As demandas indígenas por liberdade, uma entrevista com Luma Ribeiro Prado

Por Teresa Cristina Silva

 

A escravidão indígena é um tema silenciado na historiografia brasileira. O livro de estreia de Luma Ribeiro Prado, Cativas litigantes: demandas indígenas por liberdade na Amazônia portuguesa (1706-1759), traz um novo enfoque ao assunto: o de indígenas, sobretudo mulheres, que usaram de vias institucionais e jurídicas em busca da liberdade — e conseguiram, em sua maioria.

A autora nos convida a verificar o passado para mudar o presente, uma filosofia comum à historiografia, mas pouco colocada em prática na política. Em Cativas litigantes, Luma ilumina questões pouco conhecidas da história dos povos ancestrais, que podem servir como uma base forte para pensar a luta indígena hoje.

Prado é de Itanhandu, na Serra da Mantiqueira. Aos dezessete anos, deixou Minas Gerais para estudar na Universidade de São Paulo (USP), onde se formou historiadora, professora e mestra. Em 2020, venceu o Prêmio História Social da USP (2020) com a dissertação que deu origem a este livro.

Entre outros feitos, trabalhou com história pública no De Olho nos Ruralistas — Observatório do Agronegócio no Brasil e contribuiu para a implementação da Lei 11.645/2008 (que determina o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena na educação básica), produzindo e avaliando materiais didáticos, e oferecendo consultorias. Atualmente, compõe a equipe do Programa Povos Indígenas no Brasil do Instituto Socioambiental (ISA).

Discutimos com a autora os principais temas abordados em Cativas litigantes e como esses se relacionam com contemporaneidade, em que os povos originários assistem a avanços na luta, como a criação de um Ministério dos Povos Indígenas, mas também a retrocessos, como é caso da promulgação do Marco Temporal pelo Congresso, mesmo após o Supremo Tribunal Federal ter determinado a inconstitucionalidade da proposta. Tal qual no período analisado por Luma (1706-1759), vemos hoje um protagonismo feminino na militância indígena. Entenda esses e outros pontos na entrevista abaixo.

 

Sobre o que fala Cativas litigantes e o que traz de importante para as discussões históricas acerca do direito e, sobretudo, da luta dos povos indígenas?

Cativas litigantes investiga a escravidão indígena e a resistência ao cativeiro pela via institucional na Amazônia sob colonização portuguesa no século XVIII. O livro atesta, por um lado, o largo emprego do braço indígena escravizado — de maneira legal e, amplamente, ilegal — nas atividades extrativistas, agrícolas, de reprodução social nas capitanias do norte, aquelas que não pertenciam ao Estado do Brasil, o Maranhão e o Grão Pará. Por outro lado, demonstra que as mulheres e os homens se insurgiram contra a exploração de seus corpos e o controle de suas vidas se valendo do aparato imposto pelos invasores e colonizadores.

As cativas litigantes usaram das leis e do aparato institucional dos colonizadores — que permitiam e regulavam a escravidão — para buscar melhores condições de vida e até para deixar de ser escravizadas. Elas e eles acharam uma fresta, apontando o cativeiro clandestino e irregular, denunciando seus senhores, para conseguir uma vida um pouco mais digna para si e para família. Como está escrito na quarta capa, quem se espanta hoje com a atuação dos advogados indígenas em defesa dos “parentes” vai conhecer seus antecessores do século XVIII, que eu chamo de “cativas litigantes”.

A pesquisa traz de novo a presença tão recuada, no século XVIII, de indígenas na justiça. Presença que antecedeu às demandas de negros escravizados e aos advogados afrodiaspóricos, que já tinha sido bem abordada pela historiografia brasileira. Historiadores que vieram antes de mim já haviam trabalhado com o tema em artigos, como David Sweet e Márcia Mello, mas Cativas litigantes é inteiramente dedicado ao assunto. Assim, pude reiterar a existência de uma maioria de mulheres nos pleitos, mas notar também a presença de aldeados e de mamelucos, cafuzos e mulatos demonstrando que a escravidão indígena era generalizada e francamente ilegal. No último capítulo, eu analiso as estratégias judiciais e extrajudiciais das litigantes e de seus senhores, contribuindo pra compreensão do funcionamento da justiça colonial.

 

Tendo em mente sobretudo o contexto de avanços, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, em 2023, e o recente protagonismo de mulheres indígenas na política, quais são as principais contribuições da sua pesquisa para o debate dos direitos indígenas e da luta dos povos originários na contemporaneidade? 

O engenho e a luta das litigantes compõem a memória das resistências à exploração do trabalho e devem ser acionadas sempre que necessário, assim como vem sendo atualiza pelos advogados e advogadas indígenas, pelas mulheres-bioma, tanto na política institucional quanto nos territórios. O livro demonstra que essa luta pode ser recuada ao menos até o século XVIII e pode fortalecer os ânimos e servir de inspiração para as ações e estratégias adotadas nos dias de hoje.

A historiadora Márcia Mura, que escreveu a orelha do livro, diz que com, a leitura de Cativas litigantes, pôde perceber um pouco da dimensão da violência sofrida pelos seus antepassados, mas que também se sentiu encorajada na luta. Fui agraciada por essa leitura, pois esse é o duplo efeito que gostaria de provocar com o livro: indignação com a denúncia da escravidão indígena generalizada — capítulo invisibilizado ou mal contado de nossa história — e ânimo para que indígenas e apoiadores, como eu, continuem na defesa dos direitos indígenas.

 

Por que falar das demandas indígenas por liberdade na Amazônia portuguesa é importante? O que te atraiu para a pauta? 

Falar da luta para sair do cativeiro, para abrandar a exploração do trabalho, é falar de resistência, mas é também tratar da escravidão, da escravização e das diversas formas compulsórias de trabalho a que pessoas indígenas foram submetidas durante a invasão e colonização na Amazônia. E na história do Brasil fala-se muito sobre escravidão negra — o que é justíssimo — mas pouco ou quase nada sobre escravidão indígena. E sem escravidão indígena a história do Brasil fica incompleta. Sem escravidão indígena escondemos um elemento estruturante da colonização e da acumulação de riqueza nos bolsos dos invasores e colonizadores do estado do Grão-Pará e do Maranhão, mas também da capitania de São Paulo, dos atuais centro-sul, centro-oeste e do litoral do Brasil, a depender da temporalidade.

As demandas indígenas por liberdade são uma porta de entrada para o cotidiano dos trabalhadores escravizados. Investigá-las é entender um pouco mais como as mães indígenas atuavam como amas de leite e empregadas domésticas, é perceber a ameaça que sentiam de ser afastadas de seus filhos e de seus companheiros, é saber que os escravizados indígenas apanhavam e sofriam maus-tratos de toda ordem, que eram constrangidos a um trabalho extenuante desde a tenra idade — como Germana, uma criança do rio Japurá, batizada com nome branco, que de 4 para 5 anos foi escravizada e levada até Tapuitapera, atual Alcântara no Maranhão —, explorados até a velhice, sem trégua, como podemos ver na demanda do cafuzo Francisco que pediu para não trabalhar por estar doente.

Fiquei atraída pelas cativas litigantes por elas terem sido sujeitos tão ativos e engenhosos na luta contra escravidão, fato extraordinário e raro, considerando o volume de escravizados na região no século XVIII. Ao longo da pesquisa e da escrita do livro, fiquei mais fascinada ainda por poder entender um pouco mais sobre as formas de escravização e o cativeiro indígena na Amazônia.

Pouco se fala sobre as expedições que saíam de Belém e de São Luís em direção aos sertões do rio Amazonas para capturar pessoas indígenas e enviá-las aos cativeiros. “Guerras justas” e tropas de resgate foram formas legais de transformar pessoas indígenas em escravizados e estavam previstas na letra da lei até 1755. Um punhado de sal, metros de tecido de algodão, agulhas e avelórios serviam para comprar prisioneiros indígenas; guerras intertribais foram movidas para que determinado povo não sucumbisse ao cativeiro; ataques noturnos a aldeias, envolvendo a queima das casas e o sequestro de mulheres e crianças, foram tão corriqueiros que adquiriram um nome nas fontes (“amarrações”); missionários jesuítas tinham o encargo de assinar os certificados de escravidão que deveriam garantir que a escravização tinha respeitado as normas e leis coloniais; “currais” e “arraias” abrigavam os cativos até que fossem transportados para Belém e São Luís para serem leiloados e, então, levados pelos senhores como “peças” — que é um termo de época para se referir aos trabalhadores escravizados.

 

Você destaca o papel das mulheres indígenas na sua pesquisa — a maioria das ações foi movida por elas. Que papel é esse? Por que você acha que elas foram a maioria?

Mais que o dobro de mulheres indígenas apresentaram demandas por liberdade nos tribunais de Belém e São Luís no século XVIII. Não tenho uma resposta definitiva para essa predominância, mas minha hipótese é que elas foram movidas pelo fato do ventre materno, naquela época, definir a condição dos filhos. Ou seja, uma mãe livre legava a liberdade, ao passo que uma mãe escravizada tinha seus filhos no cativeiro. Somado a isso, junto com a historiadora Camila Dias, defendo que essa maioria é representativa do maior número de mulheres nas vilas e cidadelas coloniais, o que reflete uma divisão sexual do trabalho colonial — com os homens como trabalhadores livres empenhados nas expedições extrativistas e com a ingrata missão de atuar nas tropas de escravização, e com as mulheres, crianças e velhos como escravizados ou aldeados, atuando na reprodução da sociedade, em trabalhos agrícolas e domésticos. Essa divisão, por sua vez, pode ecoar uma anterior divisão sexual do trabalho indígena — estudada por Florestan Fernandes nas sociedades tupi e que podemos encontrar também na etnologia — de mulheres agricultoras e homens no encargo das expedições de caça e guerra.

 

Para quem é o livro Cativas litigantes?

Para quem quer saber mais sobre história do Brasil para além da história dos centros econômicos coloniais, das plantations de cana-de-açúcar baianas, do Vale do Paraíba das fazendas de café, das Minas Gerais da mineração. No livro, se conhece mais sobre a invasão dos territórios indígenas amazônicos, sobre a escravização dos indígenas, os cativeiros e aos aldeamentos em que viviam mulheres, homens e crianças de diversos povos originários, incluídos nas áreas colonizadas. Para quem quer conhecer e se inspirar pela luta das mulheres em situações das mais adversas.

 

O chamado trabalho compulsório ou análogo à escravidão, entre povos originários ou não, segue existindo na realidade brasileira. Você acredita que a leitura da sua pesquisa pode auxiliar no debate público e na construção de políticas públicas sobre o tema? Em que sentido?

A agricultura é o setor que mais se vale da escravidão contemporânea. Vira e mexe lemos notícias sobre os Guarani Kaiowá sendo explorados no trabalho análogo à escravidão nas lavouras de mate. O arco do desmatamento está sustentado pela grilagem e pelo braço cativo. Não precisamos ir para o século XVI, XVII e XVIII para encontrar indígenas escravizados. Na ditadura empresarial-militar, encontramos muito com escravidão indígena atuando na construção de estradas e na mineração, por exemplo. Esse assunto é muito traumático e pouco falado pelos indígenas que sobreviveram a essas agruras.

Portanto, estudar a escravidão indígena é complexificar as visões que temos sobre a escravidão e ampliar as experiências de cativeiro. É entender que, por vezes, indígenas e africanos conviveram no cativeiro. Jogar luz na escravidão indígena contribui para que a gente possa entender mais a história da colonização das terras que chamamos hoje de Brasil. Como o historiador John Monteiro já disse, acrescentamos um elemento valioso para compreender o massacre a que os povos indígenas resistiram e resistem: não foi só invasão e roubo de terras, epidemias, deslocamento forçado, fragmentação dos povos, conversão; teve também e muita escravidão.

Além disso, esse estereótipo que encontramos por aí do “índio preguiçoso” não tem lugar. Porque, em primeiro lugar, é evidente que são outros modos de vida, entendimentos e práticas de trabalho, conectadas ao sustento das comunidades e não ao lucro; mas também porque eles foram superexplorados pela escravidão e por outras formas de trabalho compulsório ao longo de nossa história. As estimativas do número de trabalhadores escravizados no auge da exploração de cacau na Amazônia são equivalentes ao montante de escravizados negros na Bahia da cana-de-açúcar e na mineração das Minas Gerais.

 

Você lança luz sobre a agência de povos originários, sobretudo mulheres indígenas, que se valeram de canais institucionais em busca de mais autonomia, liberdade, melhores condições de trabalho etc. É possível traçar um paralelo com a luta por garantia de territórios dos povos indígenas, que se utiliza de vias institucionais outras — como foi o caso do debate em torno do Marco Temporal no Congresso Nacional, no Executivo e no STF — como um dos principais meios e campo de disputa na atualidade? 

Sim. Ao menos desde o século XVIII, indígenas, sobretudo mulheres, se deram conta da condição de cativeiro, aprenderam a língua corrente e a intrincada linguagem jurídica, trocaram experiências e táticas de sobrevivência, estabeleceram redes de aliança e embate e reclamaram seus direitos nos tribunais. Direitos que foram, podemos dizer, retirados e impostos, com muitos limites, numa linguagem ocidental a elas e eles. Essa luta da advocacia indígena — cujo maior expoente hoje é o setor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) — pode adicionar às suas referências as cativas litigantes. Na ADPF 709, impetrada pela Apib durante a pandemia pra defender a vida dos indígenas, o advogado Eloy Terena chegou até ao STF e registrou que se tratava da primeira vez que indígenas clamavam à maior corte do Brasil. Com este livro, eu complemento que se tratou da primeira vez no Brasil República, porque na colonização portuguesa as e os cativos litigantes chegaram a clamar por liberdade até mesmo ao rei, em Portugal. É uma via de resistência que se vale das armas do colonizador, das classes dominantes capitalistas, do Estado, contra eles mesmos.

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