Identidades negras, religiões brasileiras
Em pré-venda no site da Elefante, o livro A cor da fé, escrito pelo antropólogo e professor Rosenilton Silva de Oliveira, mostra como as chamadas religiões de matriz africana, os católicos e os evangélicos constroem, dentro e fora de seus espaços de culto, a noção de “identidade negra”, e como a utilizam para disputar a legitimidade de contar a história do povo negro no Brasil e para postular políticas públicas que beneficiem a população negra.
Fruto de cuidadosa pesquisa antropológica assentada em vasta bibliografia, dados censitários, observação participante (e participação observante) e diálogos diretos com lideranças espirituais, o livro A cor da fé busca analisar de que modo a noção de “identidade negra” é mobilizada no contexto religioso brasileiro.
Uma vez que o movimento negro tem diuturnamente revisitado a história do negro no Brasil, “revelando que a cada mudança no sistema político brasileiro os negros têm sido expropriados de seus valores materiais, sociais e religiosos”, o debate étnico-racial opera também no interior de terreiros e igrejas — e extrapola os espaços de culto, como o autor Rosenilton Silva de Oliveira demonstra neste livro.
O primeiro capítulo analisa esse processo no âmbito das chamadas religiões afro-brasileiras, sobretudo o candomblé e a umbanda. Historicamente perseguidas pelo Estado, não eram sequer consideradas práticas religiosas até meados do século xx; hoje, são tidas pelo poder público como guardiãs por excelência dos símbolos da herança africana no Brasil. O autor observa aí um fenômeno de culturalização dessas religiões: quanto mais os candomblés são “reconhecidos como ‘lócus da cultura negra no Brasil’, menos são vistos como ‘religião’, a ponto de serem reconhecidos oficialmente como ‘povos tradicionais de matrizes africanas’”.
O segundo capítulo, por sua vez, expõe as articulações do movimento negro dentro da Igreja católica, cujas ações são norteadas sobretudo pelo estabelecimento de uma “teologia negra” e de uma “liturgia negra” — esta última expressa principalmente nas missas afro, que incorporam ao rito elementos afro-brasileiros, em estreita relação com o mencionado processo de culturalização dessas religiões. Afinal, “o próprio Estado validou os terreiros como ‘comunidades tradicionais africanas’”, entendendo que sua “‘cultura’ expressa diretamente o ‘ser negro no Brasil’. Uma vez transformadas em ‘cultura’, as religiões afro-brasileiras podem ser inculturadas pelo catolicismo”, o que também abriu caminho para núcleos de diálogo inter-religioso entre representantes das duas crenças.
Por fim, e na contramão desses pontos de contato, o movimento negro evangélico, analisado no último capítulo, busca construir a “identidade negra” por meio de uma dupla ruptura: deseja recuperar as raízes africanas do cristianismo e deseuropeizá-lo e, ao mesmo tempo, reaver as origens dos símbolos da negritude para descandombletizá-los. Rosenilton faz uma breve apresentação histórica do protestantismo brasileiro e das diversas organizações do movimento negro presentes nas muitas denominações evangélicas, cujas ações também investem em uma “teologia negra”, como no cristianismo católico, mas rejeitam qualquer símbolo das religiões afro-brasileiras: o objetivo é considerar as religiões abraâmicas como “de origem africana”.
De todo modo, seja por meio de uma nova exegese bíblica, da patrimonialização dos terreiros ou do surgimento de “liturgias inculturadas”, está em movimento uma militância religiosa que tem assumido a causa racial, debatido a negritude, questionado o mito da democracia racial e se dedicado a promover ações afirmativas para a população negra.