Lembrar Dandara, Tereza de Benguela, Aqualtune — e Mãe Bernadete

Por Teresa Cristina

 

As mulheres negras quilombolas têm papel fundamental na preservação da terra e da identidade ancestral negra, há muito invisibilizada e hostilizada. Segundo Mariléa de Almeida, em Devir quilomba, é preciso historicizar suas experiências na contemporaneidade, sem destituí-las da humanidade que lhes cabe. 

A partir dessa leitura é que celebramos Mãe Bernadete. A Ialorixá do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), foi morta a tiros no terreiro da comunidade, na noite do dia 17 de agosto. O terreiro, que é “espaço do sagrado, da ancestralidade, do brincar, espaço do viver”, como defende Mariléa de Almeida, foi maculado pelo racismo, pela violência, pela disputa de terra e pela intolerância religiosa.

Bernadete Pacífico foi executada próxima aos netos, que tinham entre 13 e 22 anos. Viveu defendendo afetos, o que tornava sua existência inestimável, e morreu perto de afetos, o que torna tudo mais desolador. Com toda sorte poética, Mariléa de Almeida define práticas de mulheres negras e quilombolas como a de “afirmar a vida rasurando o poder de morte do racismo”. Uma definição que abraça, sem dúvidas, Mãe Bernadete.

A Ialorixá foi uma defensora do direito à terra, à natureza e à identidade quilombola. Ela denunciava exploradores de madeira ilegal no território do Quilombo Pitanga dos Palmares, localizado em uma Área de Proteção Ambiental (APA), e, assim como muitas mães pretas, lutou bravamente para que se fizesse justiça pelo assassinato do filho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, morto em 2017.

Mãe Bernadete vinha sofrendo ameaças há pelo menos dois anos, e, desde a morte de Binho, estava no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do governo federal. Ainda neste ano, chegou a denunciar, para a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, em um evento em Salvador, as ameaças e violências que ela e o quilombo vinham sofrendo. Reclamou das câmeras instaladas em sua casa e da sensação de vigilância. Nada disso foi suficiente para garantir sua segurança.

Assim como o filho, Mãe Bernadete foi uma importante líder quilombola. No caso dela, não só de sua comunidade, já que a Ialorixá foi dirigente da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e secretária de Promoção da Igualdade Racial do município de Simões Filho, onde morava.

Infelizmente, ela não assistiu à titulação do Quilombo Pitanga dos Palmares. A área foi certificada em 2004, mas o processo segue inconcluso. O território é vítima do que Mariléa de Almeida chama de governabilidade racista: “conjunto de procedimentos, técnicas e saberes que, operando por meio de mecanismos de exclusão, englobam: a burocratização do acesso ao direito territorial, a folclorização das práticas e dos corpos quilombolas e o desamparo social a que essas populações estão submetidas”.

Ainda assim, Mãe Bernadete é prova de como as mulheres e o feminino mudaram o existir quilombola. Dandara, Tereza de Benguela, Aqualtune — e, agora, Mãe Bernadete. “Devir conceito que pressupõe mudança, acrescido da palavra quilomba, evoca as condições históricas que produziram a feminização da ideia de quilombo, possibilitando a visibilidade contemporânea das mulheres quilombolas na luta pela terra”, continua Mariléa.

Em outro trecho, a autora de Devir quilomba escreve: “O feminino torna-se um dos elementos de expressão da ancestralidade quilombola, fazendo a noção de resistência quilombola — concebida em termos de guerra, força e virilidade, atributos relativos ao campo masculino — ganhar novos significados, em torno dos cuidados, da transmissão dos saberes e das relações afetivas que se estabelecem com o território”.

Poucos brasileiros conheceram pessoalmente Mãe Bernadete ou souberam da sua existência em vida, mas, assistindo à comoção posterior a sua morte e tendo contato póstumo com os saberes que ela disseminou, podemos perceber a importância da feminização do quilombo, apontada por Mariléa. As emoções, o cuidado, a natureza, a defesa da terra, e tantos outros componentes ligados ao feminino, existem em sua história de maneira forte e inspiradora.

Todos morremos um pouco com a sua morte — e com a violência que se seguiu ao assassinato, expressa na baixa visibilidade dada ao caso pelos meios de comunicação, na intolerância religiosa e na tentativa covarde de ligá-la a facções criminosas em guerra na Bahia. Apesar disso, ganhamos um pouco mais de vida em saber que ela viveu.

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