nosso.
Muitas das casas ao nosso redor eram de propriedade de membros da minha família estendida. Os Abu Saif já foram uma das maiores famílias de Jafa. Mesmo agora, temos parentes que vivem lá, dentro de Israel, com os quais mantemos contato. Após a Nakba, os Abu Saif, como todas as famílias palestinas, se espalharam pela região. Alguns se mudaram para Gaza, outros para a Jordânia e o Líbano, e outros para o Egito. Dessa forma, nossa casa fazia parte de uma casa mais ampla, a casa dos Abu Saif de Jafa, e nela recebíamos parentes de toda a região, juntamente com suas histórias.
Quando penso que nossa residência tinha menos de 100 m2, começo a duvidar desse número. Devia ser maior. Para mim, parecia um palácio, um castelo enorme. O maior edifício já construído.
Embora eu tenha morado em muitas cidades do mundo e visitado muitas outras, aquela pequena residência em ruínas foi o único lugar em que me senti em casa. Amigos e colegas sempre me perguntavam: “Por que você não mora na Europa ou nos Estados Unidos? Você tem essa oportunidade.” Meus alunos indagavam: “Por que você voltou para Gaza?” Minha resposta era sempre a mesma: “Porque em Gaza, em um beco sem nome no bairro Saftawi de Jabalia, há uma casinha que não pode ser encontrada em nenhum outro lugar do mundo.”
Se, no Dia do Juízo Final, Deus me perguntasse para onde eu gostaria de ser enviado, eu não hesitaria em dizer: “Para lá.”
Agora não existe mais “lá”.
TERÇA-FEIRA, 5 DE DEZEMBRO, DIA 60
Ontem à noite, fui ao Hospital Europeu para visitar meus sogros. Wissam[11] finalmente foi levada de carro para um hospital no Egito, deixando-os sozinhos. Eu precisava falar com o gerente do hospital para pedir que mantivessem a estadia dos meus sogros. Minha sogra tem problemas extremos de mobilidade e não consegue cuidar de si mesma. Ela precisa de cuidados 24 horas por dia. Quando Wissam estava no hospital, Widad, sua irmã, cuidava das duas. Logo que meus sogros chegaram, os administradores concordaram em liberar um quarto e abrir espaço para todos, pois foram classificados como acompanhantes de Wissam. Agora que ela e Widad foram embora, eles também precisam ir. Sugeri que ficassem conosco no campo de refugiados. Sempre é preciso ter opções. Depois de dezenas de telefonemas, ficou acordado que meus sogros passariam mais uma noite no hospital e que seu pedido de permanência seria analisado pela manhã.
Yasser perguntou se poderia ficar com eles. Ele estava preocupado com os avós, caso fossem despejados de repente. Eu lhe disse que não haveria muito que fazer se fossem despejados. No final, ele insistiu em ficar. Vi a preocupação no rosto do meu sogro e o tranquilizei: na pior das hipóteses iríamos para o campo de refugiados, e tínhamos muitos parentes lá para ajudá-los.
Até agora, não tivemos notícias de Wissam. Na manhã em que ela partiu, disseram-lhe que seu destino final seria um hospital em Port Said, no Egito. No entanto, depois que a levaram, não conseguimos entrar em contato com ela por horas. Foi somente naquela noite que Hana conseguiu falar com Wissam, que explicou que já haviam passado pelas filas na passagem de Rafah e agora estavam no Egito, atravessando o Sinai do Norte. Widad e Wissam, duas meninas, estão fazendo sua primeira viagem para fora de Gaza, sem os pais e os irmãos, sem qualquer forma de apoio, e, no caso de Wissam, sem três membros do corpo. Elas não sabem como é o mundo para além da cerca perimetral,[12] e estão escapando da prisão de uma forma nunca desejada.
A partir das 19 horas, não tínhamos mais sinal de celular. A única conexão com o mundo fora do campo de refugiados eram os sons e as luzes das explosões a distância e o rugido dos F-16 a nordeste de nós, em direção a Khan Yunis. Éramos doze pessoas na barraca, conversando e tentando processar a situação, adivinhando qual seria o desenrolar, mal conseguindo nos fazer ouvir por causa do rugido dos F-16. “Vai ser uma noite pesada em Khan Yunis”, disse Faraj. “É o início da invasão terrestre de Khan Yunis”, especulou outra pessoa. Mas quem é que sabe? Na tenda, três narguilés foram acesos, e a fumaça subiu em direção ao teto e se acumulou como nuvens. Essa é a nossa vida agora, no Sul, e precisamos tentar nos acomodar a essa situação. Por um momento, todos nós parecíamos distraídos, a milhares de quilômetros de distância, e pensávamos em nossos entes queridos que ainda estavam no Norte. Ibrahim disse ter recebido uma ligação de um amigo de lá, relatando que “anéis de fogo” foram lançados em todas as partes de Jabalia. Havia relatos de que os tanques entraram no bairro Faluja e seguiam em direção ao centro do campo de refugiados. “Não vemos nada”, disse o amigo de Ibrahim. “Vemos apenas morte e escuridão.”
Meus irmãos Mohammed e Ibrahim acordam esta manhã, por volta das 5h30, para acender o fogo. Eles preparam o chá, e Muhammad ferve um pouco de leite para seus filhos. Por volta das 8 horas, o café da manhã está servido. Pela primeira vez, há pão. É um milagre. Em pouco tempo, as crianças começam a brincar de esconde-esconde nas tendas. O campo de refugiados ganha vida bem depressa. Olho para o filho de Muhammad, Ahmad, de 4 anos, e penso em como seu avô, meu pai, na idade dele, teria brincado em uma barraca como essa.
Segundo relatos, a Rodovia Salah al-Din está mais uma vez transbordando de pessoas, que fogem da parte Leste de Khan Yunis em direção a Rafah. Ontem à noite, ouvimos os ataques a Khan Yunis e seu campo de refugiados. Não cessaram em nenhum momento. Mesmo agora, ainda escutamos o som de explosões. Parece muito próximo. É extremamente difícil conseguir uma carona para Rafah. Uma semana atrás, era muito mais fácil, mas, com o aumento exponencial do número de pessoas desabrigadas que chegam à cidade, há escassez de tudo, inclusive de carros, caminhões e triciclos. As pessoas usam mais carroças puxadas por burros e pôneis do que qualquer outro meio de transporte. Os carros são um luxo; talvez seja necessário esperar uma hora para conseguir um. Enquanto eu estava na beira da estrada aguardando uma carona, meu amigo Imad parou o carro, saiu e me abraçou. O veículo, abarrotado, transportava sua família e pertences, pois eles tinham acabado de evacuar a casa no Centro de Khan Yunis e depois seguiram pela Rua Al-Rachid, a via costeira. Imad é ex-presidente da Universidade da Palestina e espera encontrar abrigo na casa de um amigo, onde outras cinco famílias também se abrigaram.
No carro, comecei minha “sessão de telefonemas” diária, na qual tento ligar para cada membro da minha família imediata na Faixa, bem como para amigos mais próximos, para verificar se estão todos bem. Primeiro, liguei para meu pai, mas contatar alguém em Jabalia não era possível. Em seguida, tentei falar com Halima, que se mudou para Khan Yunis, mas ela também estava inacessível. Tampouco consegui contatar Mamun em Khan Yunis. Em seguida, liguei para Yasser no hospital. Ele disse que estava bem e que ficou feliz por ter passado a noite com os avós. Dito isso, insistiu que eu fosse buscá-lo antes de anoitecer. A próxima foi Aicha, com quem eu não conseguia falar havia dois dias e que continuava em Dair al-Balah. Depois de várias tentativas, finalmente ouvi sua voz dizer “Oi”. Ela me contou que estava sem comer pão fazia três dias. Seus filhos pediam pão todos os dias. Meu amigo Mahmud, que trabalha para o Crescente Vermelho, me explicou que as organizações internacionais, inclusive as agências da ONU, estão se recusando a entregar ajuda para a província central (onde fica Dair al-Balah) ou para Khan Yunis. As agências lhe informaram que não é seguro dirigir até lá, pois as forças israelenses não aprovaram tais entregas. Isso significa que toda a ajuda ficará em Rafah.
É a mesma história de sempre. O que eles fizeram para dividir a Faixa em “Norte” e “Sul”, agora estão fazendo para dividir o Sul. Khan Yunis está “insegura”, e todos devem ir para Rafah. Está muito claro o que andam fazendo, e mesmo assim nenhum líder mundial diz uma palavra contra isso – como se estivessem paralisados, imobilizados pelo medo de falar algo fora da linha, algo que possa prejudicar suas carreirazinhas insignificantes. Enquanto isso, de volta à Faixa de Gaza, o ciclo de destruição continua e se repete cada vez mais rápido, e os lugares onde podemos nos abrigar diminuem mais e mais.
QUARTA-FEIRA, 6 DE DEZEMBRO, DIA 61
As crianças querem doces. Estou falando dos filhos de meu irmão Ibrahim, especialmente de Naim. Ontem, elas passaram uma hora chorando e implorando para que o pai fosse “no mercado” e comprasse chocolate, biscoito e doce. Ibrahim não sabia o que dizer. Primeiro, explicou que o mercado estava fechado – para ser bem sincero, é mentira, já que não existe um mercado nessa nova cidade de barracas que chamamos de casas. Mas as crianças continuaram perturbando, até que meu irmão se irritou e decidiu levá-los para caminhar pelo campo de refugiados em busca de um mercado que, afinal, não encontrariam, o que ele já sabia. “Ninguém vende doces aqui”, ele explicou quando os filhos cansaram de caminhar. “Tá bom, esquece os doces”, um deles disse. “Vamos comprar alguma coisa, então. Qualquer coisa. Não importa.” “Não tem nada pra vender aqui”, Ibrahim respondeu. Sugeri que sua esposa preparasse versões caseiras de doces. Mas sabia, mesmo antes de dizer, que não tínhamos os ingredientes – nem um lugar onde comprá-los, nem forno para assá-los, nem geladeira para guardá-los. Ibrahim não teve escolha a não ser fazer mais promessas, que jurou cumprir quando a guerra terminar. Todos nós estamos fazendo promessas do mesmo tipo para nossos familiares e para nós mesmos. Nada de doces hoje, mas tomara que amanhã tenhamos muitos.
Ontem, em uma reunião da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, da Unesco, a dança dabke foi incluída na lista oficial de “cultura imaterial”. Supostamente eu deveria participar da reunião da convenção em Kasane, Botsuana, antes de tudo isso começar. Fazer o registro da candidatura da dabke ficou sob minha responsabilidade – para ressaltar a riqueza da cultura palestina e suas contribuições para o patrimônio da região e da humanidade no geral. A dabke é uma das danças tradicionais mais antigas do mundo e sobrevive há milhares de anos. Fiquei feliz de ver algo que comecei há dois anos se concretizar. O bordado tradicional palestino foi incluído na lista em 2021; momento muito feliz para mim, ainda que eu não estivesse lá para ver. No próximo ano, espero que minha inscrição do sabonete nabulsi também seja aceita. A cidade de Nablus, na Cisjordânia, é famosa por esse sabonete feito com azeite de oliva. Coisas como essas podem parecer frívolas num primeiro momento, mas são parte da identidade de um povo e daquilo que é ameaçado e potencialmente perdido, quando ocupações ou guerras tiram as pessoas de sua terra. A dabke é parte de qualquer cerimônia de casamento na Palestina. Palestinos em qualquer lugar do mundo – mesmo os descendentes dos palestinos que emigraram para a América do Sul em meados do século xix – ainda dançam dabke no casamento e em comemorações.
A principal preocupação das pessoas desabrigadas agora é ter comida, água e ajuda financeira. A maioria deixou suas casas com pouco dinheiro no bolso, e aqueles com dinheiro não encontram nada para comprar. Mahmud, o responsável por distribuir as provisões no Crescente Vermelho, me mostrou um relatório interno sobre o número de caminhões que entraram em Gaza com itens de ajuda nas últimas semanas – do dia 21 de outubro ao dia 4 de dezembro. Somente 3 061 caminhões entraram, dos quais 1 416 (menos da metade) transportavam alimentos. O segundo maior item transportado é água: 629 caminhões. Depois, cobertores e mantas: 329, seguidos por suprimentos médicos: 248. Para onde quer que se olhe, é possível ver multidões esperando sua vez de receber os pacotes da assistência. Mesmo um pacote pequeno pode significar muito para os gazenses – pode ser a chance de sobreviver ao frio e à fome. Porém, como Mahmud explicou, o que as pessoas mais precisam, nesse momento, é de barracas e cobertores, itens que não chegam em quantidade suficiente. Com o inverno se aproximando rápido, elas precisam se manter aquecidas. “Por que não deixamos, sei lá, por uma semana, somente os caminhões com cobertores e barracas entrarem?”, sugeri, como se dependesse de mim. “Claro que, antes, precisamos intensificar a entrega de alimentos, até termos um excedente.” Mas, com o aumento de desabrigados, a situação apenas se deteriora.
A cidade de Rafah está cada vez mais congestionada – cercada de barracas que se espalham por ruas e espaços públicos. Enquanto houver restrição à entrada de caminhões, a crise de ajuda humanitária só vai piorar. Centenas de caminhões terão de entrar diariamente, por meses, antes de a situação ficar minimamente próxima do normal. Quanto mais ouço as pessoas que trabalham no setor de assistência, mais percebo que as políticas internacionais de assistência aos palestinos estão se baseando nas suas necessidades imediatas em uma área imediata: Rafah e o Sul. Ninguém mais pensa em quem ficou na cidade de Gaza ou no Norte.
Hoje de manhã, fico quarenta minutos numa fila só para comprar faláfel para que Yasser, meu filho, tome café da manhã. Vai ser seu primeiro café da manhã essa semana. Não temos muitas opções. Dois jovens jogam os bolinhos no óleo enquanto esperamos a nossa vez. Na minha frente, três crianças bocejam. Uma delas segura seus brinquedos com força contra o peito, diz para a irmã mais velha que está cansada e pergunta se pode sentar-se ali do lado. Dizemos para o vendedor dar prioridade às meninas, que parecem felizes em terminar as obrigações matinais; achar comida era a última tarefa delas. Finalmente, pego nosso faláfel e vou até uma esquina, onde coloco os bolinhos dentro de um pedaço de pão que Ibrahim deu para Yasser e faço para ele o primeiro sanduíche em muito tempo. Eu como apenas uma refeição por dia, coisa já normal depois de dois meses. No começo, acostumado com três refeições diárias, eu achava isso extremamente difícil. Mas, com a falta de pão e de comida, acabei por me convencer – ou melhor, convencer meu estômago – de que apenas uma refeição é suficiente.
QUINTA-FEIRA, 7 DE DEZEMBRO, DIA 62
A casa do meu sogro foi atingida ontem durante um ataque de tanques no campo de refugiados de Jabalia. Todas as paredes foram destruídas. Estilhaços atingiram a construção e a deixaram feito um esqueleto sem carne. Hana, minha mulher, chorou ao conversar comigo por telefone, lamentando suas memórias de infância. “Nós dois perdemos o ninho dos bons e velhos tempos”, falei. Agora percebo como foi sábio tirar meus sogros de lá. Como minha sogra não consegue andar, se ela estivesse em casa no momento do ataque, teria morrido com certeza. Foi sorte. Não compartilhei essa notícia com eles, a de que seu lar foi destruído. Algumas notícias não devem ser compartilhadas. Não saber de nada é melhor. Os tanques chegaram até alguns metros a Oeste da residência e a pulverizaram. Eles continuaram atacando a região, mesmo sabendo que ninguém estava lá. Mansur, tio de Hana, e a família tinham se mudado para uma escola nas redondezas, enquanto outro tio dela, Mamduh, decidiu ficar em casa. Na opinião dele, se a casa fosse atacada, a escola também seria. Não faria diferença, já que não havia mais lógica perceptível por trás da escolha de alvos do Exército. Pelo jeito, eles simplesmente têm muita munição para gastar, e vem mais a caminho. Agora, esse casal de 70 anos de idade – meus sogros – não tem onde morar quando a guerra chegar ao fim, nenhum lugar que possam chamar de casa. Hana me explicou que os andares mais baixos ainda podem ser usados como quartos. Pelo menos isso.
Para a maioria de nós, tudo que sobrou da casa que perdemos são as memórias. Na guerra, porém, memórias não bastam, não ajudam. Elas não nos mantêm aquecidos. Talvez comecem a nos ajudar, aos pouquinhos, quando as armas cessarem. Percebo a sorte que tive por ter pegado todos os documentos da família, álbuns de foto e certificados na última vez que fui à casa dos meus sogros. Agora, na malinha preta, estão todas as nossas posses materiais na Faixa de Gaza.
Ontem à noite, os noticiários nos informaram sobre um “anel de fogo” na nossa vizinhança em Jabalia. Entrei em pânico por causa do meu pai. Tentei ligar. As notícias relatavam 68 mortos. Sabíamos que as casas alvejadas eram próximas do lugar onde meu pai estava. Tentamos, inúmeras vezes, falar com alguém na região que pudesse descobrir algo sobre nossas pessoas queridas que ainda estão lá.
Consegui falar com meu pai somente hoje de manhã. Mohammed ligou para um parente, Omar, que também ficou em Jabalia. A ligação foi às 6 horas; o sinal costuma ser mais confiável no começo do dia. Omar foi até o apartamento onde meu pai está hospedado e lhe entregou o celular. “Estou bem”, a voz respondeu. Ele parecia estável, ainda que perceptivelmente preocupado. “A única coisa que você precisa fazer agora é ficar a salvo”, eu lhe disse. “Os tanques estão na extremidade Oeste da nossa rua”, meu pai explicou. São poucas as pessoas que restam no campo de refugiados. Muitas partiram nos últimos três dias. O Exército está cercando o campo por três lados, e os tanques se aproximam do centro, destruindo tudo no caminho. Meu pai só pode contar com a sorte.
Por toda a Faixa, as pessoas se sentem traídas e abandonadas. Ninguém parece se importar conosco. Ninguém veio nos resgatar, ninguém ofereceu apoio. Israel está recorrendo a todas as táticas militares e a qualquer nova atrocidade, sem que ninguém coloque qualquer objeção. Fomos abandonados e temos de encarar e aceitar nosso destino, apesar de não podermos nos manifestar sobre ele. Temos de sofrer em silêncio. Não importa o que sentimos ou pensamos, ninguém nos ouve. O abandono é a nossa condição.
Andando pelas ruas de Rafah, encontro muitos velhos amigos, que não vejo há anos. Paro várias vezes para apertar as mãos deles ou dar abraços. A maioria das pessoas de Jabalia parece estar em Rafah agora. Na longa rua que conecta o Centro da cidade com Tal al-Sultan, onde fica nosso acampamento, um novo mercado surgiu. Antes da guerra, a única feira ficava no Centro da cidade, mas agora o novo percorre a extensão dessa rua, onde há muitas escolas. Ontem, fiquei feliz em ver Othman Hussein, um poeta e amigo. Sua casa em Chuka, um vilarejo no Sudeste de Rafah, foi destruída, e ele precisou se mudar para a casa da filha perto do Hospital Europeu. Othman já havia perdido a casa na guerra de 2014, e a reconstruiu a tempo de os aviões a destruírem mais uma vez. “Nós construímos para eles poderem destruir.” Das duas vezes que a residência foi atingida, ele perdeu sua biblioteca pessoal. A última vez que eu tinha visto Othman foi durante a Feira do Livro de Ramallah. “Perdi todos os livros que comprei de 2014 para cá”, ele contou.
Enquanto isso, parece que temos novos vizinhos no acampamento na Base de Armazenamento da ONU. Novas barracas apareceram do nosso lado, e agora os ouvimos conversando e discutindo o dia inteiro. Passei a reconhecê-los – suas vozes e seus rostos – e decorei os nomes. Conforme o tempo passa, começamos a compartilhar nossas histórias pessoais, cada um aprendendo com a história do outro. É assim que uma nova comunidade emerge: com histórias se unindo.
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Notas
[1] Organização humanitária assistencial, equivalente à Cruz Vermelha, que atua na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. (Todas as notas são da Redação)
[2] Distrito da cidade de Gaza.
[3] Cidade ao Sul da Faixa de Gaza.
[4] Campo de refugiados de Jabalia, no Norte da Faixa de Gaza.
[5] Tática que o exército israelense tem usado em toda a Faixa de Gaza desde o início de sua ofensiva: são lançadas, de forma rápida, cinco a oito bombas JDAM (Joint Direct Attack Munition), que pesam 900 kg. Por ser um ataque inesperado, as perdas humanas são sempre grandes porque não dá tempo de as pessoas escaparem.
[6] Bilal Jadallah, jornalista e diretor da organização Press House – Palestine, morto em 19 de novembro de 2023, aos 45 anos, durante um ataque israelense. O livro do qual foi extraído este trecho é dedicado a ele.
[7] Bairro de Jabalia.
[8] Mercado ou feira, em árabe.
[9] Uádi é o leito seco de um rio de região desértica, por onde só corre a água na temporada de chuva. A palavra pode se referir também ao próprio rio.
[10] A Nakba (em árabe, “catástrofe”) é o nome dado ao êxodo de milhões de palestinos em 1948, em decorrência da Guerra Civil de 1947-48 na Palestina Mandatária.
[11] Wissam, artista plástica de 23 anos, recém-formada na faculdade de arte de Gaza, é sobrinha do autor. O prédio onde estava foi atingido por um míssil em 16 de outubro de 2023. Ela foi a única sobrevivente, mas teve as duas pernas e a mão direita amputadas.
[12] Cerca de aço construída por Israel em torno de toda a Faixa de Gaza.