Escutar as mulheres de terra e água para imaginar novos mundos

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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala

Mulheres quilombolas, ribeirinhas, indígenas, ativistas, parteiras, tecelãs, benzedeiras, cozinheiras, plantadeiras, artistas, mestres. Doze histórias e doze perspectivas de mundo, costuradas em textos que vão, a partir dos relatos e experiências bem pessoais, tratar de comunidade, do coletivo, do feminismo, das lutas sociais e das marcas e memórias do corpo e da vida. Um exercício de escuta atenta para tomar contato com experiências que transformam.

O Elefante na Sala é o podcast da Editora Elefante, disponível no player acima, nos tocadores, no YouTube e no nosso site. Essa é a segunda temporada das conversas com os autores, chegando ao episódio de número dez com Lucila Losito, organizadora do livro Mulheres de terra e água, que traz doze textos de doze mulheres contando suas histórias.

Lucila, queria que você nos contasse um pouco essa combinação entre a escuta, entre “descolonizar os ouvidos”, para pegar um termo usado por você, com a presença física, o contato de fato, a sua proximidade com essas doze mulheres que estão retratadas no livro. Fala um pouco desse exercício, desse encontro com elas.

Essa palavra escuta é uma palavra que está bem em voga na minha vida desde esse livro. Realmente, para a gente conseguir escutar de verdade alguém, ou até escutar a natureza, ou escutar o próprio corpo, a gente tem que fazer um certo silêncio interno. Então foram essas mulheres, com suas sabedorias ancestrais, que me ensinaram esse lugar da escuta. Para começar, porque elas são mulheres silenciosas.

Existe uma grande diferença em ser silenciada, que foi o que aconteceu com elas. A grande maioria dessas mulheres são silenciadas. E existe também um lado que é a mulher que sabe silenciar, que sabe se conectar com o silêncio para ouvir as próprias verdades, para ouvir a natureza, para ouvir as conexões que estão para além desse barulho mental que o racionalismo acabou implementando, implantando no planeta, no mundo, como verdade absoluta.

Então esse lugar, muitas vezes da literatura ocidental, ele vai muito por esse barulho mental. Muitas verdades absolutas, uma pessoa que tem certeza de uma coisa, que tem certeza da outra, esses choques de ideias, de teorias, que muitas vezes acabam virando um grande barulho. E são nada mais do que projeções mentais, que muitas vezes não têm lastro em vivência, não têm lastro no corpo. Quando você lê sobre aquilo, você sente que a sua mente acelera e você fica borbulhando.

Mas é muito diferente do que acontece com essas mulheres.
 Então quando você está perto de uma mulher ancestral, você sente o seu corpo vivo, sente arrepiar. Você sente que se conecta com as suas verdades internas. Então é um lugar de escuta muito diferente, é um lugar de leitura muito diferente, que aguça a sua presença, o seu corpo, a sua conexão com a terra, com os seus ancestrais. Então, de verdade, são vivências muito viscerais. Tudo isso é muito sentido na leitura, mas também faz parte do processo de como o livro foi sendo escrito.

Como muitas delas são mulheres que transmitem o seu conhecimento oralmente, acaba que exige mesmo um espaço de escuta para que esse livro pudesse ser escrito. Então, na verdade, ele foi transcrito. Elas foram me contando as histórias e eu fui transcrevendo, fazendo pequenos ajustes, muito pequenos, para poder respeitar a marca de oralidade, para poder realmente respeitar a forma delas de falar, de se comunicar. E principalmente o jeito de cada uma, o DNA de cada uma, que vem desse lugar do corpo. Os gestos de cada uma.

E é realmente um exercício que mudou toda a minha vida, porque foi por conta dessa sabedoria delas, que eu fui ouvindo e transcrevendo, que eu, de fato, fiz grandes mudanças na minha vida. Tanto que hoje eu moro em uma vila, numa comunidade, praticamente uma aldeia, onde eu posso ter uma vida realmente de presença, conectada com a natureza, que é uma coisa que eu sempre busquei. Então eu acho que esse livro traz uma semente, uma semente de várias novas formas de ser e estar no mundo, de interagir com o território, de interagir com as pessoas. Elas falam muito de um lugar de afeto e de acolhimento, e eu acho que a escuta tem muito a ver com o acolhimento. Para você realmente escutar, não pode ter nada lá, é um espaço. A escuta requer um espaço. Então, se você não cria esse espaço para ouvir de verdade, se você não acolhe aquilo que está chegando em você, não existe comunicação. E comunicação é amor, principalmente para essas etnias indígenas, de muitas mulheres com quem eu conversei, a palavra comunicação é quase a mesma usada para amor: porque de fato é como a gente realmente se conecta com o outro. A gente consegue ouvir, escutar, depois falar e chegar em um outro lugar novo a partir da possibilidade de habitar esse meio de participar da vida dos outros.

Então eu acho esse livro riquíssimo. Eu aprendi fazendo ele, eu me sinto muito honrada por ter podido escutar essas mulheres. E queria muito que outras pessoas pudessem ter esse privilégio também de escutá-las.

E assim, são 12 pessoas e a gente não vai conseguir se aprofundar nas histórias todas agora, claro, mas queria que você desse um resumo de qual é a sua relação com cada uma delas, como que você organizou esse grupo, como você foi formatando esse grupo e dando forma ali num livro. Já havia alguma coesão entre elas? Você foi encontrando essas personagens enquanto percorria seus trabalhos e pesquisas? Fala um pouco para a gente.

Então, esse livro foi feito com o PROAC [Programa de Ação Cultural no Estado de São Paulo] e foi durante a pandemia. Então são mulheres que eu tive conexão antes de entrar para esse edital. São mulheres que fizeram parte da minha vida desde que eu nasci, para falar bem a verdade.

Então, uma delas realmente foi uma mulher que a minha mãe me levava na casa dela para fazer uns benzimentos e ela morava na mesma rua que a gente. E eu tive muito contato com ela desde pequena. Ela realmente é uma conexão visceral, me ajudou a me educar desde pequena. Tive contato com essa mulher e depois eu a perdi de vista. A gente se mudou, a minha família se mudou daquela cidade, a gente ficou 30 anos sem se ver. Aí eu fui uma vez para a África e sentia uns cheiros que me lembravam dela, e comecei a relembrar as memórias da infância onde tinha tido uma grande influência dela na minha vida. E aí eu fui buscá-la e a gente se reconectou.

E aí descobri que ela estava trabalhando, plantando morangos. Fui atrás dela para a gente se reconectar. Mas por uma questão pessoal mesmo, de uma saudade gigantesca que veio daquele momento, porque ela, de fato, fez parte da minha vida de uma forma muito intensa na infância. Aí a gente se reconectou. Eu tinha a oportunidade de encontrar várias vezes com ela. Ela me contou as histórias, fomos na plantação de morango, enfim, tudo isso. E ela me contou também dos traumas, das coisas que ela passou enquanto mulher preta vivendo em cidade do interior de São Paulo. Então são muitas histórias também que entram nas feridas dessas mulheres e mostram como elas são grandiosas e, mesmo para além de toda a repressão, o silenciamento que elas sofreram, elas conseguem seguir fazendo o que elas vieram fazer no mundo, principalmente seguindo o seu propósito de vida, seguindo o seu papel de plantar sempre mais amor, mais sabedoria.

E foi assim com todas as outras. Tem a Cristine Takuá, que também é uma grande amiga da Aldeia Guarani do Rio Silveira. A gente começou a se conectar com a minha pesquisa, com as imersões que eu sempre organizei lá em Boiçucanga, e foram várias visitas à aldeia, onde a gente conversou muito entre banhos de cachoeira, peixe assado na fogueira. E falando sobre sonhos. A gente tem essa coisa muito forte de ter premonições em sonhos. A gente sempre conversou muito sobre isso, essas sabedorias que vêm a partir do momento que a gente está dormindo. Esses sussurros que a gente escuta nos sonhos, que muitas vezes dão direção para a nossa vida. E a Cris é uma grande amiga que eu admiro muito. Ela é uma sábia, uma mulher extremamente capaz nesse lugar da oralidade. Ela é uma grande oradora. E foi assim com outras tantas mulheres.

Posso falar também de três parteiras incríveis que fazem parte do livro, que são conexões que vieram também através de uma amiga, que a gente teve um curso que era para mães. E aí a gente foi ao encontro dessas mulheres que são parteiras tradicionais. Então elas trazem essa visão da conexão com o nascer, que é um momento crucial na vida de todos nós. E que muitas vezes esse momento acaba sendo um pouco atropelado pela medicina ocidental. Essas parteiras retomam esse lugar do nascimento enquanto um lugar de presença, a primeira conexão com o corpo e do corpo com a terra. Então é superimportante também esse olhar dessas mulheres.

E assim outras tantas, não dá para falar de todas, mas de fato foram conexões que foram cultivadas ao longo de anos, não só da minha pesquisa, mas da vida pessoal. E sempre nessa busca que eu tive de descolonizar os meus ouvidos, descolonizar a minha presença nessa terra. De procurar conexões que realmente pudessem nutrir não só o meu intelecto, mas o meu coração, a minha alma, o meu corpo, o meu espírito. E foi com essas mulheres que eu encontrei esse lugar de uma conexão mais integral mesmo, uma sabedoria que tem lastro em vivências, que tem lastro em afetividade, que não é meramente de projeções intelectuais, teóricas, que a gente escuta muito por aí. Então realmente acho esse livro uma pérola. E eu adoro que tenha conseguido reuni-las, porque elas moram em lugares muito diferentes e elas nunca se conheceram. A grande maioria delas não se conhece entre si. E elas se encontraram na minha vida. Então é um recorte muito afetivo, muito pessoal.

E como esse livro foi escrito durante a pandemia, elas não tiveram como se encontrar, a gente não teve como se juntar para trocar entre nós. Isso é uma pena. Mas tivemos a possibilidade de resguardar essa sabedoria com essas histórias que elas contaram moralmente e que acabam fazendo parte desse livro. Então esse livro é o lugar onde elas se encontraram de alguma maneira ali.

E uma última da minha parte, Lucila, bem nessa linha que você já tratou, como que junta essas duas coisas? De um lado uma base teórica, digamos uma visão de mundo que você já foi construindo, política e socialmente — você traz muito a ideia do Bem Viver no livro, por exemplo. Mas de outro, a forma do livro, que é de relatos em primeira pessoa. Então trata-se de um encontro da sua expectativa, das suas ideias, com o que os depoimentos dessas personagens acabaram te mostrando.

É interessante essa pergunta, é muito boa. Porque muitas vezes a gente, quando vai começar a escrever, se tornar autora, é porque a gente tem uma ânsia de falar. Normalmente também são pessoas que, em alguma medida, talvez tenham sido silenciadas e começam a querer expor as suas ideias também. Então eu tive o meu movimento, como mulher também, de sentir a necessidade de expor as minhas ideias, de falar sobre as coisas que eu penso, as coisas que eu enxergo, que eu sinto. Principalmente as coisas que eu sinto.

Porque no mundo de hoje parece que começa a existir espaço para sentir, mas ainda o intelectual, o racional, o comercial, o capitalismo coloca a gente em um lugar onde o sentir fica em segundo plano. Então o meu primeiro movimento foi escrever um romance, onde eu coloquei para fora tudo o que estava me engasgado, tudo o que eu queria falar, expressar para o mundo. E logo na sequência que eu terminei de fazer esse movimento eu me esvaziei.

Aí eu percebi que esse vazio era um espaço, na verdade. E esse espaço foi com o qual eu comecei a perceber que era um espaço delicioso, que é, na verdade, estar vazia, se transformar em espaço é conseguir realmente escutar. É aí que eu comecei a conseguir escutar. Então foi uma necessidade mesmo que eu senti de começar a ouvir, de me tornar esse espaço de escuta, deixar reverberar a voz de outras pessoas. Porque eu estava ali com perguntas e muitas vezes as coisas que eu ia perguntar não faziam tanto sentido para elas. E aí outras coisas que eu nem podia imaginar iam saindo e iam trazendo a fala para outros lugares. E isso eu acho super bonito, porque é surpreendente, e a vida é surpreendente.

Quando a gente está fazendo coisas que a gente não se surpreende é porque a gente não está conectada com o espaço visceral realmente do corpo. O corpo é surpreendente. A presença é surpreendente.

Então foi muito incrível esse projeto, porque eu não estava falando nada, só estava escutando, e eu fui chegando em lugares da minha pesquisa muito mais profundos do que as vezes em que fui sozinha fazer. Que eu mesma quis controlar ou direcionar. E aí, no fim das contas, acho que esse livro chegou em lugares mais profundos das mesmas coisas que eu ainda acredito e acho importante trazer para o mundo, com falas ainda mais potentes, ainda mais profundas do que o que eu podia dizer no meu romance, por exemplo.

Porque o lugar de fala delas é um lugar, não só pelo lugar de fala… Mas a sabedoria mesmo, a vivência delas, é uma vivência que merece ser escutada, tanto no que diz respeito às dores e aos sofrimentos que elas viveram, quanto na força de resistência e de poder de verdade, de afetividade, de transformação mesmo, de metamorfose que elas estão criando para o mundo. Elas estão mudando as suas vilas, estão mudando as suas aldeias, as suas famílias, elas estão criando um novo mundo mesmo. Então, eu me sinto realmente muito privilegiada de ter chegado nesse lugar.

Acho que ser um leitor também requer esse espaço de escuta, e escuta com o corpo. Essa coisa de você se deixar tocar por uma fala que é mais vivencial, que é mais intimista, sem achar que isso é menos teórico do que outras falas que são mais intelectuais. Porque, de fato, ali a gente está falando de temas muito importantes da contemporaneidade.

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