Espetáculo: Debord, performance nas redes e a força crítica do termo
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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala
Com certeza você já ouviu ou leu por aí: vivemos numa “sociedade do espetáculo”. Essa expressão que parece tão contemporânea, fresquinha, saída diretamente das performances que a gente vê nas redes sociais, na verdade foi forjada nos anos 1960 por Guy Debord, num contexto da teoria radical dos anos prévios a maio de 68, na França. Mas essa radicalidade do termo resiste? Qual o olhar crítico para essa ideia a partir da nossa experiência contemporânea?
O Elefante na Sala é o podcast da Editora Elefante, disponível no player acima, nos tocadores, no YouTube e no nosso site. Esse é o episódio 11 de nossas conversas com autores, num papo com Gabriel Ferreira Zacarias, autor de Crítica do espetáculo: o pensamento radical de Guy Debord. Gabriel, professor de História da Arte na Unicamp, aqui na Elefante também publicou No espelho do terror: jihad e o espetáculo, e é um dos autores de Capitalismo em quarentena: notas sobre a crise global. Esse último livro citado, inclusive, inaugurou a coleção Crise e Crítica, onde Gabriel é curador e tem trazido, por exemplo, os recentes livros de Anselm Jappe, sendo o último deles Concreto: arma de construção em massa do capitalismo.
Gabriel, começar falando de Crítica do espetáculo, bem do início mesmo da sua relação com o pensamento de Guy Debord. Queria que você fizesse essa primeira apresentação: por onde você encontra com essas ideias que vêm lá dos anos 1960, sob que condições, tocado pelo quê? Enfim, por que jogar luz sobre isso, até a gente chegar aos textos e aos comentários que dão nesse seu livro.
Tem duas questões. O que levou a me interessar pelo Debord, no primeiro momento, e o que faz com que, hoje, ainda seja importante escrever sobre o Debord, publicar sobre ele. A primeira questão tem a ver com uma formação muito ligada ao campo da teoria crítica. Eu tinha uma base de leituras ligadas a esse campo, que vinha da Escola de Frankfurt, com questões que associavam uma herança conceitual do marxismo, mas repensada para o campo da cultura.
Só que eu senti alguma defasagem entre essas reflexões e o que eu vi acontecendo no meu presente, na época de estudante ainda. E quando eu descobri o livro do Debord (um pouco por acaso, primeiramente), acho que como todo mundo que vai ler o Guy Debord e talvez como uma parte das pessoas que vão ler o meu livro, fui atraído por essa noção do espetáculo. Nesse designar da sociedade contemporânea como a sociedade do espetáculo há algo que nos atrai, porque parece falar de algo que está muito visível para nós.
Visível seria, de fato, a palavra correta nesse caso. Então também peguei o livro nessa expectativa de ver o que ele dizia sobre essa contemporaneidade, embora, nesse momento de que eu estou falando, a gente não tinha metade desses dispositivos que a gente tem hoje à mão. A sociedade não vivia tão conectada como ela é hoje, mas já era uma sociedade na qual a presença das imagens era muito importante, e me parecia, então, que uma teoria sobre isso estava fazendo falta. Eu descobri esse livro e acho que muita gente pega o livro na mão achando que ele é um livro recente.
Aí você pega, começa a ler e vê que ele não é um livro recente, é um livro que tem 50 anos. Acho que muitas pessoas quando abrem o livro sentem alguma frustração, não só por conta dessa distância temporal, mas pela dificuldade do texto. No meu caso, eu senti uma certa identidade com o texto, porque a base, que é o que eu procuro explicar no meu livro, a base conceitual da qual parte o Debord, é essa do marxismo crítico.
Então eu consegui identificar ali aquela ressonância de Marx, de Hegel, sobretudo de Lukács, que eram autores que eu tinha lido, e eu via que o Debord era um autor que estava atualizando essas questões por uma sociedade que me parecia mais próxima da minha do que aquela na qual tinham escrito esses autores. Senti que tinha algo muito forte ali, a capacidade de atualizar todo esse campo crítico para uma sociedade na qual essa mediação da imagem já tinha ganhado um peso muito importante. De lá para cá, aí respondendo a segunda pergunta, essa mediação da imagem se tornou ainda mais evidente, ainda mais presente, ainda mais palpável, e com isso me parece que a reflexão do Debord não perdeu nenhuma atualidade. Pelo contrário, ela só ganhou mais atualidade.
Não significa que a gente vai pegar ela tal qual, né. Acho que uma parte do meu percurso entre essa descoberta do texto do Debord e o presente foi justamente um trabalho de pesquisa que desenvolvi para tentar entender de maneira mais profunda o que era esse texto, quem era esse autor, de onde ele vinha, qual era o seu grupo, etc. E ao fazer essa pesquisa fui entendendo cada vez mais a diferença histórica que existia entre o nosso presente e o dito. Acho que isso é fundamental para a gente pensar a teoria dele hoje. A gente tem que entender o quanto dessa teoria está ligada ao contexto no qual ele viveu, tanto o contexto intelectual como o contexto social.
E isso é uma parte do que eu faço nesse livro, é justamente trazer essas respostas, explicar um pouco esse contexto, com isso começar a criar as condições para que a gente possa desenvolver uma atualização da teoria dele. Acho que hoje em dia, muitas vezes quando se pega o Debord, se pega um pouco nesse movimento que eu falei no começo: a gente pega achando que é um livro que fala do presente diretamente. Ele não fala diretamente do presente, ele fala indiretamente, porque ele tem o seu contexto. Se ele ainda fala do presente, a gente tem que pensar por quê. O que ele falou há 50 anos que ainda está vivo nessa sociedade atual. E o que mudou que nos obrigaria a repensar um pouco alguns dos seus paradigmas, alguns dos seus conceitos.
Com isso, o segundo ponto é esse. Acho que todo esse movimento está ainda para ser feito intelectualmente, de atualização da teoria do Debord. Ele continua nos solicitando, porque a sociedade continua a ser uma sociedade do espetáculo, e por isso achei que ele respondia muitas questões, inclusive por conta da questão política. Acho que isso foi um diferencial para mim, na relação com o Debord. Ele não era alguém que estava falando desse mundo contemporâneo de um ponto de vista apenas teórico, era alguém que tinha um engajamento, que vinha de um campo não institucional, um campo ligado à arte, que era algo que também me interessava e ainda me interessa. Então todo esse entrecruzamento entre arte, política e teoria crítica, que é algo que a gente não encontra em qualquer autor, tornava o Debord um autor mais interessante para mim, e acho que particularmente forte para pensar a contemporaneidade, justamente porque a gente vive um pouco nesse entroncamento. De uma vida cotidiana, parcialmente estetizada, mas despolitizada.
Como eu dizia, a intenção do livro é preparar um caminho para que ele seja devidamente compreendido, tanto na socialidade quanto na sua diferença histórica, e com isso preparar um caminho para que a gente possa seguir um movimento de atualização do seu pensamento.
Pegando carona na parte final da sua resposta, você mesmo diz na introdução: será que a gente ainda ganha alguma coisa falando em sociedade do espetáculo? E a impressão que a gente tem hoje com influenciadores na internet, textos replicados à exaustão, certo atropelamento das ideias nessa correria da timeline, é do desgaste de vários termos. Diante disso, ainda dá para falar de espetáculo? A palavra ainda tem força no debate público? E como que isso está relacionado, então, a essa loucura das telas, da performance, das redes sociais, a essa nossa rotina atual?
Eu acho que o termo continua a ser um termo que tem força, como você está colocando. Claro, a situação que você descreveu, que é bastante precisa, é uma situação na qual há uma produção, uma emissão de conteúdo, tão vertiginosa, que acho que hoje em dia não há nenhum termo que tenha um poder nucleador tão forte como talvez fosse possível décadas atrás. Antes desse mundo das redes sociais de repente um termo conseguia ser alçado a ter uma primazia num debate público, atingir uma esfera midiática e se alastrar. Acho que hoje são muitos termos circulando, são muitas coisas, como você dizia, muitos termos muito rápidos. Ideias muito rápidas que não se fixam, que não têm rito de desenvolvimento.
Acho que a gente nem está mais naquele ponto em que a palavra espetáculo é muito abusada, que é algo que já aconteceu. A gente tem que pensar que o livro do Debord foi publicado no final de 1967. Como eu explico no livro também, pouco tempo depois vem o levante de maio de 1968, que tem uma relação forte com o pensamento situacionista, por conta da Internacional Situacionista, que era o grupo de vanguarda ao qual o Debord pertencia. O grupo inicialmente veio da arte, depois se tornou um grupo de debate político, e que tem uma influência bastante importante sobre o movimento de 68. Dali pra frente, acho que há um momento em que as ideias do movimento situacionista se espalham, sobretudo no contexto intelectual francês, e passam a ser usadas e abusadas de qualquer maneira. Então isso já aconteceu, isso já foi um fenômeno histórico. O uso leviano do termo espetáculo é algo que já tem uma longa história.
Aí volta em diferentes momentos, por exemplo, no Brasil, a partir do momento que o livro é traduzido, na década de 1990, e isso vai gerar uma nova circulação do termo. Debord morre em 1994, isso gera também um movimento de redescoberta dele. Depois vem o momento da incorporação dos arquivos do Debord para a Biblioteca Nacional Francesa, em que eu estava lá, estudando esses arquivos, e isso também gera uma outra circulação dessas ideias. Então, em muitos momentos a palavra circulou, e ela já foi apropriada e usada por outros autores.
No começo do livro eu sinalizo isso, menciono, sem citar diretamente. É um pouco uma pequena alfinetada ao Jacques Rancière e ao Vargas Lhosa, que usaram o termo. O Vargas Lhosa fez quase um plágio, ele escreveu um livro que chama A civilização do espetáculo, e a gente está falando de um autor liberal. Então de fato o termo já foi muito usado pra lá e pra cá, mas eu acho que esses constantes usos e abusos mostram nunca deixa de ser um termo que de alguma maneira pega a nossa imaginação. Que pelo tempo que a gente vive ele ainda nos solicita, ainda parece indicar alguma coisa. Talvez as redes sociais tenham feito com que o termo tenha uma nova revitalização nesse uso superficial, porque aí além da gente ter a questão da presença das imagens, a gente tem uma mise-en-scène, uma encenação das pessoas nas redes sociais, e isso dá uma ideia ainda mais direta de espetáculo.
É claro que quando Debord usa o termo, não é isso que ele está querendo dizer, mas essa ambiguidade é algo que faz parte, é uma decorrência da escolha dele. Não é que simplesmente as pessoas usam de maneira incorreta o termo, ele escolheu um termo que ele sabia que ia ter uma possibilidade de conflagração, e isso é por conta da ambiguidade do termo, então ele já apostou nisso. Permite primeiro atrair a atenção, e num segundo momento o autor tenta fazer passar um outro significado desse termo, mais complexo. Para o Debord o espetáculo não é uma mise-en-scène. Para o Debord, o que ele está chamando de espetáculo é um processo em que havia um outro termo mais antigo que caiu em desuso, que diz respeito a esse processo na tradição conceitual do marxismo, que é a alienação. O processo de alienação.
E essa escolha do termo por parte do Debord tem a ver, como eu dizia, com esse cruzamento que ele faz entre o campo da teoria crítica e o campo da arte da cultura do qual ele vem. Vem de um movimento de vanguarda que faz uma crítica da separação da arte. Então ele critica a arte como um espetáculo, a arte como algo que você apenas contempla. E contrapõe a isso uma proposta de uma reapropriação da arte, que reafirme a arte da vida cotidiana, que torne a arte algo acessível a todos e que seja usado para enriquecer o dia a dia das pessoas, em contraposição ao empobrecimento da experiência que o capitalismo traz com o predomínio do trabalho abstrato.
Daí ele vai começar a tentar dar maior solidez a essa reflexão do ponto de vista conceitual. Vai saindo dessa crítica mais artística e vai entrando numa crítica mais filosófica e na crítica da economia política. Vai ler o Marx e tentar entender como essa forma de alienação cultural está na verdade ligada à alienação de base na forma de reprodução da vida material no capitalismo. A gente tem que pensar também que ele é um autor que nasceu na década de 1930 e viu uma transformação muito grande da vida cotidiana. Cresceu em um mundo que ainda era prioritariamente rural, e de repente esse mundo é urbano, no qual as televisões invadem vários lares domésticos e as pessoas estão se relacionando de uma maneira muito diferente entre si. A maneira de produção cultural também se tornou completamente diferente. E sobretudo uma coisa importante para ele: a separação entre como as pessoas vivem concretamente, o que é a vida do trabalho abstrato, e aquilo que se produz simbolicamente, se produz em outra cultura. É uma separação muito grande.
Então como eu falo no começo do livro esse termo é o termo fundamental do Debord, o termo de separação. O começo do meu livro se chama Crítica da Separação porque é o título de um filme do Debord de 1961, um curta-metragem, que é o momento em que ele está fazendo uma virada na reflexão conceitual dele. E é o termo com o qual ele abre também o livro A sociedade do espetáculo. A ideia de separação é fundamental e o que ele chama de espetáculo é justamente essa separação entre o que se produz e se consome como representação, e aquilo que se vive concretamente na vida cotidiana. Eu vou discutir ela mais à frente no livro com relação ao livro do Debord de 1988 que se chama Comentário sobre a sociedade do espetáculo, quando ele repensa um pouco essa teoria de 1967. Acho que é uma noção que eu ainda gostaria de trabalhar melhor, que eu acho que aponta já para um outro estado dessa relação entre a representação e o campo da experiência sobretudo no ponto de vista da cultura material, e ali acho que teria algo a ser pensado no quanto dessa separação vigora ou como ela vigora.
Mas eu diria que esse cotidiano das redes sociais ainda manifesta ao menos em parte essa separação fundamental da qual falava o Debord, certo? Você tem ali o cotidiano X e cria um cotidiano Y nas redes, e esse das redes é onde você se identifica subjetivamente, que ocupa essa esfera do lazer, e para isso você tolera um certo esvaziamento da vida do trabalho. Isso hoje não é tão simples, porque essas coisas se misturam muito, mas ainda há essa separação de base no sentido de que o mundo das redes é um mundo à parte. Todo um campo do mundo virtual constitui um mundo cada vez maior, um mundo de aplicação exponencial que é em parte descolado do que é o mundo material e do restante das atividades. Então você seleciona o que você quer projetar dessa sua vida cotidiana. Então acho que desse ponto de vista o tema do espetáculo continua sendo muito certeiro naquilo que ele pode designar.
A gente precisa fazer esse esforço para perceber ou para indicar (no meu caso é para indicar, com um comentador do Debord e especialista do trabalho dele), tentar explicar para as pessoas: olha, tem mais por trás esse termo do que parece a primeira vista. Você chegou até o Debord porque a ideia do espetáculo parece te dizer algo sobre o que você está vivendo, você tem que constituir uma mise-en-scène, uma encenação da sua vida na rede social, ótimo. E isso tem a ver com o quê? Vamos ver como o Debord entendeu isso daqui, o que estava acontecendo, e aí a gente volta para o Debord para entender essa separação de base, e essa separação está ligada à organização da sociedade, e aí tem que fazer um movimento que não é simples, que não parece óbvio, que é você voltar para o Marx, por exemplo. Então entender que por trás dessa separação do ponto de representação existe primeiramente uma situação numa sociedade de mercado, e que esses processos estão ligados.
Veja, o Debord, quando escreveu o livro, ele pensa muito como um paralelo ao Capital do Marx, e a gente poderia colocar o mesmo tipo de pergunta com relação ao Marx. O mesmo fenômeno acontece com o Capital. Há uma complexidade de questões sendo abordadas ali por trás desse termo, que é um termo que se compreende de uma maneira mais simples, designa simplesmente a sociedade de mercado, então também é muito comum o Marx ser mencionado. Todo mundo fala no Capital como fala no capitalismo, mas não necessariamente quando você fala no capitalismo você está entendendo o que o Marx entendia por capital e a complexidade de questões que ele estava levantando. Não necessariamente quando você fala no capital você está pensando no fetichismo da mercadoria.
Então acho que em todos esses autores existe esse movimento que é: a gente tem essa sensação de que esses livros falam da mais presente atualidade e sobretudo em momentos agudos, em momentos de crise, as pessoas voltam para o Marx. Toda vez que algo absurdo acontece no campo das redes sociais alguém vai sacar sociedade do espetáculo da gaveta, e nesses momentos a gente é atraído por esses livros, por esses termos, porque eles parecem falar diretamente do presente. Ficaria a questão de, bom, por que isso acontece, né? Por que os livros que foram escritos em contextos históricos e intelectuais distintos parecem ainda falar de fenômenos que aconteceram de repente esta manhã, né? E há respostas para isso. É porque esses livros de fato designaram processos estruturais e estruturantes da sociedade que ainda é a nossa, que ainda é a mesma na qual a gente vive. Eu acho que esse é um movimento fundamental da leitura. Tentar aprender esses pontos nodais dessas teorias, que ainda designam pontos nodais das sociedades contemporâneas, para a partir daí continuar a reflexão.
E falando do livro, Gabriel, você admite no próprio texto que A sociedade do espetáculo, do Guy Debord, é um livro de difícil compreensão, e que você temeu, no seu livro, fazer algo muito extenso, que às vezes poderia até afastar o leitor, perder um pouco um eixo central da proposta. Como que você então arranjou isso, para dar forma nesse livro que é dividido em duas partes, tem duzentas e poucas páginas e que, a meu ver, apesar de toda a complexidade que você já tratou um pouco nas outras respostas, é uma leitura fluida.
Essa é uma questão que não foi fácil de trabalhar. O livro do Debord é difícil, tem essa forma por parágrafos com uma forma muito hegeliana, uma prosa com uma série de inversões de genitivo e que acho que num primeiro momento gera um estranhamento muito grande pros leitores. Essa fórmula do Debord tem dois lados também. Tem efeitos positivos e negativos. Por um lado pode ser muito frustrante pra quem abre o livro e está esperando uma teoria clara, espetáculo é isso e aquilo, uma definição, e aplica em objetos X ou Y… Isso o Debord não faz. Por outro lado, essa construção dele — e o Debord é um grande escritor e alguém que vem do campo da arte, como eu falei, fez filmes —, tem frases que são muito marcantes. Ele tem um gosto da boa fórmula e de repente ele faz lá uma frase que pega em cheio e fica na memória. E isso acho que é uma das razões de um certo uso que foi feito do livro. É muito fácil você recortar um parágrafo, recortar uma frase, uma formulação e sair repetindo sem ter passado pelo processo de entender a complexidade da teoria que ele está tentando construir.
Isso também é uma das explicações por que o livro continua a ser mencionado com relação a fenômenos do presente, até voltando àquela primeira pergunta de como eu cheguei. Uma coisa foi ler, me identificar e ver que tinha questões interessantes; outra é de fato me debruçar na pesquisa e escrever sobre. Foi um pouco a dificuldade que as pessoas tinham de entender o livro, foi tentar oferecer algo que ajudasse a contornar essa dificuldade. E algo que ajudou ao livro ter essa fluidez que ele tem — que é algo que me deixou muito feliz em ouvir, isso que você disse agora, que é uma leitura fluida, e algo que eu ouvi muitas vezes de muitos leitores, que a leitura é uma leitura agradável, que é uma leitura fácil de ser feita apesar das dificuldades teóricas que estão envolvidas em tudo o que está sendo discutido. A intenção era justamente essa, e o que ajudou um pouco a chegar nesse ponto foi ter dado alguns cursos sobre o tema no meio do caminho. Até uma parte do texto do livro foi inicialmente escrita para aulas, e isso ajudou, porque você tem que se confrontar com essa experiência de explicar. Me ajudou a achar alguns pontos de referência de como esse texto poderia ser encaminhado e a partir daí, apesar de toda a pesquisa que eu já tinha feito antes, eu na verdade sentei e escrevi de novo. Eu não traduzi minha tese, eu peguei, sentei e escrevi aqui o livro em português.
A edição ajudou também, o trabalho de edição da Elefante, e a ideia era um pouco essa, criar uma possibilidade de uma aproximação com a teoria do Debord que mostrasse o seu contexto, as suas referências, mas relacionasse um pouco com o campo da atualidade de uma maneira que não afastasse as pessoas do autor. Eu acredito (e espero não estar enganado) que quem lê esse livro e depois vai ler o Sociedade do espetáculo vai ter uma outra relação, vai entender de uma maneira muito menos difícil, mais direta, vai conseguir estabelecer outras leituras a partir dessa leitura inicial que eu ofereço.
Não só o livro Sociedade do espetáculo, é dizer, mas também o livro Comentários sobre a sociedade do espetáculo, que no Brasil foi editado junto. São vinte anos de diferença entre um e outro, e os comentários são muito pouco comentados normalmente. Eu achava que era importante também trazer uma reflexão sobre os comentários porque é o livro mais próximo do Debord, está vinte anos mais próximo do nosso contexto, e portanto acho que tem pistas importantes ali a serem destacadas.
Por fim, Gabriel, queria dar um giro pela coleção Crise e Crítica, onde você faz a curadoria, trabalha em revisões técnicas etc. Você participa de um primeiro livro, Capitalismo em quarentena, ainda na pandemia, também tem essa influência em trazer os livros de Anselm Jappe para o público brasileiro… Queria te ouvir sobre a coleção, a contribuição dela para o debate, e aproveitar o lançamento recente de Concreto para que você apresentasse um pouco esse livro do Jappe que parte do desabamento de um viaduto na Itália. Onde dali o autor acaba puxando uma crítica ao capitalismo global a partir dessas construções nas cidades, a partir da materialidade do concreto armado.
A coleção Crise e Crítica tem como intenção publicar livros que tragam reflexões críticas e teóricas sobre questões que são importantes para a compreensão do presente. Existe uma presença importante de uma tendência crítica do marxismo mais recente que é a chamada crítica do valor, a Wertkritik, da qual o próprio Anselm Jappe fez parte, como outros autores como Robert Kurz, Roswitha Scholz, entre outros.
O livro que a gente publicou na pandemia, que inaugurou a coleção, Capitalismo em quarentena, é um livro que faz uma reflexão da pandemia a partir desse campo teórico. No meu caso a referência do Debord é muito importante então faço esse duplo jogo de pensar uma atualização do marxismo em relação à crítica do valor, mas também pensar fenômenos que a gente poderia entender como próprios da sociedade do espetáculo. É algo que também está presente no Anselm Jappe porque ele também é um leitor e comentador de Debord, além de ter sido um participante da Wertkritik, a crítica do valor.
Espero que saia a qualquer momento, muito brevemente, o livro da Roswitha Scholz, que é uma reflexão sobre gênero em relação com a crítica do valor. Acho que vai ser uma contribuição importante. Do Anselm Jappe (também um dos autores do Capitalismo em quarentena) a gente já publicou também o A sociedade autofágica, que é um livro muito forte para pensar o presente, a sociedade na qual nos encontramos, onde ele traz questões da crítica do valor, mas todo um alargamento no campo da cultura e da psicanálise também. Revirogando uma noção de narcisismo que ele consegue amarrar com uma crítica profunda da tradição filosófica ocidental e moderna. O narcisismo tem lá os seus inícios, na verdade, na virada cartesiana da filosofia. E isso relacionado com a transformação material da vida que é o desenvolvimento do capitalismo.
E agora a gente publicou também o Concreto, um livro diferente, no qual o Anselm Jappe se debruçou sobre uma matéria, um material construtivo específico que ele entende que manifesta e serve ali como sintoma, como algo em que a partir dele é possível discutir um campo muito mais amplo. Que estaria presente ali nessa disseminação, vitória, hegemonia do concreto como material construtivo em escala global. A gente encontraria por trás disso, na verdade, o processo de expansão do capitalismo a partir da Europa e com isso uma série de consequências nefastas de homogeneização cultural, de perdas de outras experiências, de apagamentos de uma série de saberes no âmbito da construção e do uso de materiais. Cujas consequências a gente só consegue perceber de maneira clara agora, porque foram décadas de discurso triunfante, enfático, de um modernismo que passava sem críticas. E esse modernismo tinha nessa nova matéria um trunfo que permitiria um suposto progresso em torno do saber sobre as formas de construção e de arquitetura e engenharia a partir da sociedade ocidental que foi se impondo sobre as outras sociedades.
Ele começa o livro com esse desabamento da ponte no Sul da Itália, porque é um evento que mostra justamente a face catastrófica desse triunfo do concreto e do modernismo arquitetônico. O concreto se revela uma matéria que faz todo sentido para a lógica do capital, e que faz muito pouco sentido para a lógica da vida humana. Matéria nociva para o ambiente, pouquíssima durabilidade e que, à medida que os anos vão passando, aquilo que aparecia como o mais absoluto progresso vai se revelando na verdade uma regressão. Uma regressão do ponto de vista das matérias construtivas porque as construções não duram, precisam de manutenções constantes, envelhecem muito rápido. Então esse material que é barato, fácil de ser moldado, e que por conta disso consegue se impor em toda parte, ele é um material construtivo que encarna a lógica da mercadoria. Essa sua dimensão do domínio do abstrato sobre o concreto.
O Anselm gosta da versão em português brasileiro porque dá para fazer inclusive esse jogo de palavras. O concreto manifesta na verdade a dimensão abstrata da matéria, da mercadoria, o triunfo dessa forma de mercadoria que é a condutora do valor abstrato. E curiosamente a gente chama essa matéria de concreto. Ela carrega esse oxímero no seu próprio nome.











