‘Infraestrutura para a Amazônia’: por um modelo sustentável

O Nexo publica trecho de livro do economista Ricardo Abramovay. A obra busca caminhos possíveis para melhorar a qualidade de vida na Amazônia por meio de atividades que promovam o uso sustentável da biodiversidade

Por Ricardo Abramovay
Trechos da introdução de Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, publicado no Nexo

 

Existe uma ampla literatura crítica sobre as infraestruturas representadas pelos megaprojetos na Amazônia. Rodovias, ferrovias, hidrelétricas, dispositivos voltados à exploração de combustíveis fósseis e de minérios são objeto de grande quantidade de estudos mostrando não apenas seus impactos — na maior parte das vezes, destrutivos — e custos exorbitantes mas também sua pouca eficácia em contribuir para a redução da pobreza e das desigualdades e para promover o desenvolvimento efetivo e sustentável das regiões onde são instalados.

Megaprojetos padecem costumeiramente de um viés otimista, que, como mostra o trabalho de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) para o Tribunal de Contas da União (Rajão et al., 2020), faz com que seus proponentes inflem os benefícios e subestimem os custos. Os diversos estudos recentes do Climate Policy Initiative (CPI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) sobre os megaprojetos de infraestrutura na Amazônia revelam, de forma cada vez mais persuasiva, a precariedade de sua preparação e a minimização de sua área de influência — e, consequentemente, de seus impactos indiretos (Bragança & Morais, 2022).

Processos deficientes de consulta junto a atores locais ajudam a explicar por que os projetos se tornam vetores do desmatamento e da implantação de aglomerados populacionais em condições de vida degradantes (Pinto et al., 2018). É abundante a literatura técnica e científica sobre os impactos destrutivos que esses grandes projetos vêm provocando na Amazônia. Felizmente, não são poucos os trabalhos indicando, com base nas demandas de organizações da sociedade civil e inspirados em inúmeros exemplos internacionais, a necessidade e a possibilidade de que os megaprojetos sejam levados adiante sob uma governança territorial que evite suas consequências nefastas.

Mais que isso, são fortes os indícios — vindos tanto dos movimentos sociais como dos investidores privados e das organizações multilaterais de desenvolvimento — de que a era dos megaprojetos na Amazônia se aproxima do fim, não só em virtude de seus impactos socioambientais destrutivos mas pelo crescente questionamento em torno de seus propósitos. Fazer da Amazônia a base logística da produção e da comercialização de commodities agrícolas é um projeto sob franca contestação global. A exigência de rastreamento da qualidade dessa produção vai incorporar, globalmente, os impactos que sobre ela exercem as infraestruturas das quais depende. Não levar tais transformações em conta é planejar uma infraestrutura cujo lugar na oferta brasileira e internacional de bens e serviços será cada vez mais estreito.

A abundância desses trabalhos críticos contrasta com a precariedade dos conhecimentos a respeito das infraestruturas necessárias à emergência de uma forte economia da sociobiodiversidade não só nas florestas mas nas áreas rurais e nas cidades da Amazônia. Ou seja: quando se trata das infraestruturas necessárias à vida das pessoas na Amazônia, especialmente dos grupos mais vulneráveis da população, nas áreas de saúde, educação, mobilidade, conectividade e acesso à energia, ou a suas atividades produtivas vinculadas ao uso sustentável da biodiversidade, os estudos são muito mais raros e, sobretudo, pouco sistematizados. Tal contraste se choca contra a tendência global em redefinir o próprio sentido da infraestrutura para o desenvolvimento contemporâneo. Esse contraste exige o esforço de sistematizar conhecimentos e experiências em torno das infraestruturas das quais dependem não só os povos da floresta mas um conjunto de atividades da agricultura familiar, da produção de commodities e mesmo da organização urbana, e que se apoiem em ciência e tecnologia — e em conhecimentos locais — para valorizar os recursos territoriais e fortalecer os tecidos socioambientais responsáveis pelos serviços ecossistêmicos que a Amazônia presta ao mundo.

Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, portanto, tenta responder à seguinte pergunta: quais as infraestruturas necessárias à melhoria da qualidade de vida na Amazônia e de suas atividades produtivas vinculadas ao uso sustentável da biodiversidade?

A infraestrutura das sociedades contemporâneas será cada vez menos a ossatura e cada vez mais a inteligência do crescimento econômico. Não se trata de oferta privada de forma geral, os bens da forma privada para que o setor possa expandir suas iniciativas, mas de molde a empreender em direção a objetivos maiores que envolvam os dois desafios, o avanço dos bens da crise e o aprofundamento das desigualdades. O que significa que é tão distante e que representa o Brasil que está a ser avançado.

Tão importante quanto as iniciativas voltadas a preencher as necessidades de infraestrutura das populações da Amazônia e de suas atividades econômicas ligadas ao uso sustentável da biodiversidade é a reflexão sobre o próprio sentido dessas infraestruturas e os valores ético-normativos aos quais elas devem obedecer: na discussão brasileira, latino-americana e global sobre a Amazônia, é fundamental redefinir o que se entende por infraestrutura do desenvolvimento sustentável. Essa redefinição, porém, não se limita à Amazônia. É por isso que este estudo começa mostrando que governos, organizações multilaterais, escritórios de arquitetura e engenharia estão redefinindo a infraestrutura a partir das necessidades expostas tanto nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas como no Acordo de Paris, criado em 2015 no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima.

Ao mesmo tempo, este livro constata a distância entre a cultura técnica e organizacional dos responsáveis pelos projetos de infraestrutura e a visão de mundo que emerge das necessidades da luta contra a crise climática, a erosão da biodiversidade e as imensas desigualdades sociais da região. As mudanças na visão contemporânea sobre infraestrutura envolvem quatro dimensões. A primeira é a consideração — especialmente importante para a Amazônia — da natureza como infraestrutura. A segunda é a infraestrutura do cuidado com as pessoas. A terceira refere-se a dispositivos básicos da vida contemporânea, como conexão, mobilidade, saúde, educação, saneamento, mas também a equipamentos que permitam melhorar localmente a qualidade daquilo que se comercializa; cada um desses elementos merece consideração específica, tratando-se de um território dominado pela floresta tropical. A quarta dimensão é imaterial e se compõe não apenas por marcas de qualidade e outras formas de cooperação social mas também pelos dispositivos que se voltam à legalização dos negócios e a habilidades gerenciais que permitam emancipar seus protagonistas das cadeias de dependência pelas quais habitualmente inserem seus produtos nos mercados. Essas quatro dimensões são utilizadas aqui como quadro analítico na tentativa de responder à pergunta sobre a infraestrutura do desenvolvimento sustentável na Amazônia. A ambição não é compor um cenário completo, e sim, antes, ilustrar com exemplos práticos os valores e os princípios que devem reger o desenvolvimento de infraestruturas que não apenas deixem de ser predatórias mas que contribuam para o desenvolvimento da economia da sociobiodiversidade florestal, da agricultura familiar, das cidades e até da produção de commodities agropecuárias.

Nenhum país tem melhores condições que o Brasil de oferecer ao mundo “soluções biológicas para mitigar os efeitos da crise climática”, como diz João Moreira Salles. Tais soluções abrem caminho a um modelo de crescimento econômico baseado na preservação da natureza. Isso significa, como veremos neste livro, que a floresta é a mais importante e promissora infraestrutura para o desenvolvimento sustentável. Como bem demonstra o trabalho de João Moreira Salles (2020), a ocupação da Amazônia — e, desde a chegada dos europeus, do conjunto do território brasileiro — tratou a floresta como obstáculo a ser vencido pelas necessidades do crescimento econômico. Isso deve ser superado

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