Lobby sionista contra Ilan Pappe no Brasil

Reproduzimos abaixo um excerto do prefácio do livro Lobbying for Zionism on Both Sides of the Atlantic, de Ilan Pappe, que publicaremos no Brasil em 2026. Sim, ainda vai demorar para sair. A tradução sequer foi concluída. Por que, então, divulgar esse trecho agora, se acabamos de lançar duas outras obras do autor: Brevíssima história do conflito Israel-Palestina e A maior prisão do mundo: uma história dos territórios ocupados por Israel na Palestina? A vinda do historiador israelense para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) se aproxima — sua conferência ocorrerá na sexta-feira, 1º de agosto —, e com o passar dos dias começamos a sentir os efeitos do lobby sionista sobre as pessoas e instituições que, em parceria conosco, se propuseram a recebê-lo. Nascido em Haifa após a fundação do Estado de Israel, filho de judeus alemães fugidos do Holocausto nazista, Pappe é um profundo estudioso da história de Israel e um dos maiores críticos do sionismo. Sua pesquisa se baseia sobretudo em documentos israelenses. É por meio deles que comprova a limpeza étnica, a colonização, o regime de apartheid e a sanha genocida de Israel contra a Palestina e os palestinos. Talvez por isso tenha se transformado em um imenso estorvo para o establishment israelense — tanto que em 2007 foi expulso da Universidade de Haifa, onde lecionava, devido às suas publicações e à sua solidariedade com a Palestina. Ilan Pappe é persona non grata no próprio país, e o lobby sionista o acompanha pelo mundo todo, com a intenção de boicotá-lo ou, ao menos, restringir as audiências dispostas a ouvi-lo e o impacto do que tem a dizer. No Brasil não está sendo diferente. Há algumas semanas, representantes desse lobby passaram a agir (na surdina, como de costume) para diluir o alcance de suas conferências, e até mesmo para inviabilizá-las. A Flip sofreu pressão de lideranças da comunidade judaica incomodados com a confirmação de Ilan Pappe como autor convidado da programação principal. O Sesc-SP, depois de ter dado como certa a realização de uma grande conferência com Pappe em uma de suas unidades na cidade de São Paulo, em um diálogo iniciado com a Elefante em fevereiro — portanto, com seis meses de antecedência —, na última hora desistiu de recebê-lo alegando “dificuldades de agenda”. Professores da Universidade de São Paulo, onde Ilan Pappe realizará dois eventos nos dias seguintes à Flip, sofreram constrangimentos por se disporem a receber em seus salões um dos maiores historiadores da atualidade em um ato contra o genocídio. O lobby sionista, porém, teve sucesso apenas parcial desta vez. Alguns eventos ocorrerão exatamente como foram planejados, outros sofreram pequenas modificações. Isso porque algumas pessoas cederam, outras resistiram. Graças a estas, e apesar da covardia daquelas, as palestras e os debates vão acontecer — e quem estiver em Paraty e São Paulo conseguirá ver e ouvir esse grande autor. Deixamos aqui nosso profundo agradecimento aos parceiros que colocaram de lado interesses pessoais, peitaram o fascismo e não cederam ao cinismo — palavra que, na língua portuguesa, como bem pontuou um amigo, guarda notável semelhança ortográfica com “sionismo”. Quanto aos que, mesmo a contragosto, compactuam com o lobby israelense e abaixam a cabeça diante da carnificina aberta que acontece em Gaza desde outubro de 2023 (e com a limpeza étnica, o apartheid, a expropriação e tudo o mais que Ilan Pappe e outros pesquisadores e ativistas demonstram acontecer na Palestina desde o início do movimento sionista, no final do século XIX), eles nos ensinam uma lição: os genocídios não são obra apenas dos genocidas, mas uma coautoria dos genocidas e dos que se acovardam diante deles. Lamentavelmente, ainda são muitos entre nós. (Tadeu Breda, editor)

Por Ilan Pappe
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza

Em 2015, alguns dos meus alunos de graduação e colegas mais jovens organizaram na Universidade de Exeter, Inglaterra, uma conferência intitulada “Colonialismo de assentamento na Palestina”. O evento não foi muito divulgado — os participantes foram convidados pessoalmente a mandar artigos. Apenas uma pequena postagem na página da universidade na internet noticiou o evento.

Rapidamente, o lobby sionista exerceu pressão sobre a instituição para cancelar a conferência, alegando que se tratava de um evento antissemita e condenando a cumplicidade dos dirigentes de Exeter. A crítica foi encaminhada pelo conjunto da comunidade anglo-judaica, o Board of Deputies, que, ao lado de outras entidades, começou longas negociações com a universidade. Essas conversar terminaram com um “acordo”, permitindo que dois lobistas pró-Israel participassem da conferência.

Esses dois convidados indesejados não tinham qualquer trabalho acadêmico relevante sobre o colonialismo de assentamento (settler colonialism) — um reconhecido fenômeno global e um campo de estudos que investiga as origens e o legado dos movimentos de colonos que fundaram os Estados Unidos, o Canadá, muitos países da América Latina, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Todos os outros convidados eram acadêmicos conhecidos na área ou pós-graduandos que se dedicavam ao assunto.

O relato do jornal Jewish Chronicle sobre a futura conferência expressou preocupação não apenas com o uso do termo “colonialismo” associado a Israel, mas também com a referência à “Terra de Israel” como “Palestina” — esta, uma entidade que o periódico aparentemente acreditava não existir, pois, bizarramente, afirmava que até os grupos pró-palestinos do campus ficaram felizes com a concessão da universidade em incluir dois representantes do lobby sionista no evento. Claro que o Jewish Chronicle não trouxe nenhum fato ou entrevista que comprovasse tal alegação.

Na ocasião, eu era diretor do Centro Europeu de Estudos Palestinos em Exeter, que ajudou a organizar a conferência, e aprovei o “acordo” que a universidade firmara com os lobistas pró-Israel. Em retrospecto, vejo que agi errado. Eu acreditava que a conferência era importante o suficiente para tolerar a patética presença desses dois lobistas. Além do mais, eu queria manter uma boa relação com a diretoria da Universidade de Exeter, que havia protegido os Estudos Palestinos desde que lançamos o programa, em 2009. Esse programa, hoje, é um reconhecido campo de estudos de pós-graduação na universidade e em muitos outros institutos acadêmicos em todo o mundo.

Pouco tempo antes do surgimento dessa controvérsia, a Universidade de Southampton, também na Inglaterra, havia cedido diante de pressões similares e cancelou um conferência que discutiria a proposta de solução de um Estado para a Questão Palestina. Depois, os artigos que seriam apresentados nessa conferência acabaram saindo em um número especial da principal publicação de estudos pós-coloniais, Interventions, o que serviu de alguma forma para compensar o gosto amargo que ficou depois de nossa derrota temporária sob a pressão do lobby sionista.

Com exceção do drama da polícia de Exeter desnecessariamente ter se mantido a postos para possíveis desordens após muitos anos de calmaria na cidade, a conferência ocorreu de tranquilamente e sem incidentes. Não foi a primeira vez que a Universidade de Exeter decepcionou a polícia local — um ano antes, a English Defence League confundiu nosso Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos com uma mesquita e quis fazer uma manifestação diante do prédio. Mas os poucos ativistas de direita que compareceram ao protesto estavam bêbados demais e ficaram com preguiça de subir a íngreme ladeira da estação de St. David até o campus.

Os dois representantes do lobby sionista não tinham intenção de participar do debate de ideias que estávamos promovendo. Devemos lembrar que eles não tinham a menor noção do tema que seria tratado na conferência (eram os primeiros tempos dos estudos de colonialismo de assentamento). Eles estavam ali para nos monitorar. Não queriam vencer o argumento; queriam silenciá-lo. Essa ação era parte de uma campanha mais ampla feita pelo lobby sionista dos dois lados do Atlântico — ou seja, nos Estados Unidos e no Reino Unido — para suprimir o debate sobre a Palestina e evitar a expansão do campo de Estudos Palestinos, impedindo-o de influenciar o debate público.

Os estudos sobre a Palestina nos últimos anos forneceram uma sólida base acadêmica para os principais argumentos de apoio à legitimidade da nação palestina. O lobby pró-Israel passou então a agir contra esse avanço — e algumas vezes obteve sucesso: pesquisadores perderam o emprego por falarem abertamente a favor da Causa Palestina em seus escritos acadêmicos ou em seu ativismo político, e algumas instituições receberam pedidos de cancelamento de cursos, módulos, oficinas ou conferências, considerados “anti-israelenses”.

Os pesquisadores, com todos os seus defeitos, são artesãos da palavra e em raros casos conseguem se tornar educadores (infelizmente, o sistema universitário ocidental há muito tempo deixou de acreditar na dimensão pedagógica da nossa vocação, pois passou a ser orientado pela doutrina do “publique ou pereça”). Suas palavras — algumas publicadas em revistas acadêmicas que têm mais autores do que leitores — são enfrentadas com todo o poder do lobby pró-Israel no Reino Unido e nos Estados Unidos, como se constituíssem uma ameaça existencial ao Estado judeu. Existe uma equipe ministerial especial em Israel lidando com esses perigosos artesãos da palavra em suas torres de marfim da academia.

O lobby sionista poderia ter ignorado a conferência em Exeter. Essa reunião não tinha o poder de transformar a realidade em Israel e na Palestina; não poderia contribuir para aliviar as imensas dificuldades enfrentadas pelos palestinos. Mas o lobby sionista continua se fazendo presente em assembleias, escolas, igrejas, sinagogas, centros comunitários e campi dos dois lados do Atlântico.

Israel não permite que nenhuma demonstração de solidariedade com os palestinos no Reino Unido e nos Estados Unidos, mesmo se promovida por um único indivíduo, escape de seu radar, e faz todo o possível para forçar a demissão de qualquer pessoa que condenar as violações éticas do Estado judeu, além de combater qualquer organização que propuser boicotes, desinvestimentos e sanções contra o país. O lobby sionista rotula tais atividades de “antissemitas” e as considera equivalentes ao negacionismo do Holocausto.

Em essência, trata-se de um lobby agressivo que começou seu trabalho de defesa política de Israel em meados do século XIX — e que continua até hoje. Não existem muitos países, se é que existe algum outro, que tenta freneticamente convencer o mundo e seus próprios cidadãos de que sua existência é legítima.

Como judeu israelense, conheço em primeira mão o efeito tóxico desse esforço de propaganda — e a inércia que o acompanha. Após um período formativo, em que os fundamentos das instituições são lançados, chega um momento em que a doutrinação dá frutos: pode-se contar com a certeza de que seus cidadãos permanecerão leais à ideologia fundadora, sem que seja necessário coagi-los. Você deixa de se perguntar sobre os danos causados em seu nome: você não pensa mais se aquilo é moral, justificável ou mesmo legal. […]

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