Entrevista a Walden Bello
Por Eduardo Febbro
Publicado em Página/12
Tradução: Simone Paz, do Outras Palavras
Foto: Bianca Oliveira
De sul a sul e mundo afora, há poucos pensadores tão lúcidos e precisos como o filipino Walden Bello. Sociólogo, diretor executivo de Focus on The Global South, professor de sociologia e gestão pública da Universidade das Filipinas e investigador associado do Trans National Institute, Walden Bello plantou na coluna do Ocidente a muda de um conceito que o tornaria famoso no mundo todo e que, hoje, recupera com força toda sua legitimidade: em 2002, escreveu o livro Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial.
O livro virou um dos manuais do movimento antiglobalização. O oportunismo das extremas-direitas do Norte, e de alguns social-democratas adeptos da soberania, fez com que as ideias desta obra fossem literalmente roubadas com fins eleitoreiros.
O ensaio contém muitas das chaves que ultrapassam o tão obsoleto e indigesto catálogo de livros-diagnóstico sobre o liberalismo. Bello demonstrava a doença genética de uma globalização que pretendia curar o mundo, o modo como essa globalização sacrificava o desenvolvimento de países do Sul e propunha uma série de medidas atualizadas pela pandemia que paralisou a sociedade em 2020.
Suas ideias voltam a ecoar por todas partes, principalmente aquela que promove a reorientação das economias por meio da substituição da produção destinada à exportação por uma produção com foco nos mercados locais. Um exemplo: a falta dramática de máscaras de proteção (cuja produção se concentra na China), demonstra a precisão de sua declaração.
Walden Bello é autor de inúmeros livros sobre a globalização e, em 2003, foi premiado com o Nobel Alternativo. Bello foi membro do parlamento filipino de 2009 a 2015. Seus livros mais recentes publicados em inglês são: The Global Rise of the Far Right [A ascensão global da extrema-direita] e Paper Dragons: China and the Next Crash [Dragões de papel: China e a próxima quebra].
Nesta entrevista, o sociólogo explora esse “novo mundo” que quase podemos tocar com as mãos, sem que ainda seja real. Sólido em suas abordagens, Bello admite as possibilidades que se apresentam sem, por isso, esconder os limites de uma transformação que depende das forças progressistas e da reconfiguração do Sul como ator renovado.
Muitas vezes, o senhor afirmou que era preciso caminhar em direção a um sistema pós-capitalista. As pessoas sentem que é chegada a hora. Outros, duvidam. O senhor acha que a crise provocada pela pandemia reúne as condições para reconfigurar tudo?
Sim, mas preciso explicar. Acho que as possibilidades oferecidas pelo momento, a conjuntura, são fruto de duas coisas: da crise objetiva do sistema, e da força subjetiva que pode atuar sobre esta crise. Minha percepção é que a crise mundial financeira de 2008 foi uma profunda crise do capitalismo; porém, o elemento subjetivo não atingiu uma massa crítica. Devido ao crescimento que foi impulsionado pelo gasto do consumidor e financiado pela dívida, a crise surpreendeu as pessoas, mas não me parece que tenha se distanciado tanto do sistema.
Hoje em dia é diferente. O nível de insatisfação e de alienação com o neoliberalismo é altíssimo no Norte mundial, por causa da incapacidade das elites em enfrentar o declínio, melhorar a qualidade de vida das pessoas e trabalhar na enorme desigualdade nos anos que se seguiram à crise financeira. No Sul global a crise de legitimidade já vinha afetando o neoliberalismo, a globalização e suas principais instituições, como a União Europeia, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, inclusive antes da crise de 2008.
A pandemia de covid-19 surgiu através de um sistema econômico global já desestabilizado, que sofria de uma profunda crise de legitimidade. As pessoas tinham a sensação de que as coisas estavam realmente fora de controle. Hoje propagaram-se amplamente a ira, a frustração e a sensação de que as elites e os poderes governantes perderam o controle e de que o sistema já não presta mais, diferentemente das sequelas imediatas da crise de 2008. É precisamente esse turbilhão, esse elemento subjetivo, que deve ser aproveitado pelas forças políticas.
O sistema global, evidentemente, vai se esforçar em recuperar a “antiga normalidade”, como demonstrado pela infame vídeo-conferência do banco Goldman Sachs, cujos participantes combinaram que não houve uma crise sistêmica gerada pela covid-19 e que o importante é garantir uma volta rápida e sucinta à ordem anterior à covid-19. Mas não é necessário obrigar o gênio a voltar para dentro da lâmpada.
Há, simplesmente, raiva e ressentimento demais e muita insegurança que se desencadeou, e somente a esquerda e a extrema-direita têm condições de aproveitar essa tempestade subjetiva. Então, se o impulso é rumo a um sistema pós-neoliberal, a pergunta que devemos nos fazer é: quem será capaz de aproveitar e dirigir toda essa ira acumulada?
O fracasso da democracia liberal em melhorar a desigualdade e a vida das pessoas levou à aparição de movimentos populistas no mundo inteiro. De certo modo, a extrema-direita sequestrou a desglobalização. Esta crise expõe, como nunca, a grande fratura do mundo. O cenário posterior ao vírus pode acabar sendo muito mais propício para a chegada da extrema-direita ao poder
Infelizmente, a extrema-direita está melhor posicionada para se aproveitar do descontentamento global porque, inclusive antes da covid-19, os partidos de extrema-direita já eram peças-chave do posicionamento e dos programas antineoliberais, que sempre foram promovidos pela esquerda independente. Por exemplo, a crítica à globalização, a expansão do Estado de bem-estar social e uma maior intervenção do Estado na economia.
O que a extrema-direita fez foi propor esses pontos como um paradigma próprio dela. Na Europa, os partidos de direita radical abandonaram parte dos velhos programas neoliberais que pregavam uma maior liberalização e uma redução dos impostos, para passar a declarar apoio ao Estado de bem-estar e a uma maior proteção da economia nacional perante os compromissos internacionais. Mas, é claro, somente em benefício das pessoas com a “cor de pele, cultura, etnia e religião corretas”
Basicamente, é a velha fórmula “nacional-socialista” inclusiva de classe, porém, discriminatória racial e culturalmente. A extrema-direita está, infelizmente, à frente da esquerda nestes momentos. O amplo movimento progressista terá de se movimentar mais rapidamente e garantir que os social-democratas desacreditados na Europa os democratas Obama e Biden nos EUA não voltem a canalizar a política rumo a um novo compromisso com o moribundo neoliberalismo.
Se isso ocorrer, aquela cena tenebrosa do filme Cabaret, onde as pessoas comuns que apoiam os nazistas cantam “o futuro nos pertence”, muito provavelmente, se tornará uma realidade.
A esquerda tem muitas ideias, mas não está unida. Além do mais, mesmo com a crise demonstrando a importância das ideias de esquerda, não há líderes legítimos para realizá-las. Resumindo: como criar a base que irá transformá-la em força material?
Esse é o desafio. Nós, na esquerda, temos uma grande quantidade de ideias, mas também uma pobreza de estratégias políticas e de líderes eficazes para nos unificar. Parece que as personalidades carismáticas estão principalmente à direita. Entretanto, tenho certeza que essas estratégias e pessoas irão surgir no seio da esquerda. A dinâmica da mudança histórica produzirá isso, inevitavelmente — e, algumas vezes, sob as mais improváveis circunstâncias.
As únicas perguntas são: quem, como, onde e quando — e se surgirão ainda nesta geração. Os progressistas têm um leque de boas ideias e de estratégias desenvolvidas nas últimas décadas sobre como avançar rumo a um sistema pós-capitalista. A esquerda propõe paradigmas como decrescimento, desglobalização, ecofeminismo, soberania alimentar e “o bem viver”
O problema é que essas estratégias ainda não encontraram uma base de massas, e uma grande parte de problema reside no fato das pessoas associarem a esquerda à esquerda centralizada, ou seja, aos social-democratas na Europa e ao Partido Democrata nos EUA. Ambos estavam envolvidos com o velho sistema neoliberal, que apresentavam sob um “rosto humano”.
A esquerda propõe paradigmas como decrescimento, desglobalização, ecofeminismo, soberania alimentar e “o bem viver”. O problema é que essas estratégias ainda não encontraram uma base de massas, e uma grande parte de problema reside no fato das pessoas associarem a esquerda à esquerda centralizada
No Sul global, os governos democráticos liberais, que personificaram as ditaduras da década de 1980, muitos deles dirigidos por coalizões que incluíam progressistas, também foram desacreditados por terem adotado medidas neoliberais; enquanto isso, a “Maré Rosa” na América Latina se encontra com suas próprias contradições, e os Estados comunistas do leste da Ásia se tornaram sistemas de capitalismo de Estado.
Mas, creio que não devemos descontar tudo na esquerda. A história tem um movimento dialético complexo e, às vezes, há desenvolvimentos inesperados que levam a resultados progressivos ou regressivos. Deixe-me dizer isso: embora a situação não pareça tão boa para os progressistas no momento, estou certo de que nossa equipe vencerá no final. A Segunda Guerra Mundial não terminou em Dunquerque, embora, na época, tudo parecia apontar para uma vitória alemã.
Também não devemos excluir uma nova aliança entre as classes médias e formas mais autoritárias do liberalismo, como ocorreu no Chile na década de 1970, com o único objetivo de não perder privilégios.
Sim, de fato, essa é uma possibilidade. Ao mesmo tempo, o modelo chileno de uma aliança entre classe média e elites, baseada num programa neoliberal clássico, não poderia mais ser uma opção. Uma nova aliança autoritária provavelmente teria que incluir grandes setores das classes mais baixas para ter um grau significativo de legitimidade, e essa incorporação das classes mais baixas poderia ser realizada fazendo algumas concessões econômicas paternalistas e direcionando as energias da aliança contra minorias e imigrantes.
Isto é o que já acontece desde a Índia, onde o partido no poder — BJP — está criando um Estado anti-muçulmano, até as Filipinas, onde os consumidores de drogas são bodes expiatórios para os males da sociedade, até a Europa e os EUA, onde os imigrantes são o centro de todo o ódio que a maioria branca e “inclusiva só para sua classe” tem.
O senhor cunhou a palavra desglobalização em seu livro Desglobalização: ideias para uma nova economia mundial. Sente que agora as condições são melhores para tornar realidade essa desglobalização teorizada no livro?
Sim, por exemplo, a loucura das cadeias de suprimentos globais provou que estava completamente inoperante durante a crise do coronavírus. Devido aos cálculos neoliberais baseados na redução do custo unitário de produção, as elites corporativas, com o consentimento de seus governos, transferiram grande parte de suas instalações industriais para a China. Assim, quando a produção chinesa parou durante a crise da covid-19, muitos países careciam de componentes industriais importantes e descobriram que mesmo a produção de máscaras e de outros equipamentos de proteção individual era algo que eles não eram mais capazes de fazer.
Ao mesmo tempo, o rompimento da cadeia de suprimentos agrícolas global — causado pela desaceleração da covid-19 — ameaça com uma crise de fome mundial. Em vários países do norte e sul global, os setores agrícolas locais foram levados a encolher. Entre 30 e 50% dos alimentos consumidos na China, sudeste da Ásia e América Latina não são produzidos localmente, mas são fornecidos por cadeias de suprimentos agroalimentares globais e regionais. Eu acho que haverá um movimento em direção a uma maior auto-suficiência na produção industrial e agrícola. A questão é se essas estratégias serão desenvolvidas por regimes de direita ou por governos progressistas.
Dos quinze pontos que formam seu conceito de desglobalização, quais o senhor acredita que são mais urgentes a partir de agora?
Penso que o mais urgente é reorientar a produção para o mercado interno e desvincular a produção local das cadeias de suprimento globais por meio de uma política comercial progressista, uma política industrial agressiva e uma política agrícola que promova a autossuficiência e a soberania alimentar. Mais uma vez, é importante que essas políticas sejam adotadas por progressistas e não por nacionalistas de direita que as usarão principalmente para servir aos interesses do grupo étnico e cultural dominante, contra minorias e imigrantes.
O que poderia substituir a globalização como novo protótipo após a pandemia de covid-19? Em entrevista recente, o sociólogo francês Michel Wieviorka disse: “o pior será pior, e o melhor será melhor”
Trata-se, agora, de uma competição entre uma desglobalização progressista e outra regressiva, nacionalista. No caso da primeira, “o melhor será melhor”. Mas, se a segunda ganhar, concordo com Wieviorka: “o pior será pior”.
Na sua ideia de desglobalização, o senhor não propôs que os países se retirassem da comunidade internacional, mas sim, que fosse construído um modelo alternativo. A crise atual muda sua própria perspectiva desse modelo?
Mesmo no pós-pandemia e num processo de desglobalização, a interação criativa com a comunidade internacional será importante. Como eu sempre disse, a desglobalização não implica dissociação da economia internacional, mas de alcançar um relacionamento equilibrado entre a economia local e a economia internacional, no qual a integração da economia nacional não seja sacrificada no altar da integração, liderado por empresas de diferentes partes do mundo.
Você não pode sacrificar a economia nacional em nome de uma economia globalizada. Um grau elevado de autossuficiência na produção agrícola e industrial é uma característica fundamental da economia nacional. Mas este é somente um aspecto do paradigma da desglobalização. A promoção radical da igualdade também é importante e crítica, por razões de justiça social e pela expansão da demanda interna.
Há uma necessidade urgente de democratizar a tomada de decisões econômicas desde o cargo mais alto do Estado até a fábrica e de desenvolver uma relação benigna entre a economia e o meio ambiente, no que às vezes é chamado de “novo acordo verde”.
Há décadas sonhamos com um New Deal do e para o Sul. Mas morreu nisso: um sonho.
Talvez aconteça, talvez não. Uma coisa que não devemos esquecer é que a crise do neoliberalismo e da globalização, em conjunto com o desgaste do conflito entre a China e os Estados Unidos, poderia criar esse espaço de manobra para os países do Sul — espaço esse que já existia antes de 1989 por conta do conflito entre os EUA e a União Soviética. Esse conflito foi uma das condições para as vitórias dos movimentos de libertação no Vietnã, Cuba, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau.
Dele também nasceu o Movimento Não Alinhado, após a conferência de Bandung, e surgiu a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), graças à inspiração do grande economista argentino Raúl Prebisch. A solidariedade do Sul global — que sempre sentimos em todos os países, mesmo sob os mais diversos regimes — nasceu nesse período.
Depois da crise financeira de 2008-2009, a pandemia da covid-19 representa a segunda grande crise da globalização deste século. Mas mesmo antes da crise, na Argentina, no Equador, no Chile, na França (com os coletes amarelos), na Argélia, no Líbano ou em Hong Kong, tínhamos visto o renascimento de um sujeito social globalizado. Esses movimentos de protesto global poderiam constituir parte das forças de transformação do mundo
Definitivamente, sim. Essas são algumas das forças que me dão esperança sobre um possível trunfo da esquerda. A sede das pessoas por justiça e igualdade sempre voltará à superfície. O importante é garantir que seja a esquerda quem lidere essas lutas e que a direita não sequestre nem perverta essas energias que brotam desde as camadas de baixo, em nome de sua agenda autoritária oportunista, como na Europa, Índia, Estados Unidos e Filipinas.