Maurício Reimberg
Orelha de Nós, filhos de Eichmann

 

Em Nós, filhos de Eichmann apresentam-se duas cartas abertas, enviadas em 1964 e 1988 pelo filósofo austríaco-alemão Günther Anders a Klaus Eichmann, o filho mais velho do oficial nazista Adolf Eichmann, que executou a logística de transporte de milhões de pessoas a campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. Günther Anders, um dos principais autores do século XX e militante antifascista na juventude, escreve após o célebre julgamento de Eichmann, buscando convencer Klaus a expressar um gesto de desacordo com relação ao pai, ao mesmo tempo que vê na sua figura a impossibilidade de elaborar individualmente o luto após Auschwitz.

No entanto, a linguagem direta e compreensiva de Anders não implica um sentimento anódino de compaixão, como verá o leitor. A própria tentativa frustrada de diálogo, que se torna tema da segunda carta, serve à configuração de um interlocutor social mais amplo. Anders quer falar a todos os “filhos de Eichmann”, que teriam a seu modo obliterado a imagem do pai deixando-se embalar pela “calma enganosa” do Estado de bem-estar social europeu, vinculado estruturalmente à corrida armamentista e à ameaça atômica, como bem sabia o autor.

É nesse contexto que ele afirma: “Também nós precisamos constatar que fomos vítimas de um delírio: aquele que para nós ‘fez o papel de pai’ é idêntico ao ‘pai’ que há duas décadas havia imperado”. O seu juízo tem um pressuposto social, que se formula a partir do conceito de “discrepância prometeica”. Para Anders, no mundo fordista o trabalhador já não conseguia imaginar os efeitos distantes de suas ações, dado o triunfo irrefutável do aparato técnico de produção.

Assim, as piores atrocidades podem ser realizadas como se fossem um trabalho trivial, sem culpa nem remorso. Ou seja, todos poderíamos nos tornar cúmplices ou vítimas de uma máquina de extermínio. Isso não eliminaria a “oportunidade moral positiva”, diz Anders. No entanto, na medida em que a ideia de futuro se inscreve no tempo presente enquanto ameaça impessoal e permanente, a negação da ordem existente torna-se mais problemática, deixando-se de se processar nos termos próprios da norma progressista.

Tanto assim que Anders se volta a uma militância “antiapocalíptica”, definida pela tentativa radical de adiar o horizonte de extinção da humanidade. Esse equivalente político, que orienta Nós, filhos de Eichmann, anuncia-se nas belas análises andersianas sobre a literatura moderna. Bastaria lembrar seu estudo sobre Kafka. Nos seus termos bem conhecidos, o personagem kafkiano “não se sente preso por dentro, mas por fora. Não quer se evadir, mas invadir o mundo”, tornado opaco e impenetrável.

Aliás, desde o seu Kafka: pró e contra, publicado aqui pela primeira vez em 1969, os livros do autor não recebiam tradução para o português. Esse desencontro histórico entre a obra de Anders e o Brasil mereceria reflexão à parte, sobretudo agora que se recicla entre nós a fraseologia do capitalismo inclusivo, já quase inteiramente desprovida de função mobilizadora para a imaginação social e política. Se assim for, estas cartas a Klaus Eichmann ganham, finalmente, a chance de buscar seu destinatário brasileiro.

 

Maurício Reimberg é doutor em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP)

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