Amazon: desafio a ícone do “novo” capitalismo

Empresa sofre megaprocesso judicial nos EUA por ataques ao pequeno comércio e direitos trabalhistas. No Brasil, livro revela como ela promove um consumismo “culto” – porém cego às violações que se acumulam por trás dos “descontos”

Publicado em Outras Palavras.

 

 

A bravura de uma servidora pública pode fazer diferença. Na terça-feira (26/9), a principal dirigente da Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC, em inglês) dos EUA, Lina Khan, abriu o maior processo judicial já movido contra a Amazon. A FTC e mais 17 estados norte-americanos acusam a megacorporação de usar seu poder econômico para monopolizar o varejo via internet, usando métodos e táticas que impedem rivais de vender e atingindo em especial o pequeno comércio. A batalha será longa, mas a ação iniciada expressa a emergência, em diversas partes do mundo, de nova consciência sobre os danos provocados pelas Big Techs. Se crescer, o movimento pode alcançar êxitos importantes. Nos EUA, uma das possíveis consequências do processo aberto é o desmembramento compulsório da empresa.

No Brasil, parte da opinião pública ainda não despertou, talvez porque a companhia de Jeff Bezos tenha, em seus primórdios, vendido livros. Porém, há muito tornou-se predatória não apenas contra concorrenets menores mas em especial contra os direitos dos trabalhadores. As condições laborais em seus armazéns são insalubres e degradantes e as tentativas de impedir ou reprimir a ação dos sindicatos são incessantes.

Um livro publicado no Brasil pela Editora Elefante ajuda a examinar estas práticas. Como resistir à Amazon e por quê foi escrito pelo livreiro norte-americano Danny Cayne, mas examina muito mais que a concorrência desleal. A ação da empresa contra Lina Khan, da FTC, é um exemplo. A corporação tentou bloquear sua nomeação e, ao não conseguir, quis impedi-la de se envolver nas ações contra a própria Amazon. Motivo: em 2017, quando ainda estudante de Direito, Lina foi uma das primeiras investigadoras a examinar a fundo as práticas da empresa… A servidora não se curvou. Sua atitude é um sinal de que continua possível lutar contra os pesadelos distópicos de nossa época. Leia a seguir o primeiro capítulo do livro. (A.M.)

 

 

Estamos em fevereiro de 2019 e agora mesmo, enquanto escrevo, o best-seller Um lugar bem longe daqui está à venda na Amazon por 9,59 dólares. Se eu encomendasse esse livro diretamente da editora para as prateleiras da Raven, teria de pagar 14,04 dólares por exemplar. A Amazon está vendendo esse livro por quase 5 dólares a menos do que o meu preço de custo. Ou seja, se eu quisesse vender esse livro pelo preço da Amazon, eu poderia simplesmente entregar ao cliente uma nota de 5 dólares do meu caixa. Minha livraria vende Um lugar bem longe daqui como vende qualquer outro livro: pelo preço impresso na capa. O preço está bem ali: 26 dólares. Como os clientes se sentem quando me veem tentando vender um livro incrivelmente popular por 16,41 dólares a mais do que o preço oferecido na internet? Os descontos dramáticos dados pela Amazon são apenas uma das formas de causar estragos na indústria do livro. Desde sua fundação, em 1995, a Amazon tem moldado cada vez mais esse setor à sua vontade. A empresa tem afetado a forma como os livros são projetados, distribuídos, impressos e vendidos, e seus esforços nesse sentido têm desvalorizado o Livro com L maiúsculo. Sua influência no mercado editorial é tão grande que afeta até mesmo as menores decisões tomadas nas menores livrarias.

Como dono de uma pequena livraria independente, sinto o impacto da Amazon todos os dias. Concorrência empresarial é uma coisa, mas é difícil entender como concorrência justa a forma como a Amazon paira sobre todos os aspectos do nosso negócio. A maioria dos livros vem [nos EUA] com o preço impresso na capa; nossa estreita margem de lucro (geralmente cerca de 40% do custo de cada livro) é calculada de acordo com o preço impresso do livro. Esses 40% são inferiores à margem de muitos outros produtos de varejo, que normalmente é de 50% ou mais. Às vezes essa margem mais alta se apoia na possibilidade do lojista de aumentar o preço de um item para atender melhor às projeções de vendas. É por esse motivo que as livrarias gostam de vender cartões de aniversário: neles, você pode definir sua própria margem para que sejam tecnicamente mais rentáveis do que os livros. Mas uma livraria não pode aumentar o preço de um livro sem encarar os clientes apontando para o preço indicado na capa. Baixar o preço de um livro cortaria uma margem que já está abaixo da média. Estamos basicamente presos ao preço definido pela editora. Em alguns países, existem até leis que impedem grandes descontos sobre o preço de capa dos livros. Mas, nos Estados Unidos, as livrarias independentes e pequenas empresas não têm proteção contra a ameaça das práticas de preço da Amazon.

Antes de ser acusado de elitista ou de alguém que tenta impedir que pessoas com poucos recursos tenham acesso a livros, deixe-me dizer que sou um firme defensor de sebos e bibliotecas públicas. Ambos são maneiras melhores de obter livros baratos do que comprar livros novos a preço reduzido na Amazon. A Amazon pode e pratica reduções drásticas no preço dos livros, ignorando o preço definido pela editora. Ela pode fazer isso porque não precisa ganhar dinheiro com livros, muito menos com os best-sellers. Ela pode oferecer Um lugar bem longe daqui como um produto que gera prejuízo devido à impressionante variedade de fluxos de receita rentáveis em seu portfólio. Grande parte de sua receita nem sequer vem do varejo: sua empresa de servidores, a awsaws, é a espinha dorsal de grande parte do conteúdo e da publicidade que aparece na internet. A espinha dorsal da internet tem uma margem de lucro muito maior do que os produtos de varejo, de modo que a Amazon pode contar com os lucros da awsaws para deixar seu braço de varejo causar “disrupção”. “Disrupção”, traduzido do vale-do-siliciês, significa “estrago irreparável”. Uma livraria independente não conta com um serviço de web hosting extremamente rentável em seu portfólio. Se não ganhamos dinheiro vendendo livros, não ganhamos dinheiro. Ponto. Livros são de 80% a 90% do que vendemos. Abrimos livrarias porque amamos os livros, e a nossa capacidade de levar isso adiante está ameaçada pelo experimento de uma grande empresa de tecnologia em causar disrupção, em bagunçar o nosso setor. O propósito da pequena empresa é encontrar um nicho de mercado fazendo algo pelo qual você é apaixonado. Se esse nicho atender a algum tipo de demanda ou servir algum tipo de comunidade, é possível ganhar a vida com um pequeno empreendimento que você construiu. O evidente uso que a Amazon faz de outros fluxos de receita para proporcionar preços de varejo abaixo dos custos está ameaçando a premissa das pequenas empresas.

Isso está dentro da lei? Bem, sim e não. Se o objetivo do jogo da Amazon for baixar os preços para eliminar a concorrência, e depois aumentar os preços uma vez que eles tenham afunilado o mercado, então não. Isso se chama precificação predatória, e é ilegal segundo as leis antitruste dos Estados Unidos. Mas o ônus da prova é muito alto para os casos de precificação predatória, e poucos — se é que já houve algum — foram comprovados em tribunal. Além disso, como discutirei mais à frente, as leis antitruste dos Estados Unidos nos últimos quarenta anos estiveram obcecadas em manter os preços baixos. Se as ações de uma empresa, não importa quão predatórias, mantêm os preços baixos para os clientes, é altamente improvável que o governo intervenha.

Já que estamos falando de preços de livros, vamos nos aprofundar um pouco mais. Tomando este livro que você está lendo como exemplo, é assim que preços e lucro geralmente funcionam: nos Estados Unidos, o preço de capa deste livro é de 16,95 dólares. Quando a Microcosm Publishing o vende diretamente a uma livraria, a Microcosm recebe algo como 54% desses 16,95 dólares, ou cerca de 9,15 dólares. Quando um dos exemplares é vendido, a livraria guarda os outros 7,80 dólares e os usa para pagar suas contas, funcionários, e talvez até mesmo para tirar alguns centavos de lucro. Geralmente, 15% dos 9,15 dólares da Microcosm vão para mim, o autor. Então, se você comprou este livro a preço cheio, obrigado pela sua contribuição de 2,54 dólares para as economias do autor Danny Caine. Já sem a minha fatia, a Microcosm recebe 6,61 dólares para imprimir e comercializar o livro, além de pagar funcionários e contas. Como este é um livro de uma editora independente, ao comprá-lo você está contribuindo para a economia local de Portland ao ajudar a Microcosm, uma pequena empresa, a oferecer empregos e movimentação econômica. Se você comprou de uma livraria local, haverá o mesmo efeito em qualquer economia para a qual essa livraria estiver contribuindo. Você também contribuiu com uma pequena parte para quem imprimiu o livro e para as pessoas que o levaram do estoque da Microcosm à livraria. Seus 16,95 dólares foram distribuídos entre muitas empresas, pessoas e economias locais. Essa divisão da torta editorial, assim como grande parte do mundo dos livros, é o que a Amazon se esforça para bagunçar.

Digamos que um cliente queira o novo romance policial do escritor de best-sellers Dean Koontz. Ele poderia comprá-lo na Amazon. Poderia comprá-lo da livraria que fica dentro da Columbus Circle, em Nova York. Poderia baixá-lo no seu Kindle. Poderia baixá-lo da Audible. Se gostar do livro, ele poderia publicar um post a respeito no Goodreads. Todas essas são formas perfeitamente normais de interagir com um livro. E, nesse caso em particular, também todas essas são maneiras de dar dinheiro a um dos homens mais ricos do mundo. Cada uma dessas maneiras de se relacionar com um novo livro de Koontz beneficia a Amazon. Mas isso nem chega a ser surpreendente. Só que, no caso de Dean Koontz, há algo mais: ele também assinou um contrato para que um selo editorial da Amazon agora publique seus livros. Não importa como um cliente compra um novo livro de Dean Koontz: mesmo que ele escolha comprar de uma livraria independente, o dinheiro vai para a Amazon. Qualquer novo livro de Dean Koontz é editado, impresso, publicado, comercializado e vendido por uma única empresa. Ele parece saber disso, pois foi citado no Wall Street Journal, dizendo: “Tivemos sete ou oito ofertas, mas a Amazon ofereceu o plano de marketing mais completo, e esse foi o fator decisivo”1. O plano é completo porque a Amazon pode fazer tudo o que precisa ser feito pelo livro. Um único livro, uma única empresa em cada etapa. Tradicionalmente, uma editora, uma livraria, um atacadista e uma transportadora são quatro entidades diferentes que têm uma fatia na venda de um livro. São quatro empresas diferentes que podem ganhar dinheiro com um único título. Mais fatias da torta. Mas, com os acordos exclusivos da Amazon, como o que foi feito com Koontz, a torta nem chega a ser fatiada. Koontz recebe sua porcentagem de royalties e a Amazon fica com todo o resto da torta. Até mesmo o transporte do livro pode acontecer inteiramente em caminhões e aviões controlados pela Amazon. Lembra daquela história em que várias pequenas empresas e economias locais recebiam uma parte do preço do livro? Já era. Depois de dar a Dean Koontz uma pequena fatia, a Amazon come o resto. E certamente ela adoraria fazer isso com mais autores. A Amazon não gosta de dividir tortas.

Além da menor quantidade de fatias dessa torta financeira, o controle de todos os aspectos do ciclo de vida de um livro por uma única empresa também pode representar um perigo teórico: a consolidação do poder e da influência, especialmente no que diz respeito aos livros, raramente leva a mais liberdade de expressão. Se uma única empresa tem controle sobre cada etapa de publicação e venda de um livro, é natural que essa única empresa molde qualquer aspecto desse livro para se adequar aos seus propósitos. Da mesma forma que um governo totalitário silencia vozes dissidentes, uma indústria editorial totalitária silenciará qualquer voz que não sirva aos seus algoritmos. Uma troca livre e sadia de diferentes perspectivas e vozes não pode prosperar se uma empresa com tendências totalitárias vigiar cada etapa da produção, edição e distribuição de cada livro.

Tudo isso — desde os preços potencialmente predatórios da Amazon até a consolidação dos seus livros — coloca uma tremenda pressão sobre as livrarias independentes. As pessoas muitas vezes recuam quando dizemos a elas o preço de um livro. Algumas até nos dizem o quanto é mais barato na Amazon. Outra coisa que ouvimos o tempo todo: que um cliente jura ter visto na internet uma versão em brochura de um livro que só está disponível em capa dura. É assim que funciona o ciclo das edições em brochura e capa dura nas empresas que jogam conforme as regras: nos Estados Unidos, as editoras lançam versões mais baratas em brochura dos livros apenas quando as versões mais caras, em capa dura, pararam de vender. Quando um livro como Um lugar bem longe daqui se torna um grande sucesso em capa dura, o editor não precisa publicar uma versão mais barata, pois a capa dura ainda está gerando dinheiro. É frustrante para os clientes, claro. Ainda assim, a grande maioria das brochuras aparece menos de um ano após as versões de capa dura terem sido lançadas. Mas alguns best-sellers são complicados porque podem seguir vendendo por dois ou três anos, ou até mesmo para sempre, na versão mais cara.

Muitas vezes, edições em brochura dos livros aparecem antes na Europa e vão parar nos marketplaces da Amazon nos Estados Unidos. Antes dos lançamentos em capa dura, as editoras também distribuem edições de cortesia, em brochura, para livreiros, jornalistas e influenciadores, para criar um burburinho. Parte dos acordos que firmamos com as editoras é uma promessa de não vender brochuras europeias nem exemplares de cortesia aos nossos clientes. Se descumpríssemos esse acordo, sofreríamos alguma penalidade dos nossos fornecedores. Mas o negócio é o seguinte: ainda surgem com bastante frequência aqueles clientes que dizem “Eu juro que vi a versão em brochura on-line”. E eles de fato viram. A Amazon torna excessivamente fácil que terceiros vendam brochuras europeias ou cópias antecipadas de livros que ainda estão disponíveis apenas em capa dura nas livrarias de quem segue as regras. “Por que não quebrar as regras e vender as cópias antecipadas?”, você diz. Bem, isso pode nos levar a perder nossos contratos com as editoras, e, se não recebermos os livros diretamente delas, ganhamos menos dinheiro. Para que as livrarias sejam bem-sucedidas, precisam trabalhar em conjunto com as editoras. Além disso, uma pequena livraria não tem poder suficiente para sair ilesa de uma briga com uma editora. A Amazon, por outro lado, tem todo o poder do mundo: nos Estados Unidos, ela representa 50% das vendas totais de livros e 75% das vendas de livros on-line. Que editor estaria tranquilo em perder metade de suas vendas por causa de uma discussão sobre brochuras europeias e cópias antecipadas? Então, em última análise, a impressão que a Amazon dá aos nossos clientes é de que pode oferecer algo que nós não podemos.

Um caso semelhante — a perspectiva falsa de que a Amazon pode vender um produto que não podemos — ocorreu no período que antecedeu o lançamento de Os testamentos, de Margaret Atwood. Foi um livro extremamente aguardado, a tão comentada sequência de O conto da aia. Para lançamentos tão cobiçados como esse, as livrarias têm de assinar uma declaração juramentada antes mesmo de poderem encomendar suas cópias, prometendo não colocar o livro à venda antes da data de lançamento. Para esse livro, o termo que assinamos foi particularmente rigoroso: “Você deve garantir que o livro seja armazenado em área monitorada, protegida e trancada, fora do andar de vendas, até a data do lançamento”. O que acontece se quebrarmos o acordo? Segundo o documento:

“Qualquer loja que viole as restrições contidas nesta declaração estará sujeita ao seguinte: (i) será responsável por todo e qualquer dano incorrido como resultado de tais violações; (ii) a Penguin Random House (prhprh) poderá restringir a loja do fornecimento, no todo ou em parte, de Os testamentos, de Margaret Atwood. Além disso, reconhecemos e concordamos que tal violação pode causar danos irreparáveis à prhprh e ao autor; que os danos monetários podem ser inadequados para compensar as violações; e que, além de quaisquer outros recursos que possam estar disponíveis em lei, em equidade ou não, a prhprh e/ou o autor poderão obter medida cautelar, sem necessidade de comprovação dos danos reais ou da prestação de qualquer caução.”

Então, se violarmos o termo assinado, um juridiquês assustador esperará por nós. Na prática, se formos pegos vendendo um livro antes da data de lançamento, enfrentaremos consequências como remessas atrasadas de outros grandes livros, o que nos faria perder vendas cruciais na primeira semana. Poderemos até perder nossa parceria com aquela editora, ou, de acordo com a declaração juramentada, ter de ressarcir os danos reais causados. Essas consequências são assustadoras, mas não é difícil para nós simplesmente não colocar o livro à venda antes da data de lançamento. Assumimos esse compromisso o tempo todo. Todo mundo também assume. Mas daquela vez as coisas seriam diferentes.

A primeira vez que ouvimos falar disso foi num post curto, num grupo fechado de livrarias independentes no Facebook, numa terça-feira, 3 de setembro de 2019. Uma nova dona de livraria havia encomendado Os testamentos numa pré-venda na Amazon. Isso aconteceu antes mesmo de ela ter uma livraria, antes de ela ser doutrinada no rancor que todos nós da indústria do livro mantemos contra essa empresa que às vezes chamamos simplesmente de “A”. Mas o que nos chateou não foi o fato de ela ter encomendado os livros na megaempresa de Bezos. O que nos chateou foi o fato de que ela o fez na terça-feira, 3 de setembro, uma semana antes da data de lançamento. Essa foi uma péssima notícia. Fui dormir naquela noite esperando que fosse apenas um incidente isolado. Não foi.

Acontece que aquela compra era o sintoma de um problema muito maior. Ainda não se sabe quantas cópias de Os testamentos foram enviadas antes da data, mas foram muitas. Embora não tenha declarado a fonte da informação, o jornal The Guardian acredita que oitocentas cópias tenham vazado. Leitores fizeram posts entusiasmados nas redes sociais falando de suas cópias antecipadas. As livrarias independentes começaram a fazer barulho, e por uma boa razão.

O envio antecipado de livros pela Amazon foi ruim em muitos aspectos: em primeiro lugar, quebrou as regras. Todo varejista que queria vender Os testamentos teve de assinar aquela declaração bastante rigorosa, jurando manter os livros literalmente encarcerados até 10 de setembro de 2019. Em segundo lugar, o lançamento antecipado deu às agências de notícias permissão para publicar resenhas e trechos da obra, acabando com a aura de segredo e mistério acerca do que acontece no livro. Em terceiro lugar, deixou a impressão de que as pessoas podem obter um livro mais rápido se encomendarem na Amazon em vez de comprar na livraria independente, mais lenta e cara. Nós já lutávamos constantemente para convencer as pessoas a gastar mais em livros. Agora, parecia que teríamos de lutar também para fazer as pessoas esperarem mais tempo para obter esses livros.

Tudo que ouvimos da editora de Atwood foram variações de respostas vagas sobre o fato de que estavam tratando do assunto. O livro vendeu bem na Raven, mas não foi, como esperávamos, o maior lançamento da temporada de outono. E não posso deixar de me perguntar se o lançamento bagunçado esvaziou o entusiasmo sobre o livro. Independentemente disso, Os testamentos sempre me lembrará de uma época em que a Amazon se safou de algo pelo qual seus concorrentes menores teriam sido punidos com severidade.

E essa é a questão: a Amazon é grande demais para ser punida. Na luta entre uma grande editora e a Amazon, todo o poder vai para a Amazon porque as grandes editoras precisam dela. Como qualquer indústria, o mercado editorial é dominado por grandes empresas. Metade das vendas de livros nos Estados Unidos acontece na Amazon, e as cinco principais editoras (Penguin Random House, HarperCollins, Simon & Schuster, Hachette e Macmillan) são responsáveis, segundo algumas estimativas, por 80% das vendas de livros. Uma briga entre uma editora das Big Five e a empresa de Bezos certamente enviaria ondas sísmicas para todo o setor, mas ter a metade das vendas totais de livros concede à Amazon toda a vantagem. Em 2014, a megavarejista entrou numa disputa motivada por e-books com a Hachette. Ambas as empresas queriam ter a palavra final sobre os preços dos e-booksda Hachette. O esforço da Amazon em mostrar seu poder a qualquer custo interessa mais que os detalhes da briga: ela atrasou as entregas de todos os livros da Hachette e ocultou a pré-venda de seus livros, o que certamente afundou as vendas da editora2. Mais de trezentos autores escreveram uma carta exortando “a Amazon, nos termos mais contundentes possíveis, a parar de prejudicar a subsistência dos autores sobre os quais ela construiu seu negócio”3, Na resolução da disputa, a corporação de Bezos acabou concedendo à Hachette o direito de definir os preços dos e-books, mas o estrago estava feito.

A Amazon mostrou, com sucesso, seu enorme poder de esgarçar o mercado editorial como um todo. Para a maioria das editoras, é impossível se afastar de um fornecedor que responde por metade das vendas de livros nos Estados Unidos. Muitas editoras sentem isso: ambivalência (ou ódio) em relação à Amazon, junto com uma aceitação relutante de que não se pode perder as vendas que ela oferece. Para mim, isso é sinal de que uma empresa já ficou grande demais, a ponto de manter um setor inteiro preso em suas mãos.

Essas histórias dizem respeito apenas à grande indústria livreira. Aparentemente, todos os dias as livrarias independentes são lembradas do enorme poder da Amazon. Durante o julgamento do impeachment de Donald Trump no Senado, surgiram notícias de que o ex-assessor de segurança nacional John Bolton não só havia escrito um livro, mas que ele continha revelações bombásticas sobre o caso da Ucrânia4. Naquele momento, as únicas coisas que as livrarias independentes tinham ouvido a respeito do livro de Bolton eram boatos de uma grande negociação. Mas, tão logo o New York Times publicou uma reportagem, uma página de pré-venda apareceu na Amazon. Quando tudo o que sabíamos eram rumores nebulosos, a editora de Bolton já havia dado à Amazon um título, capa, isbn e sinopse: tudo de que ela precisava para começar a ganhar dinheiro. Num circuito vertiginoso de informações, repleto de notícias bombásticas, as primeiras 24 horas após qualquer revelação são absolutamente cruciais para se ganhar dinheiro com tais livros. A ravenbookstore.com puxa automaticamente dados da Ingram, a maior atacadista do setor. O fato de a Amazon ter esses dados antes mesmo da Ingram tê-los enviado automaticamente para o meu site (ou qualquer outro site de livrarias independentes) significa que ela teve prioridade no conhecimento da existência desse livro. Embora eu pudesse ter pegado os dados da Amazon, adicioná-los ao meu site teria sido um processo manual trabalhoso, e cada minuto conta no circuito das notícias bombásticas. As informações finalmente chegaram à Ingram três dias após serem divulgadas pela Amazon. Não recebemos nenhum pedido nessa pré-venda. Porém, não é apenas nas pré-vendas que a empresa de Bezos está causando “disrupção”; ela está de olho em coisas tão universais quanto a aparência dos livros.

A Amazon, e sua enorme fatia do mercado, está mudando até mesmo a forma como os livros são diagramados. De acordo com o Vulture, portal de cultura ligado à revista New York, “num momento em que metade de todas as compras de livros nos Estados Unidos é feita na Amazon — e muitas delas pelo celular —, a primeira função de uma capa de livro, depois de indicar o conteúdo interno, é ter ótima aparência em miniatura”. Se você notou recentemente que há um monte de romances com títulos em negrito formando um bloco sobre fundos estampados vibrantes, é porque essas capas ficam boas numa tela de computador. “Se os livros passam por eras de design, estamos na era das estampas impactantes e dos títulos inchados. E podemos agradecer à internet.5” A Amazon tem noção do poder de uma boa capa que se adeque ao site, e faz uso desse conhecimento com grande sucesso. A revista Publishers Weekly analisou os resultados de um estudo do Codex Group, que mensurou de que maneira as capas de livros estimulavam os leitores a examinar seu conteúdo. Mais de cinquenta capas foram mostradas a mais de quatro mil consumidores ao lado de um botão “Leia mais”. Um clique no “Leia mais” contava como uma folheada. Oito dos dez livros mais clicados eram títulos publicados pela Amazon, com capas projetadas pela Amazon6. Eles sabem o que estão fazendo ao remodelar o visual dos livros.

A decisão mais insignificante dessa empresa é o suficiente para gerar pânico em todos no mercado editorial. De acordo com um editorial da revista n+1, “a Amazon continua capaz de revirar e sabotar p setpr e suas práticas com pouco mais de um empurrãozinho no algoritmo”7. Exemplos disso são abundantes, mas aqui vai um: no início do crucial quarto trimestre de 2019, a Amazon começou, de repente, a fazer pedidos muito menores que os do ano anterior para o mesmo mês8. A empresa alegou estar com problemas de recursos. Uma editora independente disse que, se as encomendas da Amazon não chegassem ao mesmo nível do que vinha sendo o padrão de pedidos dos anos anteriores num prazo de duas semanas, “nós poderíamos perder toda a temporada de férias”. Para quem trabalha com varejo, a temporada de férias é quando os lucros acontecem, se de fato acontecerem. Perder a temporada de férias significa aumentar as dívidas, demitir funcionários e fazer ajustes difíceis no planejamento de todo o ano seguinte. Eis uma empresa independente com receio de perder a época mais importante do ano simplesmente com base numa decisão tomada por um único varejista. Esse pânico ecoou em muitos negócios similares. O problema entre a Amazon e o mercado editorial é o problema de a Amazon ter se tornado grande demais, e seu crescimento não parecer desacelerar.

Em última análise, a Amazon interfere e subverte praticamente todos os aspectos da indústria do livro. Conceitos tradicionalmente aceitos, como precificação, design e prazos de entrega, têm menos credibilidade devido ao domínio e às ambições da Amazon. Embora o setor do livro esteja longe de ser perfeitao, as diretrizes a respeito de datas de lançamento e preços favorecem a concorrência e a inovação num mercado de margem baixa, e o desaparecimento dessas convenções põe em risco as pequenas empresas e livrarias independentes. Mas a Amazon convive bem com o risco, especialmente se voltarmos nossa atenção ao que ela espera dos trabalhadores que tornam possível tanta “disrupção”.

1 Alex Shephard, “Can Amazon Finally Crack the Best-Seller Code?”, The New Republic,

16 jan. 2020.

2 Carolyn Kellogg, “Amazon and Hachette: The Dispute in 13 Easy Steps”, Los

Angeles Times, 3 jun. 2014.

3 Judith Rosen, “Authors Pen Open Letter to Amazon about Hachette Dispute”,

PublishersWeekly, 3 jul. 2014.

4 O autor se refere às memórias de Bolton, publicadas em junho de 2020 com o título The Room Where it Happened: A White House Memoir. O New York Times obteve o original vazado cinco meses antes, em janeiro de 2020. No livro, Bolton acusava Trump de congelar 391 milhões de dólares em auxílios à Ucrânia até que as autoridades ucranianas ajudassem a investigar membros do Partido Democrata, em especial Joe Biden — então ex-vice-presidente dos Estados Unidos — e seu filho Hunter, que havia trabalhado numa empresa de energia ucraniana. [n.e.]

5 Margot Boyer-Dry, “Welcome to the Bold and Blocky Instagram Era of Book Covers”,

Vulture, 31 jan. 2019.

6 Jim Milliot, “Judging a Book by Its Title”, PublishersWeekly, 7 fev. 2020.

7 “Smorgasbords Don’t Have Bottoms”, n+1, n. 36, 26 fev. 2020.

8 Jim Milliot, “Amazon Reducing Orders to Publishers”, PublishersWeekly,

11 nov. 2019.

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