Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante
O neoliberalismo ainda engatinhava quando mestre Foucault o descreveu em 1979, em seu curso Nascimento da biopolítica, ministrado no Collège de France. Antes de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, aplicarem suas políticas neoliberais, lá estava o filósofo descascando esse modo de governo onde o Estado não tem autoridade para perturbar a ordem do mercado.
Uma década e meia depois, Bourdieu foi mais incisivo: neoliberalismo não é apenas mais uma forma de governar, mas sim o fim do modo de vida que sua França conhece, ou conhecia. Em A miséria do mundo, de 1993 (e lá se vão 27 anos), demonstra como o neoliberalismo corrói o Estado social, essa estrutura concreta que alguns países construíram para afastar a miséria e assim adiar o colapso da sociedade sobre o peso de suas contradições internas. O neoliberalismo se impõe como o fim desse pacto.
E nós, que não tivemos senão remendos de Estado social, estamos em posição singular para assistir ao banquete: no chão, sob a mesa, vendo o neoliberalismo jantar o que resta de nossos dispositivos de proteção social e reservas naturais. Esta semana, não faz dez dias, o presidente Messias ensaiou a possibilidade de privatizar quatro mil Unidades Básicas de Saúde do país — as UBS, porta de entrada do SUS.
Porém, debaixo da mesa ainda podemos lhes chutar a canela. A resistência subiu e Messias não teve escolha, cancelou a medida no dia seguinte à sua publicação no Diário Oficial da União. A este espaço cabe franqueza: frente à consideração de instalar taxímetros no postinho de saúde do bairro, nos resta pouca opção além de resistência ou barbárie.
Neste contexto lhes trazemos Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal, de Christian Laval, sociólogo francês que reorganiza e historiciza as caixas de ferramentas deixadas pelos dois mestres. O que não é tão fácil: além de teses, Bourdieu também deixou seu pensamento em panfletos, cartazes, abaixo-assinados e tudo o mais onde pôde atiçar fogo. Laval caminha ao centro da obra dos filósofos para retornar com a prosa clara de um livro pensado para não especialistas.
Laval é, também, mestre por sua própria conta e, diferente dos outros dois, vivo. Destacou-se nestas terras por ser coautor de A nova razão do mundo, publicado pela Boitempo em 2016, que passa a limpo os lugares-comuns sobre a natureza do capitalismo contemporâneo.
O obra, assinada também por Pierre Dardot, é um colosso que demonstra a racionalidade global transformando as sociedades de forma subterrânea e difusa. Leva a sério a formulação de Margaret Thatcher — “A economia é o método. O objetivo é mudar a alma” —, descreve o mundo onde o desejo é o alvo do poder. Dardot e Laval afirmam que a grande inovação da tecnologia neoliberal é vincular diretamente a maneira como um homem “é governado” à maneira como ele próprio “se governa”.
De que forma então este Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal se relaciona com a consagrada obra de Laval? Foi uma das perguntas que fizemos a Nilton Ota, o sociólogo que traduziu o livro com a colega Márcia Pereira Cunha.
“Uma forma mais produtiva, mais crítica, de ler este livro é entender que ele dá atualidade às questões formuladas por Foucault e Bourdieu, desdobrando ambas sem cair na tentação de comparar ou declarar um vencedor. Mas, além disso, problematiza também a atualidade do engajamento intelectual contra essa razão-mundo neoliberal, algo que em seu livro anterior está disperso, sugerido apenas.”
Razões para agir
É preciso dizer que Nilton e Márcia não só traduziram o livro, mas também viabilizaram sua produção. São os proponentes e curadores da coleção Práticas Utópicas, que tem Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal como seu primeiro título. Ambos são pesquisadores de sociologia na Universidade de São Paulo, que tem cooperação estreita com a Universidade Paris Nanterre, onde Laval deu aula até dois anos atrás, e onde Nilton realizou seu pós-doutorado, em 2013.
Conviveu lá com o velho Laval, que Nilton descreve como muito aberto, agregador. Disponível com a mesma graça ao primeiroanista e ao professor emérito. “Sabe aquele cara que faz questão de te incluir na conversa? Que fala de você pros outros e deles pra você? Laval. Muito generoso, e o resultado é o ciclo expandido de relações que ele cultiva e que deu origem a esse livro.”
Trata-se das oficinas Práticas Utópicas, ainda organizadas por Laval em Paris-Nanterre e que plantou uma semente na USP, que então Márcia e Nilton e Márcia decidiram lançar a coleção de mesmo nome no Brasil, em parceria com a Elefante.
E aí encontramos o eixo que organiza esses três intelectuais franceses: Laval, Foucault e Bourdieu estão interessados em sistematizar dispositivos de resistência, expor entranhas e contraciclos como lição de combate. Em nenhum momento sua sociologia ou filosofia é distante da aplicação prática.
Nilton relembra como, para Foucault, o saber se origina nas lutas e abastece a universidade, devendo então ser retornado às lutas como algo novo, crítico, fruto da relação entre os dois. E nós relembramos Paulo Freire com seu incrível Comunicação e extensão, um livrinho deste tamanho que pesa uma tonelada. Escreveu no Chile, durante seu exílio, demonstrando como a universidade e os especialistas podem ser alienados de seu objeto. Acompanhou agrônomos formados indo a campo despejar suas certezas, sem a necessidade de ouvir os camponeses incultos que ali estavam.
Ora, o que esses ignorantes que trabalham a terra há gerações podem saber sobre ela?
Freire, Nilton, Márcia, os três franceses, nós aqui da Elefante e você, todos nós sabemos: o conhecimento acadêmico e a prática da crítica sistemática fazem sentido quando submetidos à realidade. É por isso que a escolha de Laval é tão precisa: tanto Foucault quanto Bourdieu foram intelectuais da linha de frente. Ambos têm fotos com o megafone na mão, à frente de greves e paralisações.
Bourdieu, especialmente, ocupou na mídia o lugar do intelectual público contra o neoliberalismo ainda nos anos 1990, antes de ser hype. Também é cocriador da Raisons d’Agir, ou Razões para agir, selo literário que publicou talvez um milhão de exemplares de literatura crítica.
Práticas utópicas
Há um paralelo entre o selo de Bourdieu, a coleção Práticas Utópicas e, por que não dizer, a Elefante ela mesma. Todos realizamos a publicação de livros como ação política de necessária resistência. Ideias sempre foram material explosivo, atuamos cheios de cuidado e admiração pelos objetos incendiários que publicamos.
Ao mesmo tempo, tampouco podemos ignorar o fato de que Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal é o diálogo entre três franceses e isso tem consequências para texto e para a apreensão das ideias por nossos rapazes latino-americanos. A já citada ausência ou esfacelo de nosso Estado social é uma realidade objetiva que fica mais evidente quando não nos vemos no espelho dos mestres europeus.
Existe uma atualidade brutal nas obras de Foucault e Bourdieu que este livro escancara. Todo o esforço da coleção Práticas Utópicas é trazer a teoria para o chão. Os curadores escolheram iniciar por uma obra de referência, mas, agora, cultivam novos espaços e vozes.
Nilton e Márcia estão garimpando novos trabalhos e estimulando a redação de novos livros para compor a coleção. Textos que não se restrinjam aos especialistas diplomados. “A teoria existe na cabeça dos coletivos, movimentos e militantes. Queremos participar desse esforço que já está aí para tirar ela de lá, trazer ao centro do debate e para ali produzir algo novo, mais polido e crítico, que possamos devolver juntos”.
Vida longa à coleção Práticas Utópicas — e à resistência.