Em busca da comunidade: lutar pelo passado

Por Fabricio Pereira da Silva
Trecho da apresentação de Em busca da comunidade

 


Não há futuro sem passado. Sem passado, só há presente. Havendo um passado, é bem provável que ele esteja a ponto de “prestar-se a ser instrumento da classe dominante”, aquele “inimigo que não tem cessado de vencer” (Benjamin, 1989, p. 180-1). Para reconstruir a utopia, qualquer utopia, é necessário “acender no passado a fagulha da esperança”, pois “sem nostalgia do passado não pode existir sonho de futuro” (Benjamin, 1989, p. 180-1). Sem lutar pelo passado, sem reconquistá-lo, nem nossos mortos estarão em segurança — que dirá aqueles que ainda virão. Desse modo, para salvar mortos, vivos e os que vão nascer, deve-se lutar pelo passado para imaginar o futuro. Valorizar e reinterpretar tradições, preencher de vida e esperança museus e múmias. Disputá-las, tomá-las do inimigo — aquele que não tem cessado de vencer.

Este livro é sobre os usos do passado em conceitos e ideias produzidos na periferia global, que projetam um futuro alternativo. A construção de um passado é um tema ainda mais premente ao ser humano periférico. Este vive em constante ameaça de anulação, ou seja, de perda de sua história, de sua identidade, de sua nação, de seu lugar no mundo. Ou melhor, ele está sempre em vias de ser condenado a um único lugar no mundo, definitivamente um lugar sem história: o lugar periférico, ao qual, na melhor das hipóteses, é permitido reproduzir pastiches da humanidade emanada do centro. Através de algumas paradas em estações que integram um longo circuito, este livro vai percorrer um tema recorrente: a construção de passados na periferia. E o fará por meio de abordagens bem particulares — de propostas que alimentaram o pensamento crítico, que nutriram alternativas de esquerda ao capitalismo e à modernidade. A propósito, “esquerda” será um conceito utilizado largamente neste livro, e será entendido sempre em associação à ideia de mais igualitarismo, sem fazer distinção entre suas versões mais “estreitas” (defesa de uma alternativa sistêmica ao capitalismo) ou mais “amplas” (propostas de reformas que gerem mais igualdade).

Tratar do passado a partir do pensamento de esquerda dota o tema de uma especificidade. Com recorrência, e particularmente no centro, os projetos de esquerda foram atravessados por um futurismo tão exacerbado que chegou a negar o passado e as tradições, em sua busca por um “homem novo”. No entanto, alguns intelectuais e linhagens incluíram o passado pré-capitalista e pré-moderno em suas preocupações, como um elemento de esperança — constituindo, eles mesmos, uma tradição nas bordas das esquerdas e do pensamento crítico. Esse tipo de reflexão (que será entendido aqui como “romântico”) se expressou diversas vezes na periferia, talvez de forma mais recorrente do que no centro. É a esses “romantismos de esquerda” pensados desde a periferia que o livro se dedica. Como qualquer proposta de esquerda (do contrário, não seria esquerda), eles constituem “futurismos”, não “passadismos”. Mas são futurismos que buscam suas inspirações sobretudo no passado e no que dele sobrevive no presente.

Não é intenção deste livro analisar em profundidade todos os “casos” abordados ao longo dos próximos capítulos. Isso já foi realizado com propósitos distintos e com ênfases em diversos aspectos por autores devidamente indicados a cada etapa da argumentação. Os conceitos, autores e debates aqui apresentados são trazidos à discussão de modo a contribuir para a construção de um argumento geral: a recorrência de um tema que é precisamente a ideia da comunidade como antídoto para superar os males do capitalismo/da modernidade. O argumento central é que esses conceitos e ideias constituem uma tendência recorrente desde pelo menos o século XIX na periferia (quando esta se constitui mais claramente), como reação a avanços acelerados da modernidade nessas regiões. Desse modo, são parte da disjuntiva “ser como o centro ou ser como nós mesmos” (Devés, 2017) que está na base da constituição do intelectual periférico. A busca da comunidade (e do “próprio”, do “original”) se apresenta como tema recorrente não só na periferia, mas assume nela esse tom particular, que é relacional e em certo sentido também reativo ao centro e às diversas ondas expansivas do capitalismo e da modernidade que dele emanam — ou seja, a cada “epistemicídio” praticado pelo centro (Santos, 2010a). A busca do pensamento crítico periférico pela comunidade produz conceitos e ideias que já são “híbridas”, “fusões” que se inserem na modernidade e de algum modo incorporam seus valores. Mas projetam transformá-la e, no limite, superá-la, apelando a valores “autóctones” que seriam próprios às trajetórias de seus povos. 

Um argumento secundário que perpassa o livro é o de que haveria na contemporaneidade uma nova onda dessa busca pela comunidade, que se dá em meio a um mal-estar (nas periferias e no centro) gerado pelo avanço do que pode ser caracterizado como “presentismo” (Hartog, 2014), forma de lidar com o tempo na qual o passado perde sua função e o futuro só pode ser entendido como um horizonte catastrófico (Beck, 1998). Para François Hartog, é possível que estejamos em um novo “regime de historicidade”, oposto àquele predominante na modernidade que era comandado pelo futuro. Esse novo regime seria vivenciado de duas maneiras, a partir da posição social ocupada. Para alguns, é o tempo dos fluxos, da aceleração, da mobilidade, dos projetos.

Para a grande maioria (o precariado, os excluídos, os imigrantes, os refugiados…), é o tempo da “permanência do transitório, um presente em plena desaceleração, sem passado […] e sem futuro real tampouco” (Hartog, 2014, p. 14). Assim, o presentismo é “um horizonte aberto ou fechado: aberto para cada vez mais aceleração e mobilidade, fechado para uma sobrevivência diária e um presente estagnante” (Hartog, 2014, p. 14). Pode-se sugerir (para além das intenções originais de Hartog) que esta segunda dimensão de presentismo pode ser ainda mais recor- rente na periferia global (em particular nas suas próprias peri- ferias, mas também nas periferias que vão invadindo o centro), aprofundando aquele horizonte fechado, aquela completa ausên- cia de perspectivas — para além de eventuais projetos indivi- duais de empreendedorismo (neopentecostal ou mundano) ou de projeções de libertação pós-morte.

Em resumo, neste livro há um argumento geral diacrônico: os fenômenos aqui estudados demonstram determinado padrão relacionado à expansão da modernidade, particularmente nas periferias. Há também outro argumento mais específico, que é sincrônico: tais fenômenos têm sido recorrentes agora, ganharam um renovado interesse. Para isso, o livro se concentra ora em antecedentes daquela tradição crítica desde o século XIX, ora em conceitos que ganharam circulação, grosso modo, entre o final do século XX e o início do XXI, mostrando a potencialidade daquele tipo de reflexão para a retomada de utopias em nosso presente “presentista” — retomada que é condição para nossa própria sobrevivência como espécie.

Todas as propostas aqui apresentadas trazem a noção de comunidade em seu cerne e oferecem projetos de futuro a partir dela. Por diversas razões — a depender do autor, da corrente, do momento histórico —, um projeto de futuro determinado passa pelo resgate, preservação ou aprofundamento de um senso de comunidade (e de suas traduções materiais) que é enraizado no passado (em certa medida ainda presente) de um povo, de uma região, de um grupo étnico, de uma religião. Esse projeto pode começar como uma expressão local, mas eventualmente se expandir e até mesmo assumir potencial “universal”, servindo de contribuição original daquele determinado grupo para a (re)constituição de uma humanidade mais justa, harmônica e em simbiose com a natureza. Nessas abordagens periféricas, a comunidade assume ainda mais significados do que nas perspectivas semelhantes produzidas no centro. Se em todas elas a comunidade se contrapõe à modernidade, ao capitalismo, à desumanização, ao individualismo, ao consumismo, ao desencantamento do mundo, à destruição da natureza, nas abordagens periféricas ela é apresentada adicionalmente como antídoto ao centro, ao Norte, à metrópole, ao Império, aos desenvolvidos, ao Primeiro Mundo, ao Ocidente — com os quais todos aqueles males se confundem.

Este livro é, em grande medida, uma história de conceitos periféricos que percorrem temas semelhantes. Uma de suas principais motivações é demonstrar que, ao longo do tempo, há temas recorrentes na periferia que se nutrem do passado para projetar emancipações. Mas essa não é a única intenção do livro, pois ele é atravessado por duas outras propostas, menos explícitas e mais “militantes” (na falta de melhor expressão). Uma delas é apresentar a riqueza de pensamentos periféricos, sobretudo de projetos periféricos emancipatórios, de uma intelectualidade crítica, de uma esquerda “não ocidental” que (remetendo a Mariátegui) não deve ser “decalque e cópia”, mas “criação heroica”. Com isso, quero evidenciar, defender e preservar certos saberes que vão sofrendo sistematicamente um “epistemicídio”. Deve-se fazer o que estiver ao nosso alcance para superar a “monocultura de saberes” — remetendo a Boaventura de Sousa Santos (2010a) — que assola nosso mundo, nossas academias e nossas esquerdas. Outra proposta do livro é ensaiar uma modesta reflexão sobre o tempo, enfatizando (para aqueles, como este autor, formados num determinado “futurismo”) que o passado pode nutrir projetos de futuro. Desse modo, é inevitável questionar o tempo histórico da modernidade, do “progresso”, da “evolução”, da “aceleração”, do “sempre em frente”. Mas é possível fazer esse questionamento sem cair no “presentismo”, se o que precisamos é exatamente voltar a ter futuro. E sem que nos refugiemos em qualquer “passadismo” como suposta alternativa. Em meio a sucessivas crises do capitalismo, a uma pandemia, à erosão das democracias, ao esgotamento do planeta, os passados nos servem para projetar novos futuros — enquanto ainda é tempo.


Imagem de abertura: ilustração de Amauta (autoridade intelectual no mundo inca), capa da revista de mesmo nome fundada por José Carlos Mariátegui.

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