Autonomias em construção, experiências inacabadas

Por Raúl Zibechi
Trecho do prefácio de Geografia da autonomia

 

A autonomia e o autogoverno se converteram em correntes políticas e culturais que não reconhecem fronteiras nem cor de pele, modificando a projeção histórica dos povos que buscam se emancipar das opressões coloniais e patriarcais. Não é tarefa simples definir uma data para o começo desse processo de construção de autonomias coletivas e territoriais, mas registramos crescentes esforços no sentido de mapeá-las e seguir seus rastros, como demonstra o trabalho de Fábio M. Alkmin.

Geografia da autonomia: a experiência de autonomia territorial zapatista em Chiapas, México tem a enorme virtude de não se tratar apenas de um relato analítico sobre o movimento zapatista, mas de também se aprofundar em como a emergência de novos movimentos indígenas desarticulou a estratégia política institucional de cooptação dos povos originários — em particular no México, mas sempre em um diálogo possível com a realidade latino-americana. E também sugere que o conflito social é crucial para o desenvolvimento da teoria: que ele é tanto a sua base epistemológica quanto a raiz que sustenta o pensamento crítico.

Para mim, o aspecto mais interessante deste livro reside na análise da territorialização das autonomias concretizadas por alguns sujeitos coletivos, pois demonstra as notáveis diferenças que essas autonomias carregam com relação às instituições autônomas criadas pelo Estado em outras latitudes. Mas a questão central neste trabalho é o modo como Fábio considera as autonomias. Não se trata de instituições, nem mesmo de instituições dos povos criadas “abaixo e à esquerda”, mas sim de processos longos, de tempos longos, como diria Fernand Braudel, e, por isso, sempre inacabados.

Longe de uma concepção estatista ou institucional, as autonomias aqui analisadas surgem como relações sociais em movimento que necessitam sempre ser renovadas e aprofundadas, porque, se não agem assim, se não saem do lugar herdado, acabam capturadas pelo Estado, pelo mercado ou por algum dos muitos grupos armados sistêmicos — desde aqueles criados pelo agronegócio até o narcotráfico, todos com apoio institucional. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) expande-se territorialmente e ao mesmo tempo se transforma, modificando sua forma de atuar e os modos como constrói as autonomias. A virada tripla anunciada há dez anos (geracional, de gênero e de cor da pele) pressupõe mudanças ainda mais profundas para além da rotação no papel de porta-voz do movimento, função que cabe agora ao subcomandante Moisés, no lugar antes ocupado por Marcos ou Galeano.

Na esteira dessa virada tripla, o movimento vai se modificando, torna-se mais indígena, mais jovem e, sobretudo, mais feminino, no sentido profundo do termo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais os zapatistas evitam a guerra, porque as comunidades (mulheres e jovens, principalmente) decidiram pela “resistência civil pacífica”, porque sabem que enfrentar a guerra com guerra conduz a um genocídio que é sempre pago pelos povos originários, como ocorreu na Guatemala na década de 1980.

Para quem observa de fora o zapatismo, é tão difícil aceitar que seu porta-voz agora seja o indígena Moisés quanto que tenham sido as comunidades e bases de apoio que escolheram não fazer a guerra, tomando decisões que, na velha cultura política, diziam respeito às diretorias, a comitês centrais, sempre dominados por homens brancos de classe média ou alta, com formação acadêmica e hábeis no uso da palavra. Aceitar que sejam as mulheres das comunidades, com profundos saberes fundados em suas cosmovisões e experiências de vida, quem verdadeiramente dirige o movimento, isso desafia o imaginário colonial e patriarcal que permanece dominante em nossas esquerdas.

Apesar disso, o livro de Fábio não faz a menor concessão à simplificação e à idealização do zapatismo. É muito consciente das enormes dificuldades que o movimento atravessa, do impacto do progressismo do governo de Andrés Manuel López Obrador (2018-2024) sobre o mundo popular, assim como da proliferação de grupos paramilitares (alguns provenientes de movimentos camponeses que em algum momento simpatizaram com o zapatismo) e da enorme presença do narcotráfico na sociedade mexicana. Esses são alguns dos tremendos desafios que o zapatismo enfrenta e que podem trazer sérias consequências para o próprio movimento, mas que estão sendo tratados sem os usuais pragmatismo e oportunismo a que tantos partidos de esquerda nos acostumaram.

Estamos diante de um movimento rebelde e anticapitalista que se transforma permanentemente. Por isso, Fábio nos adverte que “a construção da autonomia não possui, assim, uma conclusão, nunca podendo ser considerada uma experiência definitiva ou acabada, por mais duradoura que seja”. Porque se trata de autonomias em resistência e para a resistência, autonomias que não são portos de chegada, mas espaços de luta onde são construídas novas relações sociais, nem capitalistas, nem patriarcais. O zapatismo abre, assim, as portas para novos modos de fazer política e também para estratégias não estatistas para mudar o mundo. Acredito que não podemos exigir mais nesta trágica esquina da história.

Para o leitor desavisado, é necessário esclarecer que a opção pela autonomia não está baseada em alguma ideologia e, menos ainda, nos debates habituais no Ocidente e na academia, mas sim na urgência pela sobrevivência dos povos originários e de outros setores oprimidos da sociedade, submetidos ao modelo de espoliação dominante, que, sem muita precisão, denominamos “extrativismo”. De fato, os povos necessitam se defender desse modo de acumulação de capital que pressupõe uma verdadeira guerra de espoliação, ou “quarta guerra mundial”, como é chamada pelos zapatistas.

 


RAÚL ZIBECHI é uruguaio de Montevidéu, jornalista, escritor e ativista diante dos movimentos sociais na América Latina. Publicou vários livros, muitos deles traduzidos para outros idiomas. Pela Elefante lançou Territórios em rebeldia, um mergulho nas lutas dos povos latino-americanos.

 

Foto: Mulheres bases de apoio nos territórios autônomos zapatistas, em Chiapas, México. Se no início as bases de apoio zapatistas possuíam a importante função de apoiar e dar sustentação ao EZLN, tornaram-se posteriormente as protagonistas do processo de autonomia territorial zapatista. Arquivo Cuartoscuro

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