Concreto tipo ostentação, uma perfeita lógica capitalista

A Elefante está lançando Concreto: arma de construção em massa do capitalismo, de Anselm Jappe, livro que parte desse material tão visível e palpável para pensar nos valores do capital aplicados à nossa vida cotidiana, inclusive nessa capacidade de uniformizar as formas de construção. O texto abaixo é a orelha da edição, escrita por Gabriel Zacarias, professor da Unicamp e autor de No espelho do terror: jihad e espetáculo (2018) e Crítica do espetáculo: o pensamento radical de Guy Debord (2022), ambos publicados pela Elefante.

por Gabriel Zacarias

Em poucos lugares do mundo o concreto parece ter se imposto de maneira tão esmagadora como no Brasil, onde, signo de modernidade em terras periféricas, é mesmo ostentado com orgulho. Mas é fato — e ademais um fato notável — que o concreto logrou impor-se por toda parte, constituindo uma uniformização sem precedentes dos materiais construtivos em escala mundial. Anselm Jappe toma por alvo essa uniformização, já criticada pelo pensamento situacionista, mas aprofunda a crítica da arquitetura moderna ao centrar-se em seu material dominante. Retomando a história do concreto, procura compreender as razões de seu sucesso na modernidade recente, bem como dimensionar a perda que esse triunfo acarretou.

Quais outras formas de construção, que outros materiais e que outros saberes foram progressivamente apagados e esquecidos ao longo dessa marcha triunfal? Materiais duráveis substituídos pela obsolescência programada do concreto; concepções vernaculares de construção e saberes compartilhados perdidos em nome da mercadorização do habitar. A progressão do concreto acompanha o avanço do modo de vida que tem por centro a reprodução da mercadoria e que, enquanto tal, transforma cada esfera da vida em mercadoria. Se, por um lado, é necessário se debruçar sobre esse material em sua especificidade para entender as razões e consequências de sua onipresença, por outro, é preciso compreender que sua vitória não se deve apenas a fatores técnicos. Afinal, se um crítico do valor como Anselm Jappe escolhe por objeto a análise do concreto, é por encontrar nele algo que vai muito além de um problema de engenharia.

O capitalismo, como compreendido por Marx e retomado pela Wertkritik, deve ser entendido como uma organização social orientada para a reprodução do valor, que universaliza a forma-mercadoria (como objetos portadores do valor) e a forma-trabalho (como atividade produtora de valor). Nesse contexto, nos lembra Jappe, “cada trabalho, portanto, cada mercadoria, não conta por sua particularidade e sua relação com a vida humana, mas somente como porção maior ou menor de uma única substância, de uma substância sempre igual, sem conteúdo, que apaga qualquer particularidade. Com efeito, Marx chama o trabalho abstrato de ‘gelatina’ (Gallerte)”.

Daí advém o interesse de interrogar esse material construtivo em particular. Pois “qual outra coisa parece mais com uma gelatina do que o concreto?”. Não se trata de mera analogia, adverte o autor. Se “o valor capitalista aboliu todas as particularidades locais, todas as tradições, e se impôs como a única lei até os últimos rincões do planeta, onde a vida social antes obedecia a leis muito diferentes segundo as regiões; da mesma maneira, o concreto estendeu seu reino monótono ao mundo todo ao homogeneizar com sua presença todos os lugares”.

Para Jappe, o “concreto é a materialização perfeita da lógica do valor”, pois é “um material sem limites próprios (líquido de início), amorfo, polimorfo, que pode ser moldado em qualquer fôrma”, o qual “se adapta a todos os climas, a todas as circunstâncias” e que, mesmo não existindo “em lugar nenhum em estado natural, tornou-se onipresente”. Jappe conclui que, em nossos tempos, “a gelatina do trabalho abstrato é feita de calcário e cascalho”. O leitor encontrará neste livro uma rara e preciosa articulação entre o geral e o particular, uma crítica do capitalismo enquanto totalidade através do estudo de uma de suas particularidades mais palpáveis.

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