Um fluxo de vida, luta e reprodução
Prefácio de Corpos, territórios e feminismos
Por Raquel Gutiérrez Aguilar
Tradução Joana Salém Vasconcelos
Em certos tempos sociais, aquilo que Thomas Kuhn denominou “ciência normal” se abala, de modo que as certezas e as promessas anteriormente oferecidas se debilitam ou colapsam. São tempos de crise, que se tornam fecundos quando conseguem se abrir à renovação crítica de pensamentos e práticas. Corpos, territórios e feminismos: compilação latino-americana de teorias, metodologias e práticas políticas é justamente um livro que entra com força em diversos debates abertos nas ciências sociais contemporâneas, com o afã de apresentar, de forma organizada, ideias e argumentos para enriquecer a ampla constelação de esforços empregados para romper tal “normalidade”. Trata-se de desafiar a suposta normalidade daquilo que se impõe como realidade devastadora e, simultaneamente, daquilo que se apresenta como limite do pensamento e da imaginação; ou seja, trata-se do anseio de romper esquemas argumentativos, divisões disciplinares rígidas e chaves conceituais que obscurecem e enviesam mais do que revelam e iluminam.
O volume organizado por Delmy Tania Cruz Hernández e Manuel Bayón Jiménez, ambos do Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo, se apresenta como uma síntese parcial relevante e bem executada de um conjunto de aprendizados e de conhecimentos renovados que amadureceu na última década. São três as questões chave que me interessam destacar. Inicialmente, ao longo da primeira parte do livro, as autoras se perguntam sobre uma problemática que está no centro das lutas contemporâneas em defesa dos territórios agredidos pelo capitalismo extrativista e das lutas multiformes contra todas as violências que despedaçam o corpo social: como e por que ocorre a (re)patriarcalização dos territórios, em um contexto de ampliação do conjunto devastador de atividades extrativistas e capitalistas que, atualmente, altera a geografia de todo o continente? Como se reforça e se expande a rígida amálgama triangular entre patriarcado, colonialidade e capitalismo, que constitui a estrutura mais íntima da vida que chamamos de moderna?
As cinco dimensões do que as autoras nomeiam como (re)patriarca-lização dos territórios nos contextos extrativistas — política, econômica, ecológica, cultural e corporal — constituem fértil ferramenta analítica para atravessar e conectar o que, observado por outros postulados, aparece como fragmentário e disperso. A relação e a complexidade da perspectiva proposta pelas autoras nutre o debate e compõe um marco argumentativo capaz de, ao mesmo tempo, evidenciar problemas com uma força renovada e conectar assuntos cuja abordagem separada tende a debilitar as arestas mais afiadas da crítica. O conjunto de contribuições da primeira parte do livro tem como ponto de partida as experiências de espoliação, exploração, expropriação e violência, analisadas nos contextos da Argentina, do México, da Guatemala e do Equador. São situações específicas e distintas entre si, mas que se entrelaçam ao explicarem um padrão. Esse padrão de separações e hierarquizações se condensa na voraz ofensiva capitalista colonialista e patriarcal que habitamos e a que resistimos e subvertemos, ao lado de muitas outras pessoas, por meio da constelação de feminismos que cultivamos.
Na segunda parte do livro, intitulada da “Propostas e aplicações metodológicas”, as autoras nos conduzem, por diferentes perspectivas, a uma cadeia pertinente de reflexões — situadas na Mesoamérica, nos Andes e no Rio da Prata — a respeito das formas de produção de conhecimento consideradas legítimas atualmente. Ao apresentar suas experiências práticas de crítica à separação moderna entre razão e emoção, entre sujeito de conhecimento e objeto de estudo — fundamental na produção acadêmica consagrada —, as autoras se dedicam a documentar seus modos de proceder nos diversos quefazeres, ao mesmo tempo que esmiúçam o aprendizado de sua própria pesquisa. Essa seção me leva a questionar se não seria prolífico compreender o trabalho de pesquisa de forma integral: não apenas como encontro e troca entre sujeitos de conhecimento, mas também (e talvez em primeiro plano) como conhecimento recíproco — e potencial aliança — entre sujeitos de luta. Entender o trabalho de pesquisa sobre as mais álgidas problemáticas contemporâneas como encontro e troca entre sujeitos de luta nos desloca imediatamente do lugar absurdo de neutralidade que certo conhecimento acadêmico pretende ostentar. Contudo, também nos incentiva a assumir a responsabilidade explí-cita e rigorosa sobre a intenção que impulsiona a atividade investiga-tiva. Em minha perspectiva, a reflexão sobre esse tema contribui para a coprodução de horizontes de sentido compartilhado que podem aprender a se tornar comuns ao mesmo tempo que se mantêm distintos. É, assim, um assunto nodal para as conexões e o entrelaça-mento da enorme galáxia de esforços protagonizados por mulheres e homens contra o extrativismo, a exploração e a violência. Essa é uma das intenções deste livro, cuja terceira parte se dedica a abrir o diálogo com quem partilha preocupações comuns, ainda que cultive perspectivas diferentes.
Por essa razão, o livro também se constitui como desafio às posturas e práticas dominantes eminentemente patriarcais e coloniais que estruturam o conhecimento acadêmico. As autoras demonstram disposição ao diálogo e abertura a conversas sobre problemas candentes. Não desejam ser nem se colocam como “teoria rival” em relação a vozes similares, tampouco assumem um posicionamento de estar “competindo” com outros olhares próximos. Ao contrário, trazem uma contribuição organizada ao debate, esforçando-se para nutrir e ampliar o que se sabe.
Disso brota uma terceira chave de leitura, que apresento outra vez em forma de pergunta: as jovens colegas, cujo empenho deu vida a esta obra, não estarão impulsionando uma prática de pesquisa que se dedica a visibilizar-conectar e explicar problemas de grande envergadura e múltiplos sujeitos de luta, no afã de superá-los? Construir explicações rigorosas e gerais para os problemas mais relevantes tem sido a aspiração do conhecimento denominado científico desde que adquiriu tal nome, no século XVII. No entanto, esse conhecimento ficou imediatamente vinculado à expansão do capitalismo colonial e se organizou de maneira ferozmente patriarcal. O corpus teórico marxista canônico também se dedicou a ostentar esse título, convertido na teoria rival da chamada “ciência positiva” durante mais de um século, ainda que comodamente compartilhasse com ela seus respectivos traços patriarcais. Todo esse conhecimento se encontra hoje em crise, e durante algumas décadas se decretou o colapso de qualquer explicação geral do fenômeno social. Entretanto, “chegar a conhecer a razão de algo” não seria agora uma necessidade urgente? Essa não é uma das acepções do termo “explicar”? Sobretudo se esse “algo” condensar a dinâmica reiterada que nos ameaça e nos destrói como espécie? Dar-se conta da (re)patriarcalização capitalista dos territórios e da vida, construir argumentos para compreender o que ocorre e ensaiar explicações que nutram os esforços para subverter e superar essa situação extremada não seriam, por fim, as ações mais fecundas que podemos realizar ao dispor de tempo para pesquisar?
Meu entusiasmo por este livro, cujas autoras generosamente me convidaram a prefaciar, reside finalmente na maneira inovadora com que este trabalho reinstaura a discussão sobre a relação de ser, nitidamente, parte de um fluxo tenaz de lutas que se desdobram em nossos territórios. Com outros, nos sabemos parte de um fluxo de vida, luta e reprodução; também somos parte desse fluxo porque nos sabemos parte dele. Isso significa (re)começar a percorrer um caminho antigo e, ao mesmo tempo, contemporâneo, iluminados pelos feminismos no tempo presente. Agradeço e celebro ser parte desse esforço que deseja se tornar e está se tornando uma torrente.
RAQUEL GUTIÉRREZ AGUILAR é matemática, filósofa, socióloga e ativista mexicana. Pesquisa movimentos indígenas latino-americanos e é professora de sociologia na Benemérita Universidad Autónoma de Puebla. Na década de 1980, acompanhou os levantes dos Aymara e dos Quéchua na Bolívia e foi cofundadora do Ejército Guerrillero Túpac Katari, organização aymara ativa entre 1986 e 1992.
Capa: Wassily Kandinsky (1866–1944)