Como Israel exportou sua tecnologia colonial e racista ao mundo

Em Laboratório Palestina, lançado pela Elefante, Antony Loewenstein nos conta uma história para além do noticiário cotidiano sobre os ataques militares de Israel. A ideia é explicar como aquele Estado exporta tecnologia de ocupação para o mundo, passando pelas influências e impactos da indústria armamentista israelense e das tecnologias desenvolvidas ali. Trata-se de uma espécie de modelo para o planeta, de utopia prática da extrema direita mundial. Segue abaixo um trecho do livro, relacionado à relação de Israel com a África do Sul do apartheid, destacado e adaptado em publicação da revista Jacobina.

por Antony Loewenstein

A contradição que mora no coração do Estado judeu teve pouco impacto em seu sucesso. No entanto, ser judeu em Israel é muito mais perigoso do que viver como judeu em quase qualquer outro lugar do mundo. Essa falta de segurança não se deve ao judaísmo, mas à postura política e militar da nação.

“É uma democracia na qual é preciso ser judeu para desfrutar de plenos direitos cívicos”, escreve o cineasta, fotógrafo e acadêmico Haim Bresheeth-Žabner em seu livro de 2020, An Army Like No Other: How the Israel Defense Forces Made a Nation. “O sionismo marcou a mudança de muitos pequenos guetos judeus europeus para um gueto moderno, grande e poderoso, que se destaca. Esse gueto em particular fracassou em seu projeto utópico de construir uma existência judaica sem o goy [não judeu].”

Isso pode ser visto no relacionamento de Israel com a África. Muitos países africanos apoiaram Israel depois de 1948 como uma nobre luta anticolonial porque conseguiam se relacionar com a causa israelense. Um dos aspectos menos conhecidos dessa dinâmica, pouco antes da Guerra dos Seis Dias, foi o apoio de Israel à campanha contra o domínio da minoria branca na Rodésia, atual Zimbábue. Israel condenou o regime liderado pelo nacionalista branco Ian Smith após sua declaração unilateral de independência em 1965 e apoiou um boicote militar e civil ao regime.

No entanto, a defesa de Israel não se deveu a um amor pela autodeterminação africana, mas a uma decisão calculada para reunir apoio africano contra o que considerava uma “difamação” árabe e comunista. Israel também estava interessado em explorar os recursos naturais da África e imediatamente começou a construir relações com líderes flexíveis na República Centro-Africana depois que ela declarou independência da França em 1960.

Documentos desclassificados dos Arquivos do Estado de Israel indicam que Tel Aviv forneceu treinamento a grupos rebeldes que lutavam contra o racismo na Rodésia, embora a natureza exata do treinamento seja desconhecida. Algumas autoridades apoiaram a luta armada. O embaixador de Israel na Zâmbia, Ben Zion Tahan, enviou um telegrama inequívoco em 23 de novembro de 1965: “Na minha opinião, o principal caminho é o terrorismo, ainda que seja o mais complicado para os combatentes”.4 Quando o primeiro líder do Zimbábue, Robert Mugabe, visitou Israel em 1964, ele agradeceu ao Estado judeu pelo apoio ao seu movimento de resistência e expressou o desejo de que seus combatentes recebessem treinamento israelense em guerra de guerrilha.

Depois de 1967, o interesse de Israel pelos movimentos de libertação diminuiu e seu apoio a eles se tornou muito menos eficaz, pois o país se tornou ele próprio um invasor. E não houve melhor aliança política, militar, diplomática e ideológica entre nações com ideias semelhantes do que entre Israel e a África do Sul do apartheid. O regime do apartheid assumiu o poder em Pretória em 1948 e logo implementou restrições no estilo nazista aos não brancos, desde a proibição do casamento interracial até a exclusão dos negros de muitos empregos.

A comunidade judaica sul-africana era fortemente pró-Israel e se tornou o maior apoiador financeiro per capita de Israel no pós-1948. A maioria desses judeus se beneficiou do apartheid sul-africano e ajudou a sustentá-lo. Uma minoria pequena, mas notável, opôs-se bravamente à segregação e se uniu ao Congresso Nacional Africano (CNA) em sua campanha pela libertação.

Quando os governos sul-africano e israelense consolidaram um relacionamento político, ideológico e militar na década de 1970, muitas vezes centrado em armas que haviam sido desenvolvidas e testadas pelos militares israelenses, muitos membros do partido Likud no poder sentiram afinidade com a visão de mundo da África do Sul. Como escreveu o jornalista e autor do livro The Unspoken Alliance, Sasha Polakow-Suransky, tratava-se de uma “ideologia sobrevivencialista de minorias, que apresentava os dois países como postos avançados ameaçados da civilização europeia, defendendo sua existência contra os bárbaros no portão”.

Um desses proeminentes dissidentes judeus foi Ronnie Kasrils, que atuou como ministro da Inteligência da África do Sul entre 2004 e 2008 sob um governo do CNA. Ele disse ao Guardian que a comparação entre as duas nações não era acidental:

Os israelenses afirmam que são o povo escolhido, os eleitos de Deus, e encontram uma justificativa bíblica para seu racismo e exclusividade sionista. Tal qual os africânderes da África do Sul do apartheid, que também tinham a noção bíblica de que a terra era sua por direito divino. E tal qual os sionistas que afirmavam ser a Palestina da década de 1940 “uma terra sem povo para um povo sem terra”, os colonos africânderes espalharam o mito de que não havia negros na África do Sul quando eles se estabeleceram no século xvii, sendo que eles tomaram a terra pela força das armas e do terror, em uma série de sangrentas guerras coloniais de conquista.

Fazendo bons negócios em meio à desigualdade

Em meados da década de 1970, o relacionamento entre os dois países ficou tão próximo que o primeiro-ministro israelense Yit-zhak Rabin convidou seu colega sul-africano John Vorster para uma visita que incluiu um tour pelo Yad Vashem, o memorial do Holocausto em Jerusalém. Vorster foi simpatizante nazista e membro do grupo fascista africânder Ossewabrandwag durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1942, ele expressou com orgulho sua admiração pela Alemanha nazista. No entanto, ao chegar a Israel em 1976, Vorster foi homenageado por Rabin em um jantar de Estado. Rabin brindou “aos ideais compartilhados por Israel e África do Sul: a esperança de justiça e coexistência pacífica”. Ambas as nações enfrentavam “instabilidade e imprudência de inspiração estrangeira”.

Poucos meses depois da visita de Vorster, o anuário do governo sul-africano explicou que ambos os Estados estavam enfrentando o mesmo desafio: “Israel e a África do Sul têm uma coisa em comum acima de tudo: ambos estão situados em um mundo predominantemente hostil, habitado por povos negros”. O relacionamento entre as nações era amplo, mas também sigiloso. Em abril de 1975, foi assinado um acordo de segurança que definiu as relações bilaterais para os vinte anos seguintes. Uma cláusula do acordo afirmava que ambas as partes se comprometiam a manter o documento em segredo.

Alon Liel, ex-embaixador israelense em Pretória e chefe do escritório do Ministério das Relações Exteriores de Israel na África do Sul na década de 1980, explicou que a relação entre os dois países fora vital para os setores de Defesa de ambos, transformando-os em importantes atores globais. Liel argumentou que, na instauração da segurança israelense, muitos se convenceram de que Israel, como nação ocupante, não teria sobrevivido sem o apoio dos africânderes. Ele e outro ex-embaixador israelense na África do Sul, Ilan Baruch, escreveram em 2021 que Israel era um Estado de apartheid, inspirado na África do Sul pré-1994. De acordo com Liel:

Criamos o setor armamentista da África do Sul. Eles nos ajudaram a desenvolver todos os tipos de tecnologia, porque tinham muito dinheiro. Quando estávamos desenvolvendo coisas juntos, geralmente entrávamos com o know-how e eles, com o dinheiro. Depois de 1976, houve um caso de amor entre as instituições de segurança dos dois países e seus exércitos. Estávamos envolvidos em Angola [a África do Sul não reconheceu a independência do país em 1975 e apoiou seus oponentes] como consultores do exército [sul-africano]. Havia oficiais israelenses lá cooperando com o exército. A ligação era muito íntima.

Hostilidade à opinião internacional

Às escondidas do mundo todo, Israel ignorou o embargo de armas imposto pelo Conselho de Segurança da ONU à África do Sul. Em 29 de agosto de 1984, Hanan Bar-On, vice-diretor do Ministério de Relações Exteriores de Israel, enviou um telegrama a David Kimchi, seu chefe, explicando:

“A política israelense […] é de não admitirmos de forma alguma [as vendas de armas], seja a um israelense ou a um ator estrangeiro. E menos ainda a um congressista estadunidense, mesmo que ele seja considerado um amigo e a relação com ele seja supostamente íntima”.

O aspecto mais secreto do relacionamento foi o apoio mútuo dado à capacidade nuclear de cada um. França e Grã-Bretanha forneceram materiais essenciais para ajudar Israel a desenvolver armas nucleares, e a produção em grande escala começou após a Guerra dos Seis Dias. Com um suprimento abundante de urânio, a África do Sul tinha uma base sólida para construir seu próprio estoque, mas precisou de Israel para fornecer conhecimento técnico. De acordo com o ex-oficial de inteligência israelense Ari Ben-Menashe, a África do Sul permitiu que Israel testasse armas nucleares no Oceano Índico em 1979, embora Tel Aviv negue ter conduzido os experimentos.9 Israel chegou a oferecer a venda de ogivas nucleares para a África do Sul na década de 1970, mas o acordo nunca se concretizou.

Documentos secretos trazidos a público indicam que a África do Sul queria as armas para atingir potencialmente os Estados vizinhos, como forma de dissuasão de ataques. O primeiro-ministro sul-africano P. W. Botha e o ministro da Defesa israelense Shimon Peres conspiraram para manter o acordo totalmente secreto. Uma carta de Peres de 1974 para a África do Sul afirmava que ambos tinham um “ódio comum à injustiça” e que ele pressionava por uma “estreita identidade de aspirações e interesses”. Na década de 1980, Israel era o principal fornecedor de armas da África do Sul.

Inicialmente, Washington não estava totalmente ciente da extensão da colaboração nuclear de Israel com os sul-africanos, e o sigilo israelense continua até hoje. Sua instalação nuclear em Dimona nunca foi inspecionada pela Agência Internacional de Energia Atômica, e presume-se que Israel tenha mais de duzentas armas nucleares. Durante a primeira reunião entre o presidente dos Estados Unidos Joe Biden e o então primeiro-ministro israelense Naftali Bennett em agosto de 2021, Washington reafirmou o antigo entendimento de que não forçaria Israel a aderir ao Tratado de Não Proliferação Nuclear ou a abrir mão de suas bombas. Israel concordou em não promover nenhum teste nuclear nem ameaçar realizar ataques nucleares, mantendo sua “ambiguidade nuclear”.

Em 1971, C.L. Sulzberger, colunista do New York Times, escreveu que Israel e a África do Sul haviam se tornado tão próximos que ele ouviu um boato não confirmado de que “uma missão sul-africana foi a Israel durante a Guerra dos Seis Dias para estudar táticas e uso de armas”. O premiê sul-africano Vorster disse ao colunista que Israel enfrentava seu próprio “problema de apartheid” — ou seja, como lidar com os árabes. “Nenhuma das duas nações”, escreveu Sulzberger, “quer colocar seu futuro inteiramente nas mãos de uma maioria que a cerca. Ambas preferem lutar”. Em 1977, Sulzberger foi acusado de ser um agente da cia por Carl Bernstein, da equipe de reportagem do Washington Post que revelou o escândalo do Watergate.

Os benefícios mútuos dessa relação não se restringiam à capacidade de ganhar dinheiro com o setor de defesa; trata-se de uma afinidade ideológica sobre como lidar com populações indesejadas. Os bantustões da África do Sul, áreas em que os residentes negros viviam sem autonomia, serviram de inspiração para boa parte da elite israelense como um modelo viável para a Palestina. O sonho era isolar os palestinos “indesejáveis” em enclaves não contíguos, bantustões isolados do resto do país — algo bem parecido com a atual Cisjordânia, onde 165 “enclaves” palestinos são estrangulados por colônias israelenses, pelas IDF e por colonos violentos.

Durante a era do apartheid sul-africano, os diplomatas israelenses ao redor do mundo foram instruídos a dizer à mídia que o Estado judeu não reconhecia os bantustões. Isso era mentira, como provou um telegrama enviado por Natan Meron, vice-diretor do Ministério das Relações Exteriores, em 23 de novembro de 1983: “Não é segredo que figuras políticas e públicas israelenses estão envolvidas de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, em atividades econômicas nos bantustões”.

O uso de retórica da era do apartheid sul-africano para defender a ocupação israelense segue vigente. Durante a campanha eleitoral israelense de 2019, Benny Gantz, líder da oposição, criticou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu por proibir as congressistas estadunidenses Ilhan Omar e Rashida Tlaib de entrar em Israel e nos territórios palestinos. Em vez disso, disse Gantz, as duas mulheres deveriam ter sido autorizadas a ver “com seus próprios olhos” que “o melhor lugar para ser árabe no Oriente Médio é em Israel […] e o segundo melhor lugar para ser árabe no Oriente Médio é a Cisjordânia”. Isso lembra a declaração de John Vorster, líder do apartheid sul-africano, ao New York Times, em 1977, de que “o padrão de vida do negro sul-africano é de duas a cinco vezes mais alto do que em qualquer país negro da África”. Um dos arquitetos do apartheid na África do Sul, o ex-primeiro-ministro Hendrik Verwoerd, escreveu no Rand Daily Mail em 1961 que “Israel, como a África do Sul, é um Estado de apartheid”, formado com a tomada da Palestina dos árabes que “viviam lá há mil anos”.

O ex-premiê israelense Ariel Sharon era um fã declarado dos bantustões — foi um dos maiores defensores da construção de assentamentos nas colônias israelenses a partir da década de 1970 e queria adaptá-los à Cisjordânia. Em sua autobiografia, o ex-embaixador israelense Avi Primor escreveu a respeito de uma viagem à África do Sul no início da década de 1980 com o então ministro da Defesa Ariel Sharon e relembrou o quanto este ficou impressionado com o empreendimento dos bantustões. O ex-primeiro-ministro italiano Massimo D’Alema disse ao Haaretz, em 2003, que Sharon havia lhe explicado que o modelo do bantustão era o mais apropriado para a Palestina.

Uma arquitetura de controle global

Perto do fim do regime de apartheid da África do Sul e da primeira eleição democrática, em 1994, Israel era uma das últimas nações a manter relações com o regime da minoria branca. O establishment de defesa israelense há muito tempo estava encantado com sua própria propaganda e acreditava que o apartheid duraria para sempre. Nelson Mandela percebeu. Em um discurso de 1993 para os delegados da Internacional Socialista, ele disse: “O povo da África do Sul jamais esquecerá o apoio do Estado de Israel ao regime do apartheid”.

A missão inicial de Israel era ser um farol em um século que sofreu catastroficamente os perigos do etnonacionalismo. Hoje, ideologicamente e com equipamentos militares e de inteligência, Israel inspira outras nações a aprofundar a sanha missionária israelense de encontrar e criar países com a mesma mentalidade que a sua. Nenhum deles será igual a Israel, mas seu modelo de chauvinismo e de orgulho descarado de priorizar os judeus acima de tudo é como uma embalagem lisa, facilmente transportável, que pode ser adaptada a uma infinidade de países e cenários.

Oficiais estadunidenses e israelenses estão presentes em vários países do mundo, treinando, armando ou pressionando autoridades locais para que apliquem suas políticas de imigração, contraterrorismo e policiamento. O Norte global, incluindo os Estados Unidos, a União Europeia, a Austrália e Israel, impõe seu poder de forma implacável, controlando quatro quintos da renda mundial, sem qualquer interesse em compartilhar essa riqueza.

Essa arquitetura de controle precisa ser administrada internamente, mas também no exterior, por meio de Estados-clientes confiáveis. As fronteiras internacionais são fisicamente invisíveis, mas ideologicamente poderosas. Elas são compostas de elementos diversos, como a manutenção de palestinos em um gueto por Israel; o envio à força de refugiados em barcos para ilhas remotas e perigosas do Pacífico pela Austrália; a União Europeia permitindo deliberadamente que migrantes não brancos se afoguem no Mediterrâneo; os Estados Unidos expulsando latino-americanos que, muitas vezes, estão fugindo de políticas projetadas por Washington em seus países de origem.

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