Argentina: negacionismo climático como política

Maristella Svampa é socióloga, escritora e pesquisadora argentina. Pela Elefante, já lançou Debates latino-americanos: indianismo, desenvolvimento, dependência e populismo e As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências, e novas traduções de seus textos estão prestes a pintar por aqui. Em tempos de COP30 no Brasil, é uma autora cujo pensamento crítico vale sempre acompanhar. Esse artigo foi escrito em parceria com Enrique Vale, fundador da Associação Argentina de Advogados Ambientalistas, diante do desmonte do governo Javier Milei.


Por Maristella Svampa e Enrique Vale
Publicado em El Diario Ar

Desde o início do governo libertário de Javier Milei, a Argentina vive um vertiginoso processo de desapropriação de direitos (sociais, trabalhistas, econômicos, culturais, ambientais), o que abre ainda mais as portas para a desproteção e exploração dos bens comuns naturais, bem como para o desmantelamento das regulamentações ambientais geradas nos últimos trinta anos, baseadas em uma arquitetura jurídica calcada em uma série de políticas regulatórias, institucionais e orçamentárias regressivas.

A Associação Argentina de Advogados Ambientais – Coletivo de Ação pela Justiça Ecossocial (AAdeAA – CAJE) sistematizou as regressões socioambientais registradas de dezembro de 2023 a 8 de julho de 2025, data em que expiraram os poderes extraordinários concedidos ao Poder Executivo pela “Lei de Bases”. Incluímos também os marcos que implicam a continuidade e/ou aceleração de políticas públicas com impacto ambiental que, além de comprometer os bens comuns naturais, afetam o cumprimento dos acordos internacionais firmados pela Argentina sobre mudanças climáticas em fóruns multilaterais.

Ao longo de quase oitenta páginas, o relatório revela a natureza flagrantemente regressiva e desreguladora explicitamente adotada pelo governo Milei no âmbito de um processo ultraneoliberal de reforma do Estado, que ameaça a sustentabilidade socioambiental e a vida democrática como um todo. Por regressão socioambiental, referimo-nos à deterioração e regressão das condições ambientais e sociais, impulsionadas pelo desmantelamento, desregulamentação, revogação e/ou modificação acelerada e negativa de um conjunto de regulamentações, agências estatais e políticas públicas associadas à proteção dos bens comuns naturais, ao combate às mudanças climáticas, à redução das desigualdades socioambientais e ao acesso à participação cidadã e à justiça.

É evidente que a Argentina vive o maior retrocesso em direitos econômicos, sociais, ambientais e culturais desde a restauração da democracia. O negacionismo climático tornou-se política de Estado. Em nome de uma suposta liberdade, o governo Milei executa um programa de pilhagem planejada: leis são revogadas, órgãos públicos são destruídos, rios e montanhas são entregues e aqueles que defendem a água, a terra e a vida são criminalizados. Esse plano sistemático de desmantelamento abre ainda mais vulnerabilidade à falta de proteção e exploração dos recursos naturais, ao mesmo tempo em que nos deixa indefesos diante dos graves impactos da crise climática.

Na introdução, analisamos as consequências da Lei de Bases e do Regime de Incentivos para Grandes Investimentos (RIGI), que não são apenas reformas, mas proteções legais para legalizar e perpetuar a desapropriação. O relatório, então, se desdobra em duas partes.

Primeiro, descreve a aceleração do extrativismo em todas as suas facetas e destaca como governadores, encorajados, aproveitaram a onda libertária para esmagar a resistência e promover megaprojetos extrativistas em diversas províncias. Combustíveis fósseis, desmatamento, mineração de lítio, mineração de metais a céu aberto, privatização de rios e represas, criminalização de protestos e um plano de inteligência antidemocrático. Aborda também as consequências de eventos extremos, como incêndios e inundações, que atingiram regiões ou cidades, deixando a população cada vez mais desprotegida.

Em segundo lugar, analisa-se em que medida o negacionismo climático, que se tornou política de Estado, envolve a destruição, o esgotamento e/ou o desfinanciamento de órgãos públicos e o desmantelamento de regulamentações ambientais laboriosamente implementadas nos últimos 30 anos. Entre elas, destacam-se o Ministério do Meio Ambiente, o INTA (Instituto Nacional de Águas), o INA (Instituto Nacional de Recursos Hídricos), a ACUMAR (Autoridade da Bacia Matanza-Riachuelo), o INAI (Instituto Nacional de Assuntos Indígenas) e a Direção Nacional de Emergências, entre outras. E a dissolução direta de organizações como a Direção Nacional de Agroecologia, o Instituto Nacional da Agricultura Familiar Camponesa Indígena (INAFCI), o Instituto Nacional de Sementes (INASE) e a Entidade Nacional de Água e Saneamento, entre outras. Inúmeras leis e fundos foram afetados, desmantelados ou revogados, como a Lei 26.160, sobre emergências territoriais para comunidades indígenas, ou a Lei de Terras (esta última paralisada pela justiça).

O frenesi de desregulamentação do governo ataca até mesmo a pouca promoção de energia renovável que existia no país (a lei de geração distribuída e o plano nacional de fabricação de aquecedores solares de água). Também desregulamenta as normas de proteção animal, que permitem a exportação de gado vivo (proibida desde 1973) e a exportação de animais selvagens, abrindo caminho para o tráfico de animais.

É importante destacar que o programa político proposto pelo atual governo de extrema-direita é abrangente. Economicamente, visa à ultraliberalização da economia, implementada por meio da desregulamentação estatal em áreas-chave, da dívida externa e do ajuste fiscal, favorecendo os setores mais concentrados da economia. Isso se expressou no desmantelamento de políticas públicas vinculadas ao meio ambiente, à saúde, à educação, aos setores mais vulneráveis ​​(cozinhas comunitárias, aposentados, movimentos sociais e setores da economia popular, pessoas com doenças graves e deficiências), aos povos indígenas, às mulheres e às comunidades diversas. Essas políticas e organizações públicas não funcionaram de forma otimizada, mas, sem dúvida, constituíram uma base regulatória a partir da qual se reivindicavam direitos e se reduziam as desigualdades.

Na esfera cultural, o atual governo busca suprimir qualquer narrativa centrada na defesa da justiça (seja social, ambiental, étnica, de gênero, entre outras). A chamada “batalha cultural” implica um ataque em larga escala aos campos da cultura, ciência, saúde pública e educação, jornalismo, até mesmo artistas populares, bem como a todos os grupos e setores que buscam estabelecer uma agenda de direitos (mulheres, indígenas, minorias sexuais, ambientalismo, entre outros), aos quais o governo libertário acusa de suposta “doutrinação”. Já mencionamos o alinhamento do governo com as posições mais retrógradas do negacionismo climático, fenômeno associado à extrema direita globalmente.

Socialmente, esse programa de destruição se articula com a implementação de uma política de criminalização e repressão do protesto social em todos os seus aspectos. Evidencia-se um retrocesso em termos de direitos e garantias, na tendência abertamente iliberal e antipluralista que busca abertamente obstruir a própria possibilidade de expressão (contra a liberdade de expressão e manifestação). As reformas introduzidas concedem poder punitivo às forças policiais e confirmam a tendência à militarização dos territórios extrativistas, o que se afigura altamente perigoso e inconstitucional. Em suma, o objetivo não é apenas gerar confusão, mas também medo e desmobilização, a fim de gerar uma submissão social absoluta que suprime não apenas direitos, mas também a própria possibilidade de protesto. Tudo isso é de tal gravidade política e institucional que coloca à beira do abismo os próprios fundamentos da democracia na Argentina.

Assim, o cenário regressivo em curso desde dezembro de 2023 é claro e convincente. Uma das principais características do programa da extrema-direita libertária é o ritmo acelerado e a aceleração das reformas em curso, possibilitadas por poderes extraordinários, com significativo impacto econômico, cultural e social.

Por fim, este Primeiro Relatório sobre Regressões Ambientais será apresentado formalmente à Câmara dos Deputados e ao Senado Nacional, bem como a organismos internacionais, como as autoridades do Acordo de Escazú. Como ato de memória coletiva, é necessário registrar os retrocessos e a violência dos últimos tempos. Mas também acreditamos que este relatório pode ser uma ferramenta de protesto e resistência, para imaginar e defender outro futuro, fundado na proteção da vida, na defesa dos direitos e na participação democrática. Ao sistematizar a regressão, busca também apontar caminhos de resistência e considerar chaves para reconstruir e defender o bem comum, ativar redes de solidariedade e cooperação e exigir justiça. Porque narrar o saque e o negacionismo climático é urgente. Mas imaginar soluções também é um ato político. A política ambiental de Milei não é uma anomalia: é o projeto. E deve ser detida.

Imagem: Martin Katz / Greenpeace Argentina

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