Contar o outro Antropoceno

Por Stefania Barca*

Prefácio de Lutar com a floresta: uma ecologia política do martírio em defesa da Amazônia

 

No meio do grande coro das obras que vêm nos falando de Antropoceno — a época da destruição da biosfera por parte da Humanidade —, este livro faz parte daquele essencial contracanto que nos conta uma história meio escondida, mas muito resiliente e resistente, de cuidado com a biosfera, de luta para realizar uma outra Humanidade (nas palavras de Chico Mendes) e, com ela, uma outra época. Essa luta, como sabemos, teve um dos seus epicentros globais na Amazônia, e não apenas no Acre, onde o movimento extrativista nasceu e de onde se espalhou por todo o Brasil, mas também no sul do Pará — e justamente na região de Nova Ipixuna, naquele primeiro Projeto Agroextrativista (PAE) castanheiro fundado em 1997 por Maria do Espírito Santo da Silva e José Cláudio Ribeiro da Silva, junto com outros e outras.

Este livro nos mostra os e as extrativistas como “verdadeiros ambientalistas” — ou seja, nas palavras de Zé Cláudio, os que não vendem (e não se vendem) ao capital. Mas também, ao contar a história dos movimentos que geraram o extrativismo, Lutar com a floresta mostra como estes integram uma classe trabalhadora que cuida dos sistemas terrestres em uma relação de interdependência. Essa é a classe trabalhadora da qual a narrativa do Antropoceno não fala, mas que representa aquela verdadeira humanidade que era o objetivo de Chico Mendes, a ser realizado por meio da instituição das Reservas Extrativistas (Resex). 

Desde a morte do líder acreano, os e as extrativistas da Amazônia têm cuidado da floresta, protegendo-a do impacto destrutivo da mineração e do desenvolvimento industrial e garantindo a regeneração do solo, das plantas, da água e da biodiversidade. Suas vidas e trabalhos foram e continuam sendo decisivos para desacelerar a degradação dos sistemas terrestres na era da “grande aceleração”. Ao mesmo tempo, seu trabalho foi violentamente combatido e sua própria existência, ameaçada por aquelas forças da sociedade brasileira que os veem como obstáculos ao crescimento do PIB. Contudo, sua história ainda está ausente das narrativas do Antropoceno e sua voz não é ouvida nas políticas ambientais e climáticas globais. 

O PAE Praialta Piranheira representava uma forma nova de assentamento, unindo de modo orgânico e inovador a reforma agrária e a conservação da floresta, enquanto resultado de uma convergência histórica das lutas de movimento sociais e ecologistas. Sendo assim, Praialta representava também um sonho, no sentido de possibilidade concreta de realizar uma potencialidade, um “ainda não” que começava a fazer-se presente: esse era o sonho de Maria. Nas palavras dela própria, das quais o autor se tornou guardião fiel e “falador” ao longo da década passada, tratava-se de “um sonho coletivo de ver […] estas quase quatrocentas famílias [que vivem no PAE] […] agregando valor em sua renda com o extrativismo” (p.267). Era um sonho mais-que-humano, que envolvia da mesma forma os castanheiros e as castanheiras e ainda o castanhal como seres interligados, que em conjunto realizariam as potencialidades das suas vidas. Os primeiros porque a castanha era a fonte de sua alimentação material e cultural e possibilidade de desenvolvimento autônomo; o segundo porque, sem os/as castanheiros/as, ele teria sido sacrificado à “pata do boi”, como nos lembra o autor, acabando em madeira morta e carvão.

Como explica Milanez na introdução, este livro pretende (e, a meu ver, consegue) ser muito mais do que a biografia de um casal de ambientalistas martirizados por terem se oposto ao avanço da destruição na Amazônia. O livro que você tem em suas mãos é, de certa forma, o casal, no sentido de que reflete a voz, a experiência, o pensamento de Zé Cláudio e Maria, espalhando-os no espaço e no tempo: do lote onde ele e ela viviam e onde contaram suas histórias num dia de outubro de 2010, a todo o Brasil, e além. Hoje e, estou certa, por muito tempo no futuro. Sua história — falada pelo pesquisador que os conheceu, mas também por eles próprios (no último capítulo, bem como no filme Toxic Amazon) — resiste e atua contra aquela compressão do tempo e do espaço que Milanez refere como caraterística fundamental do capitalismo colonial, premissa necessária para a acumulação de renda e causa principal da destruição de diversidade biocultural. 

Contar esta história, que não é apenas individual, mas coletiva, e não apenas humana, mas mais-que-humana (pois envolve a castanheira como um ser vivo), torna-se uma forma de desfazer o Antropoceno. Isto porque — como argumento em meu livro Forces of Reproduction [Forças da reprodução] (2020), inspirado na história de Maria e Zé Cláudio — toda a vida, a luta e o trabalho do casal foram dedicados a desfazer os processos que fundamentaram o Antropoceno, tornando-se invisíveis e normalizados por sua narrativa: a opressão de classe, de raça, de gênero e de espécie. Essa complexidade e riqueza do engajamento deles com o mundo explica, para mim, não apenas o martírio (final triste de uma luta que para ele e ela valia a pena), mas sobretudo a potência e relevância dessa história ao longo dos anos, e por todo o mundo.

Stefania Barca é pesquisadora na Universidade de Santiago de Compostela.

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