Desobediência financeira, arma anticolonial

Obra reúne ensaios de movimentos ao redor do mundo que lutam contra o endividamento, denunciando-o como uma forma de violência econômica que mantém a exploração

Por Raíssa Araújo Pacheco
Publicado em Outras Palavras

 

Diariamente, a classe trabalhadora produz diversas riquezas, mas por conta de uma contradição sistêmica é ela a mais endividada. O mesmo acontece com economias mundiais, sendo as economias do terceiro mundo, exploradas e espoliadas por anos a fio, as que mais sofrem com dívidas externas galopantes.

Entre a classe explorada, há ainda aquelas que trabalham de forma gratuita para manutenção da acumulação de capital, nos trabalhos de reprodução e cuidado e que, apesar disso, cada vez mais se endividam para custear necessidades básicas – enquanto bancos e super ricos lucram exponencialmente.

Tendo isso em vista, quem é que realmente deve pagar a conta?

O livro-manifesto Quem deve a quem? Ensaios transnacionais dedesobediência financeira, organizado por Silvia Federici, Verónica Gago e Luci Cavallero, lançado em 2023, reúne uma série de ensaios que resgatam “uma história dos movimentos contra a dívida” e denunciam a maneira que o mecanismo colonial da dívida vem se articulando e avançando cada vez mais sobre as economias feminizadas, como uma reação ao protagonismo feminino no campo progressista e um deslocamento da responsabilidade do poder público de cuidar das populações, obrigando-as a endividarem-se para manter necessidades básicas.

“Trata-se de um modo particular de moralização, que busca limitar e conter o questionamento aos papéis de gênero nas tarefas de reprodução social e à responsabilização imposta às famílias para que assumam os custos da crise. É nesse sentido que devem ser lidas as propostas para transformar as donas de casa, as trabalhadoras precarizadas e as desempregadas em “empresárias de si mesmas” e/ou empreendedoras através do endividamento.”

Os textos selecionados para compor o livro analisam como o endividamento se alimenta de uma realidade mercantilizada pelo neoliberalismo. Da especulação imobiliária que sujeita famílias inteiras a viver nas ruas à financeirização da educação com o financiamento privado do ensino superior – um arco-íris de esperança para milhares de jovens, onde em seu fim espreitam grandes grupos empresariais vivendo às custas da dívida.

A obra expõe como o endividamento é uma forma de violência contra pessoas que cada vez mais angustiadas acabam por recorrer a mecanismos como o microcrédito, um dos mais vorazes instrumentos da atual exploração.

Isso ocorre, de acordo com as organizadoras, através de um processo chamado colonização financeira da reprodução social, afinal, subjuga “as populações mais empobrecidas e precarizadas como território de conquista”, tornando-as “dependentes da dívida para sua economia cotidiana”. Como quem paga a conta do cartão de crédito com outro cartão de crédito.

A obrigação da dívida, a sentença de que não nos resta outra opção senão nos endividamos para viver, demonstra que a dívida funciona como ferramenta produtiva. Coloca-nos para trabalhar. Obriga-nos a trabalhar mais. Compele-nos a vender nosso tempo e nosso esforço futuro. Propõe como horizonte que paguemos até morrer. Deseja comandar nosso esforço por décadas e prolongar-se por gerações. Dívidas para a vida inteira. Dívidas como obrigação graças ao sentimento de culpa que diz respeito à nossa responsabilidade como devedoras, ao nosso fracasso como empreendedoras, às nossas responsabilidades como cuidadoras, às nossas exigências por serviço público. A dívida suga nossa energia vital.”

O endividamento, longe de ser um problema individualizado, consequência “apenas” de uma “má gestão financeira”, é um instrumento de acumulação de capital, ou seja, é uma questão coletiva que afeta principalmente as populações e economias terceiro-mundistas.

Por conta disso, as análises do livro fazem uma interpretação “feminista e decolonial” da dívida, sendo um compilado internacional da luta contra essa problemática, cunhado no fervor de manifestações de milhares de mulheres ao redor do mundo, servindo como um “mapa de experiências e análises de desobediência financeira”.

São textos de movimentos da Argentina, de Porto Rico, do Chile, do Equador, da Guatemala, de Marrocos, da Espanha, dos Estados Unidos, da Itália e do Brasil que inventam formas de confrontar os exploradores e apresentam a conta aos verdadeiros devedores.

Também pode te interessar