Por Marina Farias Rebelo
Publicado no Suplemento Pernambuco

 

Passados dois anos desde o início do distanciamento social necessário para conter a transmissão do novo coronavírus, estive presencialmente com o historiador Rafael Domingos Oliveira em seu apartamento no centro de São Paulo numa tarde de março de 2022. Em frente à encruzilhada que pode ser vista da sacada, conversamos sobre o primeiro livro do autor, Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade, lançado em fevereiro pela Editora Elefante. Fruto da pesquisa desenvolvida por Rafael durante o mestrado em História pela Universidade Federal de São Paulo, a publicação apresenta um importante acervo de autobiografias escritas por pessoas escravizadas e livres, em especial nos Estados Unidos dos séculos XVIII e XIX.

Nesta entrevista, Rafael fala sobre como se aproximou dos textos autobiográficos e a maneira que encontrou para dialogar com esses arquivos. Comenta as tangências e intersecções entre o documento histórico e o texto literário que, independentemente da categorização dada, tinham como objetivo tornar concreto o estatuto de liberdade de suas autoras e autores. Como na canção Yayá Massemba, de Roberto Mendes e Capinan, imortalizada na interpretação de Maria Bethânia, o livro de Rafael Domingos se filia à tradição de “aprender a ler para ensinar meus camaradas”.

 

Para o público brasileiro, seu livro surge como novidade a respeito dos arquivos relacionados à história social da escravidão porque desloca o sujeito escravizado do lugar de personagem histórico sem voz e o reposiciona como autor de sua própria narrativa. Como foi o percurso que permitiu a você se aproximar dessas autobiografias e trazê-las para um universo mais amplo de leitores e leitoras?

O momento em que o meu projeto de pesquisa nasceu veio de um deslumbramento quando, pela primeira vez, li um texto escrito por uma pessoa escravizada: a autobiografia de Olaudah Equiano, um homem africano que passou pela experiência do tráfico e da escravidão em fins do século XVIII. Um texto com características fortemente literárias e um grau de elaboração muito sofisticado. Esse interesse pela escravidão, no entanto, sempre me acompanhou em meu percurso acadêmico. Eu tinha um desejo real de ouvir as vozes que não apareciam nos documentos que pesquisava. Não apareciam não porque não existiam, mas porque era preciso um movimento intencionado em ouvi-las. Quando soube da existência dessas autobiografias, li todas elas ao mesmo tempo, repetidas vezes, até o ponto em que eu me sentia íntimo das autoras e autores. E aí o trabalho todo virou um compromisso com essas pessoas, e conosco, brasileiros, que fomos constituídos pela mesma instituição escravista, para que possamos conhecer essas vidas e ouvir suas vozes. Vozes que, a rigor, não foram silenciadas. A pesquisa e a publicação do livro viram então um trabalho que tem como objetivo afirmar a agência desses sujeitos.


No livro, você encara a complexidade do conceito da escrita de si para falar dessas autobiografias. De que perspectiva você enxerga essas narrativas como narrativas de si?

Falar das autobiografias de escravizados no contexto da cultura historiográfica brasileira significava, necessariamente, estabelecer um diálogo com a discussão consolidada sobre a escrita de si. Dessa maneira, me aproximo, mas tento sobretudo ir além da ideia foucaultiana sobre a escrita de si como a escrita de um sujeito. Defendo que essa escrita se torna possível porque o sujeito se constitui como sujeito no texto sobre si porque antes ele se constitui nas relações. Tomo então para o meu trabalho o pressuposto de que a escrita de si é sempre a escrita de um grupo, de um pertencimento racial, de uma classe, de um gênero. Eu considero a escrita de si como uma escrita que não está pautada exclusivamente no ato de narrar-se, mas de narrar-se no interior de determinados conflitos e relações.


Num ensaio em que fala sobre a escrita do livro Amada (1987), Toni Morrison se refere ao ato de escrever as memórias de pessoas negras escravizadas como “uma espécie de ato de fé”. Em seu texto, você nomeia o exercício de apresentar as autobiografias como um ato de leitura. Em que lugar esses dois atos se encontram?

Eu estava no meio de minha pesquisa quando li o texto de Clóvis Moura Sociologia do negro brasileiro (1988), que me fez atentar para a construção discursiva que existe na Sociologia e na História sobre o negro como sendo o “outro”, o objeto de estudo do pesquisador branco. Foi um momento muito importante porque criou uma crise necessária: me fez questionar sobre como eu deveria trabalhar com esses documentos. Analisando? Interpretando? Tentei escapar a essa ideia, não estabelecer a relação do pesquisador que se distancia do que está lendo e interpretando. Esses textos não existem para ser analisados, descobertos ou interpretados. Eles já contêm a interpretação. Esses autores e essas autoras interpretam a sua trajetória, a sociedade em que vivem, a história do lugar onde estão inseridos; intervêm nessa interpretação, lidam com as tensões que estão postas, respondem ao debate político. O que eu fiz não foi uma análise das autobiografias. Foi um ato de leitura. Uma leitura a partir do que me afetava nos textos lidos. O que me interessa nesses textos é, para além do texto em si, o que está no texto como prática, o ato de dizer, de escrever. Então se por um lado é o ato de escrever dessas autoras e autores que possibilitou a existência das autobiografias — inclusive como matrizes referenciais para a emergência de uma literatura afro-americana da qual Toni Morrison é uma das maiores expoentes — eu, como pesquisador, assumo o ato de ler. Se eu adotasse uma outra postura seria um ato interpretativo sobre um objeto que se abriria para eu dissecar e montar da maneira que me interessar. E não era essa a minha intenção. O meu objeto de pesquisa não são as pessoas, não são nem os textos, a princípio. Meu objeto são as relações, as práticas das quais emergem esses textos, nem as pessoas nem os textos, mas alguma camada entre elas e os mundos em que elas vivem.


Lidar com as tensões que estavam postas e responder ao debate político foram ações que aconteceram, inclusive, entre as autoras e autores e o movimento abolicionista?

Sim, porque quando se percebe nas autobiografias a relação das autoras e dos autores com o movimento abolicionista, ficam bastante claras as movimentações e os interesses presentes nessa dinâmica. E aí aparecem as contradições, porque essas autobiografias não existiriam como tal se não existissem essas relações. Logo, essas relações também dizem algo sobre os textos; dizem, inclusive, que são textos de muitas vozes, compostos não apenas pelas vozes dos escravizados. São textos em que as intervenções dos abolicionistas que editam, prefaciam, apresentam as obras, estão presentes embora não estejam sinalizadas como interferências externas. Mas a leitura permite imaginar essas vozes múltiplas. Isso é evidente no prefácio escrito para a autobiografia de Solomon Northup, em que o abolicionista David Wilson se diz satisfeito com o fato de Northup ter “aderido estritamente à verdade” em seus relatos. Nota-se que a palavra de uma pessoa negra tinha pouco ou nenhum valor. Mas, além disso, mostra que para a sociedade estadunidense do fim do século XIX, a palavra de um homem branco, investido na religião protestante, e que se comprometia com a verdade, era algo indiscutível. Dessa maneira, esses textos produzem e reproduzem uma organização social que é capaz de modificar a realidade. Ainda que permeada por contradições, permitem que um sujeito como Frederick Douglass, que publicou três autobiografias, possa peregrinar pelos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Caribe, África, fazendo um trânsito no mundo atlântico como orador e conferencista, construindo uma noção no mundo ocidental sobre o horror e o problema moral da escravidão.


E sobre os exercícios de fabulação, que você chama de “reelaboração cotidiana”, feitos pelos autores e autoras quando constroem as narrativas sobre as Áfricas imaginadas e as Áfricas vividas? Seria esse um movimento duplo de delimitar e borrar as fronteiras entre a narrativa historiográfica e a narrativa literária?

Eu aprendi a ler literatura como estudante de História. Então eu entendi que existe uma relação entre o texto literário e o tempo em que esse texto é escrito, que é indissociável. Em outras palavras, a totalidade de uma sociedade, de um tempo, não está em nada. Partindo desse pressuposto, ela está em tudo. Está também no texto literário, logo, no texto autobiográfico. Não é como se esses textos fossem uma porta de entrada para compreender o tempo histórico; esse tempo histórico está ali, no que é aparência e no que é essência, no que é dito e, sobretudo, no que não é dito. Assim, não defendo um estatuto da verdade com relação a esses textos. Não me interessa se o que estava narrado ali havia acontecido de fato na vida daquelas pessoas, mas me interessa o que autoras e autores diziam sobre suas relações, porque daí emergem as escolhas feitas no bojo da escrita de si como a escrita a partir de um lugar informado e tensionado pelos conflitos do momento em que o texto foi produzido. Então quando falo da criação de narrativas sobre Áfricas imaginadas e Áfricas vividas, o que quero dizer é que a África que essas autoras e autores viveram, quando escrita, ela se transforma numa África imaginada, criada a partir da imaginação que vem do diálogo tenso com esse outro mundo que não é o da África.


Pode-se afirmar que o lastro criado pelas autobiografias de escravizados estabelece relações com a história da escravidão e da liberdade no Brasil?

Sim. Eu penso que se é assim para esses textos produzidos na porção norte das Américas, é assim para todos os tipos de texto vinculados a esse momento histórico. Quando Luiz Gama escreve uma carta, em 1880, contando que é filho de uma mulher africana escravizada chamada Luíza Mahin, ele está agindo no seu tempo, mas se ligando a um passado de luta, que é a rebelião, uma vez que a mãe dele foi uma agente importante para a Revolta dos Malês, na Bahia, em 1835. Ele se fundamenta nesse passado, nesse espaço de experiência que é legado a ele para fazer também uma ação concreta no seu tempo. Senão mais pela rebelião, agora pela via jurídica. Há um fundamento da ação que recorre ao passado para ensejar alguma mudança. Esses textos de alguma forma eram também uma carta de alforria. Eram uma estratégia de concretizar a liberdade, somada às tentativas de fuga que eram um padrão para aqueles que almejavam ser livres. O périplo em busca da emancipação vai construindo no interlocutor desses textos a legitimidade da liberdade. Esses textos se configuram em toda a extensão do território afro-atlântico não apenas como uma escrita de si, mas como uma escrita da liberdade.

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