Floresta em pé

Sociólogo propõe reorientação de planos e práticas no desenvolvimento da Amazônia levando em conta a crise do clima e a desigualdade

Por Bianca Tavolari
Publicado na Quatro Cinco Um

 

Para muitos de nós — ouso dizer, para a grande maioria —, Atalaia do Norte não era sequer um nome no nosso grande repositório de palavras que ajudam a apreender a experiência concreta ao fazerem referência a coisas que existem no mundo. Atalaia do Norte não era nem mesmo um ponto no mapa. Qualquer um que se propuser a caminhar pelas ruas da cidade por meio do Google StreetView encontrará um fim de linha. Ainda que seja possível acessar o traçado das quadras e identificar pousadas e igrejas, a visão que se tem é de sobrevoo — como a de um pássaro ou a do próprio satélite —, e não a de alguém que caminha por esquinas ou margeia o rio Javari. Atalaia do Norte, Tabatinga e Benjamin Constant passaram a existir para nós como laços de uma rede de morte e extermínio, com o assassinato brutal do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips e a busca incessante dos indígenas para encontrar seus corpos em algum ponto dessa cartografia.

Pesca ilegal de pirarucu e tartaruga tracajá, caça de animais protegidos entrelaçada ao narcotráfico pulsante na tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia, invasão e ameaça a terras indígenas, desmonte institucional em todos os níveis, garimpo e grilagem enraizados. Bruno e Dom reuniam elementos para contar os mais diferentes imbricamentos dessa história. Parte dela é muito recente. Outra parte é fruto de sucessivas decisões institucionais em torno de um modelo específico de desenvolvimento.

Em Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, Ricardo Abramovay parte do diagnóstico de que “as formas convencionais de crescimento econômico da região (extração predatória de madeira, garimpo ilegal, pecuária e agricultura de grãos) mostram-se não só insuficientes na geração de emprego e renda, mas promotoras de destruição, desigualdades e criminalidade em larga escala”. O sociólogo vai além, apontando que conceber a infraestrutura fundamentalmente a partir de megaprojetos é insuficiente para interromper a devastação e melhorar a qualidade de vida das populações locais.

Se infraestrutura na Amazônia costuma estar associada à devastação e a violações de direitos sem necessariamente acarretar ganhos de eficiência, Abramovay sugere que o próprio conceito deve ser reformulado de cima a baixo para pensar uma economia da floresta em pé. A infraestrutura será “cada vez menos a ossatura e cada vez mais a inteligência do crescimento econômico. Não se trata de oferecer, de forma genérica, os bens públicos para que o setor privado possa expandir suas iniciativas, mas de moldar essas iniciativas em direção a finalidades que envolvem os dois maiores desafios contemporâneos: o avanço da crise climática e o aprofundamento das desigualdades”.

Prioridades coletivas

Abramovay propõe quatro pistas para reorientar planos e práticas. Em primeiro lugar, a própria natureza é infraestrutura. Manter os ecossistemas é decisivo para absorver emissões, atenuar o impacto de enchentes, purificar a água, diminuir índices de poluição, mas também para o melhor aproveitamento de recursos produtivos para a agricultura, para as cadeias de oferta de alimentos e no uso da biodiversidade voltada a fármacos, energia e novos materiais. Em segundo lugar, a economia do cuidado também precisa ser pensada como infraestrutura — sem uma rede pública de cuidado com as pessoas, há total comprometimento de qualquer vida econômica. Em terceiro lugar, investir em infraestrutura é recuperar os usos sustentáveis da sociobiodiversidade florestal, o que significa valorizar os conhecimentos das comunidades locais que há muito desenvolvem seus projetos de vida com a floresta em pé.

Nesse sentido, o autor propõe a criação de uma biblioteca de soluções adaptáveis a cada microrrealidade. Para isso, faz um recenseamento de ações já em curso, em florestas e cidades, que endereçam problemas sociais a partir da articulação entre conhecimentos tradicionais, técnicos e acadêmicos. Todas as iniciativas — das soluções via energia solar, pás eólicas, uso de biomassa e energia cinética para reduzir a alta dependência do óleo diesel (principal fonte de energia das embarcações, como a que levava Bruno e Dom) à organização produtiva de pequenos pescadores com difícil acesso a gelo para conservar peixes — pretendem romper com a dominação de atravessadores predatórios nos elos das diferentes cadeias. A quarta e última pista volta o olhar para infraestruturas imateriais: valorizar organizações, associações e instituições públicas, da sociedade civil e de um mercado não predatório.

Abramovay usa a expressão “desenvolvimento sustentável”, que, para muitos, já tem ares de antiguidade, tendo sido substituída por “economia verde” ou green new deal. Não é apenas questão linguística. “Desenvolvimento sustentável” marca uma arena de disputa por um conceito que pressupõe a compatibilidade entre capitalismo e meio ambiente, excluindo posições mais extremas de ambos os lados. O momento de urgência em que vivemos leva muitos a descartá-la, já que é a própria vida no planeta que está em jogo. Abramovay a mantém, mas ao reorientar inteiramente o significado de infraestrutura, aponta caminhos fecundos para uma virada para ontem das cadeias produtivas, de fornecimento e investimento. O tecido econômico, político e social que levou ao extermínio de Bruno e Dom precisa ser conhecido, denunciado e superado. E que possamos colocar Atalaia do Norte como parte do nosso mapa de prioridades coletivas se ainda for possível nutrir expectativas de futuro.

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