Estado laico, Oxê de Xangô e a parede do STF

Por Paulo Silva Junior

 

A instalação surgiu há mais de uma década numa cidade no interior de São Paulo. A placa, atualizada em 2024 pela prefeitura local, tem texto bastante legível em fundo amarelo e letras pretas, grandes, em negrito: “Sorocaba é do Senhor Jesus Cristo”. Algumas horas de estrada acima, em direção ao litoral do Rio de Janeiro, uma sinalização colocada em 2018 também chamou atenção, agora sob o desenho daqueles retângulos azuis informativos, bem visíveis aos motoristas atravessando o limite de um novo município. “Bem-Vindo a Nova Iguaçu – Essa Cidade Pertence ao Senhor Jesus”.

Em ambos os casos, houve protestos da sociedade civil questionando o proselitismo religioso por parte das lideranças políticas mas, principalmente, o silenciamento e o preconceito diante de outras expressões e crenças espalhadas pela população. E nesse início de 2025, ao chegar ao próprio plenário do Supremo Tribunal Federal, o debate ganha um capítulo de maior visibilidade institucional –  a busca por igualdade de tratamento na imagem da maior instância jurídica do país, literalmente a parede que fica às costas dos ministros do STF.

Em novembro, o plenário decidiu que símbolos religiosos em prédios e órgãos públicos não ferem a neutralidade estatal em relação às religiões. Argumentava-se que o Brasil é um país laico e que esses locais devem estar desvinculados a esses temas. Acabou que os votantes, por unanimidade, indicaram que se trata apenas de representações da cultura e da tradição, e que tais objetos estão expostos desde a formação da sociedade brasileira.

Mas por que, nesses casos, se vê apenas crucifixos?

No início de fevereiro, o Idafro, Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras, lançou a iniciativa Oxê no STF, em referência ao machado de duas lâminas de Xangô, que simboliza a imparcialidade e a dualidade dos fatos. Trata-se do símbolo yorubá para a Justiça, que se justifica, segundo o texto, pela valorização do multiculturalismo e para firmar o repúdio à discriminação religiosa.

“O Oxê possui profunda relevância espiritual e cultural, estando relacionado à divindade Xangô, tradicionalmente considerada o Rei da Justiça. […] A crescente depredação de templos, ameaças a sacerdotes e a imposição de práticas religiosas específicas em escolas públicas, noticiadas em várias regiões do país, revelam a necessidade urgente de garantir proteção efetiva aos direitos fundamentais dessas comunidades. A exclusão histórica das religiões afro-brasileiras de espaços de representação institucional reflete um preconceito que ainda persiste, apesar das previsões constitucionais de igualdade e liberdade religiosa”, escrevem Hédio Silva Jr., coordenador-executivo do Idafro, e Ana Luísa Teixeira Nazário, mestre em Direitos Fundamentais e Justiça, em artigo publicado no Conjur.

Em A cor da fé: “identidade negra” e religião, publicado pela Elefante, Rosenilton Silva de Oliveira lembra ainda no primeiro capítulo que, diferentemente do caso francês, no Brasil o esforço político para assegurar a laicidade do Estado é dar a toda e qualquer religião a possibilidade de se manifestar publicamente. A Constituição Federal de 1988 determina que a liberdade de crença é inviolável, com livre exercício de cultos e proteção desses locais. 

“Portanto, em vez de serem expurgados do espaço público, os símbolos religiosos são barrocamente apresentados”, escreve o autor. “Em um país onde, segundo o Censo de 2010, quase 95% da população se diz pertencente a uma religião, é comum observar a presença de crucifixos em estabelecimentos oficiais, placas nas entradas das cidades com dizeres “[nome da cidade] é do Senhor Jesus” ou estátuas de deuses africanos em locais públicos. […] A profusão desses símbolos nos espaços públicos, bem como a enorme quantidade de templos religiosos espalhados pelas cidades, pode fazer crer que, no ‘país da mestiçagem’, a plurirreligiosidade é isenta de conflitos. Ora, assim como no campo racial o preconceito está presente e marca as relações interpessoais, a intolerância religiosa também possui suas facetas, mais ou menos explícitas; entretanto, a maior parte delas se volta contra um grupo específico: as religiões afro-brasileiras.”

A cor da fé se debruça então em exemplos de denúncia da intolerância religiosa e reforço do espaço para as religiões de matriz africana, como As Águas de São Paulo, evento inspirado pela Lavagem do Bonfim, em Salvador, e a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, no Rio de Janeiro; o Alaiandê Xirê: Festival Nacional de Alabês, Xicarangomas e Runtós, criado na Bahia; e outros atos que passam por vários formatos – encontro, seminário, fórum. No fim das contas, tal qual a discussão sobre o STF ter um Oxê de Xangô, o livro percorre essa conversa sobre como diversas lideranças pelo país têm levado o debate público sobre as políticas de patrimonialização.

“Fica evidente que há um processo de culturalização dessas religiões, cujo ápice é observado na categorização dos espaços de culto como ‘povos tradicionais de matrizes africanas’. […] Dado que não houve no Brasil leis específicas que estabelecessem a segregação racial (como ocorreu em países como Estados Unidos e África do Sul), criou-se a ideia de que todas as ‘raças’ e ‘culturas’ aqui viviam harmoniosamente. Na prática, porém, as populações negra e indígena eram marginalizadas: a primeira tida como inferior e a segunda considerada infantil. Esse aparente paradoxo – valorização de símbolos da herança africana no Brasil, inventariados no contexto afrorreligioso, ao mesmo tempo que essas religiões e seus adeptos eram perseguidos e impedidos de se expressar livremente no espaço público – advinha justamente do fato de tais coletivos não serem considerados ‘religiosos’ pelo Estado. Foi a partir da atuação da militância negra que essa concepção viria a se transformar”, escreve Rosenilton Silva de Oliveira.

É interessante trazer isso para o pleito atual do Idafro, essa mistura entre cultura e religião virando objeto fixado no STF. Está lá no voto dos ministros em novembro, ao defenderem a manutenção do crucifixo: “A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”.

Isso, por outro lado, se encontra com a ponderação de Rosenilton, ao fim do primeiro capítulo de A cor da fé.

“Diante dos ataques de algumas lideranças de igrejas evangélicas (sobretudo neopentecostais) contra símbolos, espaços, cultos e adeptos de religiões afro-brasileiras, é possível visualizar com clareza as fronteiras entre o ‘religioso’ e o ‘cultural’. Por exemplo, o ataque às imagens dos orixás dispostas em espaços públicos ocorre não porque elas são expressões das culturas africanas no Brasil, mas justamente por serem identificadas como pertencentes a um regime de crença específico que, segundo os ‘intolerantes’, precisa ser ‘aniquilado’. ‘Culturalizar’ uma religião é, portanto, pressupor uma divisão entre aspectos ‘religiosos’ e ‘culturais’, e sobrepor o segundo ao primeiro”.

Vale reforçar que o movimento atual se dá junto do aumento dos casos de intolerância religiosa no país. No início de 2024, o programa dominical Fantástico, da TV Globo, levantou os dados junto ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O resultado foi um crescimento de 64,5% nas denúncias e 80,7% de alta nas violações, que são episódios de violência relatados, na relação entre 2022 e 2023. Passada a pandemia e normalizada a livre circulação das pessoas, os resultados reforçaram o sinal de alerta. Agora, no comparativo de 2024 sobre 2023, as violações também subiram mais de 80%, e as religiões com o maior número de casos são umbanda e candomblé.

A repercussão dos casos também cresceu, se misturando ainda com o acirramento do debate político em todo o território brasileiro. Mãe Bernardete, Ialorixá em Simões Filho, foi assassinada em 2023 – à época, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas apontou que ela era a 11ª quilombola morta na Bahia na última década. Antes, no contexto das eleições presidenciais de 2018, Moa do Katendê morreu vítima de agressão num bar após defender o voto no PT contra Bolsonaro. Se o registro fica marcado por violência política, trata-se de um mestre de capoeira que vinha rotineiramente denunciando a intolerância religiosa ao seu redor.

Voltando ao prédio do STF, fica claro que institucionalizar elementos de crenças perseguidas e violentadas age nessa direção, de sinalizar uma preocupação e uma atenção maior em relação a assegurar o direito às diferenças em um país tão grande e tão diverso. Nesse aspecto, A cor da fé, de Rosenilton Silva de Oliveira, presta papel importante ao refletir e conversar sobre a presença da cultura negra não só nos terreiros mas também no ambiente do catolicismo e das igrejas evangélicas. “Ou ainda, nesse debate, é preciso deixar todos os termos em suspenso e observar as várias cores que a fé tem assumido”, conclui o autor em suas considerações finais na obra.

 

Foto: Gustavo Moreno/STF

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