Ossos humanos ou de animais? Uma das muitas dúvidas em torno do caso conhecido como “massacre de Corumbiara” segue em aberto, vinte anos depois do episódio ocorrido na fazenda Santa Elina, no sul de Rondônia. À época, o bispo de Guajará-Mirim, dom Geraldo Verdier, teve de responder a um inquérito na Polícia Civil, que queria mais informações sobre os restos retirados da cena do crime.
Ao visitar o local, nos dias seguintes às mortes registradas durante reintegração de posse, dom Geraldo encontrou objetos calcinados que se assemelhavam a ossos. Separou-os em duas amostras. Uma, mais numerosa, foi encaminhada às autoridades rondonienses, que encomendaram uma análise ao Departamento de Medicina Legal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista. E outra, menor, enviada ao perito Michel Durigon, professor da Faculdade de Medicina de Paris.
“Vi a longa fila do pessoal que estava sendo atendido pelos médicos, constatei evidentemente o massacre. Acompanhei as famílias que queriam enterrar seus filhos e não puderam porque levaram para Vilhena e enterraram lá. Não houve nenhum respeito aos direitos humanos”, recordou o bispo, hoje com 78 anos, em conversa com o jornalista João Peres, autor de Corumbiara, caso enterrado, primeiro livro-reportagem sobre a história, lançado em julho pela Editora Elefante.
Ao deixar o acampamento, há vinte anos, dom Geraldo deu uma entrevista a repórteres locais manifestando espanto pela cena que havia presenciado. “A perícia vai dizer o que é. Se são ossos humanos ou de animais. Um sinal de barbárie total.” O resultado pericial era importante porque o grupo de sem-terras que ocupou a Santa Elina duvidava dos números oficiais de mortes – doze, sendo nove posseiros, dois policiais e um rapaz não identificado.
Os resultados vindos da Unicamp disseram que, das amostras analisadas, todas eram de bois e porcos. Já Durigon assegurou que “duas das amostras examinadas são com toda certeza de origem humana”.
A cúpula da segurança pública de Rondônia ficou muito irritada pelo fato de existir numa análise paralela à da Unicamp, mas não se comoveu com a informação de que poderia haver um erro grave no trabalho. Em 28 de novembro, o delegado Raimundo Mendes determinou que o bispo fosse interrogado. Uma quinzena antes, dom Geraldo havia escrito uma carta na qual afirmava que sua intenção não fora desmerecer a universidade paulista, de cuja competência não duvidava.
“Por esta razão estou estranhando que em quatro saquinhos contendo a grande maioria das amostras ósseas recolhidas na fazenda Santa Elina se achasse apenas restos de um animal suíno e outro bovino. É muita coincidência o fato de, em apenas nove pedacinhos, eu ter recolhido justamente dois ossos que são de seres humanos e três que podem ser, enquanto não há rastro disso nas amostras muito mais numerosas enviadas à Unicamp”, alfinetou.
Em 30 de novembro, o responsável pelas análises feitas em São Paulo, Fortunato Badan Palhares, escreveu uma carta ao secretário estadual de Segurança Pública de Rondônia, Wanderley Martins Mosini, questionando como era possível que uma amostra não oficial de ossos houvesse saído da fazenda Santa Elina e do país. Ele se queixou de que o caso arranhava a credibilidade de sua universidade.
Em 14 de dezembro, dom Geraldo prestou depoimento à Polícia Civil basicamente com a reiteração do que havia sido dito por escrito. Nem a ideia de puni-lo, nem o pedido por um terceiro exame das ossadas acabariam levados adiante, deixando em aberto mais um capítulo da história. O passar dos anos não foi suficiente para dirimir dúvidas e impor uma versão final dos fatos.