Por Aline Gatto Boueri
Publicado no Uol Universa
Durante a infância e a adolescência, a escritora e jornalista argentina Belén López Peiró, de 29 anos, deixava Buenos Aires para passar as férias no vilarejo onde sua família materna morava. E foi durante essas férias que, entre os 13 e os 16 anos, ela sofreu abusos sexuais praticados por seu tio materno, um policial respeitado na cidade e na família. A autora relata o que viveu no livro Por que você voltava todo verão? (Editora Elefante), lançado essa semana no Brasil. Suas denúncias não foram bem aceitas por parte dos parentes. “Uma mulher que denuncia um abuso gera incômodo, obriga as pessoas a mudar a forma como elas vivem”, disse a escritora.
Em entrevista a Universa, Belén conta por que decidiu escrever “um livro incômodo”, onde descreve em detalhes as violências que viveu, a cumplicidade familiar com o abusador e o despreparo da Justiça no momento de acolher crianças, adolescentes e mulheres que decidem denunciar abusos. “Enquanto eu abaixava a cabeça e ficava em silêncio, eu guardava o segredo do abusador”, diz. “Precisamos romper com essas instituições que nos mantêm caladas, escondidas, dominadas”. Leia a entrevista a seguir:
UNIVERSA – Quando você começou a escrever sobre o abuso que viveu já pensava que seria um livro ou começou como uma espécie de escrita terapêutica?
BELÉN LÓPEZ PEIRÓ – A maioria das pessoas acha que foi uma catarse ou um texto terapêutico, mas não foi assim. Talvez depois, com o tempo, sim, mas Por que você voltava todo verão? nasceu em uma oficina de escrita. Na época eu já estava formada em jornalismo. Durante quase um ano eu escrevi ficção, até que tive que fazer um exercício de texto sobre identidade e o que eu fiz foi usar as ferramentas que tinha adquirido, mas sem perder de vista que era um texto para um projeto literário. Com o tempo, percebi que o que eu estava fazendo me empoderava.
Qual é a importância de enfrentar essa ruptura do silêncio ao lado de pessoas preparadas e sensíveis ao que aconteceu com você?
Para mim foi fundamental. Algumas pessoas sequer têm o que eu tive, que foi meu pai, minha mãe e meu irmão acreditarem no que eu contei. Por outro lado, eles sentiam tanta dor e tanta responsabilidade pelo que eu tinha vivido, que me transmitiam muita tristeza e isso tornava difícil para eles me acompanhar da maneira que eu gostaria de ser acompanhada. Essa é uma questão nos casos de abuso intrafamiliar, porque o abusador é uma pessoa próxima, com quem todos têm uma relação.
A oficina de literatura me permitiu falar do abuso em um espaço onde eu não me sentia vítima, pelo contrário.
Quando apresentei o texto, não me disseram “sinto muito”, me disseram “seu texto é uma maravilha, o que você produziu é muito bom”. E eu comecei a acreditar que era capaz de transformar parte da minha história. Compreendi que aquele era um lugar seguro, que esses lugares existiam e que eu não precisava seguir com aquilo em solidão.
O livro é polifônico, entre outras coisas, porque não é para ser lido somente por quem passou por situações parecidas, porque essas pessoas já sabem qual é a sensação de passar por um abuso. O livro é também para quem está perto de alguém que conta uma história assim, para que enxerguem maneiras de acompanhar aquela pessoa. Porque esse acompanhamento pode mudar aquela vida.
O livro traz detalhes do abuso que você sofreu, mas nos seus próprios termos. Como foi o processo de preparação para voltar a contar essa história, mas em uma posição diferente?
Eu denunciei o abuso em 2014 e comecei a escrever o livro em 2016. Nos primeiros anos, não me sentia representada pelo que atribuíam a mim, quando diziam ou achavam que a minha vida tinha sido arruinada ou que eu queria que ele apodrecesse na prisão. O que eu sentia era muita dor de ter que contar e voltar àqueles momentos diante de uma pessoa desconhecida.
A escrita me permitiu voltar ao passado sem me machucar tanto, foi um canal para olhar para o passado como se eu estivesse sentada numa cadeira e observando a cena. Cada vez que dava um depoimento, eu voltava a sentir aquela mesma dor, mas escrever foi um alívio, me permitiu ter pelo menos um pequeno domínio sobre uma situação em que eu estava vulnerável.
O livro se passa entre Buenos Aires e um vilarejo próximo. Qual é a importância dessa distância e também dessa proximidade entre os dois lugares para a história que você conta?
Minha mãe nasceu num vilarejo que fica duas horas e meia de distância da cidade de Buenos Aires, capital da Argentina. Depois de terminar a escola, ela foi a única da família que veio morar na capital, então nós viajávamos todos os finais de semana até lá, onde também passávamos as férias de verão.
Quando eu era pequena, eu via isso como algo negativo, porque precisava viajar para estar perto da minha avó, das minhas tias e primas, mas também foi essa distância que me permitiu tomar a decisão de denunciar os abusos cometidos pelo meu tio. Porque no vilarejo com dois mil habitantes, meu tio ocupava espaços de poder nas forças de segurança, na única delegacia, no único clube local, no único hospital. Denunciar um abuso em um vilarejo é muito mais difícil do que denunciar algo assim em uma cidade grande.
Você menciona no livro essa dificuldade de convencer as pessoas do vilarejo a falar sobre o assunto, tanto no processo judicial quanto nas conversas familiares. Você mistura as vozes dessas pessoas com sua própria voz. Como foi o processo de tomar tudo o que você teve que ouvir e contá-lo com as suas próprias palavras?
No começo eu fui ingênua e pensei que quando eu contasse o que aconteceu minhas tias me amparariam, minhas primas me defenderiam, que acreditariam em mim e que isso seria suficiente. Eu precisava que houvesse uma decisão familiar de afastar as crianças de perto do meu tio, do círculo íntimo e, no entanto, a resposta foi completamente diferente. Algumas mulheres da minha família não acreditaram em mim e quem acreditou disse que não podia fazer nada. Então eu percebi que tinha a ver, em parte, com o incômodo.
Uma mulher que denuncia um abuso gera incômodo, obriga as pessoas a mudar a forma como elas vivem. Eu tentei expressar esse incômodo no livro de maneira que quem leia sinta um golpe e fiz isso através de uma linguagem crua, sem metáforas ou eufemismos.
As vozes que aparecem no texto, muitas delas violentas e omissas, são quase todas de mulheres da sua família. Por que você acha que essas mulheres optaram por defender o seu tio?
Quando eu escrevi o livro eu sabia claramente que era a representação de mulheres que estavam desconfortáveis e que havia uma certa raiva. Foi bastante natural, porque minha mãe só tem irmãs, são cinco mulheres e todas as minhas primas são mulheres, com exceção de um primo. Meu tio era o único tio homem, a única figura masculina, além do meu pai e do meu irmão. Mas as vozes femininas eram parte central da minha história de vida.
Então foi também descobrir que a estrutura de poder masculina se sustenta a partir de vozes femininas também. Para que um homem seja capaz de submeter uma menina é preciso que haja pessoas dispostas a validar a posição dele e, em muitos casos – pelo menos no meu – essas pessoas eram, em sua maioria, mulheres.
Esse desconforto familiar se mistura com uma abordagem insensível e muitas vezes dolorosa por parte da Justiça. Como essas duas instâncias se complementam no seu caso de abuso?
Nós nos tornamos vítimas no momento em que o abusador exerce o abuso, mas o problema é que depois isso continua, quando a estrutura de poder por trás do abuso permanece e se consolida. Em geral, o abusador é uma pessoa com muito poder em relação à vítima, o que torna muito difícil falar disso ou denunciar, mesmo dentro da família. Porque existe essa ideia de que devemos fazer tudo pela família, de que os problemas domésticos se resolvem portas adentro. E também faltam ferramentas.
Durante muitos anos, pais e mães consideraram que não era necessário dar educação sexual integral a seus filhos. Não tínhamos palavras para nomear o abuso, ninguém falava sobre consentimento. Quando alguém consegue romper essa barreira de silêncio, a primeira reação é culpar a pessoa que denuncia numa tentativa de manter a ordem estabelecida.
E isso se perpetua depois na Justiça, como uma continuação da hipocrisia familiar. Na maioria das vezes, a Justiça coloca a denunciante – e não o denunciado – no banco dos réus. É uma Justiça que expulsa, que nos obriga a contar uma e outra vez a mesma história, que não nos acolhe.
Como foi o processo de se reconhecer como vítima para depois sair desse lugar?
Eu sabia que aquilo me fazia sentir mal, porque pertencia à ordem dos segredos, que era algo que eu não podia contar, que eu estava mentindo para minha mãe. E porque eu amava o meu tio de outra maneira e não queria ser obrigada a entregar meu corpo a ele em troca de ter uma boa relação com ele. Eu não era capaz de formular isso dessa maneira na época, mas havia um mal-estar emocional e corporal que me indicava que o que acontecia não era correto, mas eu não sabia explicar os motivos.
Me reconhecer como vítima dessa situação foi bom no princípio, mas com o tempo percebi que havia muitos estereótipos associados à palavra vítima – e muitas projeções também. Por exemplo, que eu teria problemas com o meu corpo, que eu seria uma mulher incapaz de desejar sexualmente, que não conseguiria me divertir, que cada vez que eu falasse do assunto deveria chorar, que eu deveria ser um trapo, que ele destruiu a minha vida.
Não acho que ele tenha destruído a minha vida. O que aconteceu foi uma merda, sim, mas minha vida não se reduz ao que ele fez comigo. Foi fundamental me reconhecer como vítima, mas também foi importante conseguir sair rapidamente desse lugar.
Você conta no livro esse momento de recuperar seu próprio corpo depois de elaborar o abuso. Como foi essa experiência?
Quando o abusador deixa de abusar, muitas vezes somos nós que damos prosseguimento a esse dano que nos foi causado. No meu caso, esteve muito associado a transtornos alimentares e de imagem. Eu ganhava e perdia muito peso com rapidez e não entendia como isso acontecia – e até hoje convivo com isso. Para lidar com isso, busco ferramentas para reintegrar esse corpo que foi expropriado durante muito tempo e esteve nas mãos de outra pessoa.
Quando alguém submete o corpo de outra pessoa, essa pessoa pode deixar de senti-lo como próprio, já que não houve um limite ali. Para reestabelecer esse limite é preciso fazer um trabalho árduo, um dia de cada vez. E, de repente, o desejo sexual volta a aparecer e retomamos o domínio sobre o próprio corpo. No entanto, não acho que isso acontece de uma só vez nem para sempre. Ainda estou nesse processo.
Quando você decidiu denunciar o abuso, ainda não havia surgido o movimento Ni Una A Menos, que apareceu na cena pública com uma manifestação multitudinária em junho de 2015. O que mudou a partir daí?
Todo o meu processo de elaboração aconteceu entre 2013 e 2014, quando eu decidi denunciar. Mas até 2015 o abuso permanecia no âmbito privado. Naquele momento, meu pai, minha mãe e meu irmão sabiam que eu havia sido abusada e isso era suficiente. Eu fui à Justiça, mas fui caladinha, como uma vítima, com a cabeça baixa, porque entendia que isso me diminuía como mulher.
Em 2015, o abuso ganhou uma dimensão política e pública, que me fez entender que eu não estava sozinha, que não acontecia só comigo. Somos muitas mulheres dispostas a romper com essas instituições que nos mantêm caladas, escondidas, dominadas. Para mim, foi uma maneira de ver que eu não seria uma vítima durante toda a minha vida, que o abuso não ia destruir minha vida e que eu não tinha motivos para me calar nem manter em segredo o que eu vivi.
Percebi que, enquanto eu abaixava a cabeça e ficava em silêncio, eu guardava o segredo do abusador. Foi aí que compreendi que o pessoal é político e que, afinal, o abuso também tinha me transformado na mulher que eu sou. E eu sigo em frente, agora acompanhada, porque além da dimensão pública também apareceu a dimensão coletiva, que me fez ver que eu nunca mais estaria sozinha, que cada vez que eu fosse prestar depoimento eu estaria ao lado de uma amiga e que eu não estava lutando só por mim.