Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante
A cena é familiar. Foi comprar comida, encontrou corredores e mais corredores abarrotados de mercadoria, milhares de produtos geometricamente otimizados sob luz branca. Só precisava de uma fruta. Não venta ou há cheiros, a temperatura é constante e os humanos caminham pelas prateleiras empurrando carrinhos em busca da próxima oferta. Tão cotidiano e prático, tão fácil ignorar a podridão atrás daquelas caixas coloridas e suas promoções impossíveis.
Porém, aqui, não. Apresentamos Donos do mercado, de Victor Matioli e João Peres, livro-reportagem que vai fundo nas contradições desse modelo de consumo de alimentos para definir as lógicas predatórias do supermercadismo, que ostensivamente achata produtores rurais e seus próprios funcionários — repositores, estoquistas, caixas. Os autores definem o conceito logo na introdução da obra:
“Trata-se de um sistema ideológico de valores que influencia outras modalidades de varejo alimentar, como feiras, açougues e mercadinhos, […] que reestrutura um grande conjunto de relações e tem como consequência a exclusão ou o enfraquecimento de pequenos agricultores e fabricantes; a assimetria de poder entre fornecedores e varejistas; a sonegação de direitos trabalhistas e de obrigações fiscais e tributárias; a desigualdade na qualidade do alimento de ricos e pobres; o incentivo ao uso de ingredientes baratos que resultam em produtos inerentemente nocivos à saúde.”
Matioli e Peres iniciaram a apuração com uma pergunta simples: qual porcentagem do setor é controlada por Pão de Açúcar e Carrefour? A resposta: cada um desses conglomerados supermercadistas franceses faturou 16% do total nacional de 2019, abaixo do teto de 20% permitido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Porém, as duas redes se concentram principalmente ao redor das grandes capitais do Sudeste, e é ali que alcançam controle expressivo sobre seus fornecedores.
Na prática, portanto, temos regiões inteiras onde essas duas empresas são efetivamente as únicas compradoras disponíveis para os fabricantes de alimentos, e é assim que chegamos aos fartos exemplos do supermercadismo desregulado destas corporações.
Relacionamento abusivo
Em conversa com a Elefante, Victor Matioli descreve algumas práticas (atenção, pois isso diz respeito diretamente ao seu prato): “O produtor de alface não consegue acessar diretamente um grande supermercado, porque o nível de exigência é altíssimo. Então, vende para um atravessador, que leva ao centro distribuidor local e vende para o próximo atravessador, que vende para um grande distribuidor, que finalmente negocia com uma rede de supermercados”.
De acordo com o coautor de Donos do mercado, “é assim que os supermercados, por conta do seu tamanho e poder econômico, começam a impor condições comerciais terríveis aos fornecedores, cobram taxas e mais taxas, e exigem o chamado ‘enxoval’, que é uma carga doada apenas para começar a relação comercial. É sempre evidente que o grande distribuidor não vai abraçar o prejuízo. Ele passa os custos para o elo de baixo da corrente, que por sua vez passa para o atravessador, que passa para o produtor. No fim das contas, o agricultor, que cuidou durante 45 dias do pé de alface, não tem pra quem repassar o prejuízo, e isso morre com ele ali, no campo”.
Já Rafael de Oliveira, da Coopercentral VR, do Vale do Ribeira, em São Paulo, relata: “Quando o enxoval era pequeno, a gente conseguia diluir. Um supermercado pediu mil caixas de banana como enxoval. Isso dá quarenta mil reais”. E assim mais quarenta arbitrários pilas saíram da cooperativa de banana direto para a conta da multinacional biliardária. Então o estudado leitor se pergunta: Mas que caralhas é um enxoval? Não tem casamento ou bebê e eles querem dinheiro, que relacionamento abusivo é esse?
Simples, tem coisas que só o monopólio — ou duopólio ou oligopólio — faz por você. Taxas arbitrárias são uma delas. Não acredita? Pois leia o livro que verá uma miríade de evidências, documentos e testemunhos que comprovam a cobrança das absurdas taxas de
Administração,
Centralização,
Crescimento,
Enxoval de abertura de loja,
Enxoval para se tornar fornecedor,
Enxoval porque sim,
Promoções,
Quebra.
E os produtores ou arcam com esses custos ou podem bem ir morrer de fome pra lá, porque agora não há mais tantas quitandas ou mercadinhos para regular sua oferta. Enquanto isso, um executivo desfruta seu largo bônus por tão otimizada ideia.
A mesma lógica predatória se desdobra pelos relatos trabalhistas. Matioli, indignado: “As grandes redes não pagam, por exemplo, adicional de insalubridade para os funcionários das câmaras frias. Simplesmente não pagam. A estratégia é deprimente: quem quiser pode processar a empresa depois que sair ou for demitido, e então terá que encarar a pergunta: “Você quer seus vinte mil daqui não sei quantos anos ou dois mil agora?”. Com essa lógica, os supermercados economizam rios em direitos sonegados. É um cálculo estratégico”.
FALEM SOBRE ISSO
Os autores afirmam que quase todos os setores econômicos estão sob vigilância da sociedade de alguma forma: agronegócio, as indústrias de alimentos, farmacêutica, automobilística e têxtil, entre outras, mas os supermercados continuam sendo vistos como plataformas neutras, corporações sem impacto social — ou, pior, como benévolos empreendimentos que trazem alimentos da roça e de além-mar para perto de nossas casas.
Donos do mercado, porém, desnaturaliza essa relação, demonstrando as práticas supermercadistas dessas redes, tão bem representadas por Carrefour e Pão de Açúcar e suas subsidiárias Atacadão, Assaí, Extra — empresas estrangeiras controladas por fundos de investimentos agressivos que do Brasil, claro, querem apenas extrair máximo lucro, e a brasileirada que se moa. É um história muito antiga, tão antiga quanto esta pobre nação.
“Abilio Diniz relata o bullying sofrido na infância, por ser baixinho e gordinho, como um traço fundamental na formação de sua personalidade competitiva. Orgulha-se de ser brigão: na rua, no trânsito, com praticamente todos os diretores que passaram pelo Pão de Açúcar nas décadas em que comandou a empresa. Curiosamente, a corporação criada por ele é agora o valentão do colégio. […] A essa altura, ninguém se assusta com isso. A cultura do medo já está entranhada na carne” — aspas do capítulo seis do livro.
Ainda poderíamos falar muito mais aqui sobre como os supermercados são umbilicalmente ligados ao agronegócio e ao desmatamento provocado pelo boi e pela soja, ou sobre a profusão de alimentos-porcaria ofertados nas gôndolas, restos de indústria moídos com açúcar e/ou farinha em pacotes coloridos, ou sobre a infinidade de técnicas para você comprar o que não precisa, mas já nos falta o papel.
Concluímos então com a constatação de que Donos do mercado se propõe um ponto de partida. Pão de Açúcar e Carrefour são relevantes demais em nosso dia a dia: organizam a produção e distribuição de nossos alimentos vitais, e influenciam até mesmo os índices de inflação. Sua ação predatória exige uma resposta mais alta da sociedade civil, demanda mais jornalismo, mais academia e mais arte, mais resistência, enfim. Eis um bom começo.
Este livro é o primeiro desenvolvido diretamente por nossos parceiros do portal de notícias O Joio e O Trigo, o primeiro projeto de jornalismo brasileiro exclusivamente dedicado a investigar sistemas alimentares, saúde e doenças crônicas. Conheça este maravilhoso trabalho. E, claro, evite alimentos ultraprocessados.