
No decênio decisivo, a urgência de desviar do colapso
A Elefante está lançando uma segunda edição de O decênio decisivo, de Luiz Marques, numa versão ampliada e com um novo prefácio do autor. Essa entrevista reproduzida abaixo foi concedida a Antonio Barros, do Carbono, site ligado ao Instituto de Letras da UFRGS e que trata de capitalismo, cultura e clima. A conversa passa pelos principais temas da longa pesquisa e também das reflexões do livro, que aponta que o atual momento é o mais crucial da nossa história como espécie. Sobrou para a gente: vamos decidir as chances de sobrevivência do projeto humano.
Por Antonio Barros
Publicado em Carbono
O seu livro O decênio decisivo lança um importante alerta sobre as consequências da degradação ecológica produzida pelo capitalismo em suas diferentes facetas (agronegócio, combustíveis fósseis etc.). Muitos desses alertas já haviam soado em seu livro anterior, Capitalismo e colapso ambiental, cuja primeira edição é de 2015. Olhando para o intervalo entre a publicação dos dois livros, quais processos de degradação ambiental você considera que se agravaram? E houve avanços em alguma área, no sentido da mitigação das mudanças climáticas nesse ínterim?
No último decênio, todos os processos da degradação ambiental planetária, sem exceção, não apenas se agravaram muito, mas se aceleraram. Tomemos apenas dois casos, entre tantos: o clima e os incêndios florestais. Em 2015, o aquecimento médio superficial global, terrestre e marítimo combinados, atingiu pela primeira vez na história dos registros instrumentais 1oC acima do período pré-industrial (1850-1900). Foi necessário mais de um século para que o aquecimento atingisse, enfim, essa marca já tão alarmante. Mas nos 10 anos sucessivos a 2015, ele saltou de 1oC para 1,5 oC, segundo a Organização Meteorológica Mundial, ou para 1,6 oC segundo o Copernicus, a agência europeia do clima. Os anos 2023 e 2024 são os mais quentes não apenas dos dois últimos séculos, mas dos últimos 120 mil anos. Segundo o National Oceanic and Atmospheric administration (NOAA), a taxa de aquecimento nos 30 anos anteriores a 2015 (1986-2015) era de 0,17oC por década. Essa taxa saltou para 0,24oC por década nos últimos 30 anos (1995-2024). E a partir daí, entre 2016 e 2024, a taxa de aquecimento deu um salto ainda maior, passando a 0,29oC por década. Trata-se, como se vê, de uma aceleração imensa.
No ritmo atual de aceleração do aquecimento (hoje, em torno de 0,3oC por década), o planeta deve atingir um aquecimento médio global de 2 oC acima do período pré-industrial entre 2035 e 2040. E há virtual certeza de que isso ocorrerá, em todo caso, antes de 2050, haja vista o fracasso espetacular da Convenção-Quadro do Clima das Nações Unidas (1992) e do Acordo de Paris de 2015 (COP21), ou seja, dos compromissos nacionais de diminuir as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa. O mesmo ocorre com os incêndios florestais nas florestas boreais, temperadas e tropicais. No caso do Brasil, o gráfico abaixo mostra como, a partir de 2016, os incêndios, em geral criminosos e causados pelo agronegócio, ganham um peso maior na perda de área nas florestas primárias entre 2002 e 2022.
Em 2024, os incêndios florestais se alastraram por mais de 300 mil km2, segundo a plataforma Monitor do Fogo, do MapBiomas, um aumento de 79% em relação ao ano de 2023 e três em cada quatro hectares queimados (73%) foram de vegetação nativa. Essa participação maior dos incêndios em florestas primárias brasileiras a partir de 2016, em relação ao período 2002-2015, está associada a três fatores que agem em sinergia: o aquecimento global e regional combinado com as secas e a El Niños potencialmente mais fortes, fatores que aumentam a vulnerabilidade e a inflamabilidade das florestas; a degradação do tecido florestal que aumenta os efeitos de borda e a insolação dos solos da floresta; e a ofensiva sempre mais destrutiva e impune do agronegócio, protegido pelo desmonte da governança ambiental brasileira, sobretudo durante os governos de Temer e de Bolsonaro.
O decênio decisivo, porém, não é apenas um livro que compila os dados do agravamento das mudanças climáticas; ele é também uma espécie de programa de ações para a próxima década. Quais são os maiores obstáculos para a concretização das “Propostas para uma política de sobrevivência”, tal como você as denomina em seu livro? E como a eleição de Trump e o endosso dos magnatas do Vale do Silício em torno da agenda devastadora do presidente dos EUA podem afetar essas políticas de sobrevivência?
Os interesses econômicos que controlam os sistemas de dominação política e militar são, obviamente, o primeiro e maior obstáculo. As corporações e os Estados nacionais bloqueiam ideologicamente e, caso necessário, pela força qualquer mudança social que conteste a engrenagem expansiva, extrativa, destrutiva e autodestrutiva que os controla e da qual dependem existencialmente. Os interesses econômicos, contudo, jamais poderiam prevalecer a longo prazo sem o concurso de três fatores:
– O engano e autoengano de setores dominantes nas redes, na mídia e na Universidade, que ainda acreditam na falácia da transição energética e, em geral, na compatibilidade entre o capitalismo globalizado de nossos dias e a possiblidade de atenuar o processo atual de colapso.
– O anacronismo de setores hegemônicos da esquerda, que resistem em reconhecer plenamente a urgência e a centralidade da questão ambiental em nossos dias. O peso desse anacronismo explica, ao menos em parte, a diminuição da capacidade mobilizadora da esquerda.
– A perda de confiança das próprias sociedades contemporâneas em sua capacidade de se desviar de sua trajetória de colapso por meio de uma ruptura civilizacional. É preciso, portanto, antes de mais nada, voltarmos a acreditar em nós próprios como agentes coletivos de uma transformação socioambiental radical.
Em 2023, Lula culpou os países ricos pela crise climática. Embora seja, de fato, verdade que os países ricos emitem mais gases do efeito estufa per capita, o Brasil tem uma responsabilidade grande na crise climática, devido ao manejo do solo e desflorestação, algo que seu livro mostra em dados. Como você enxerga o gerenciamento da questão climática do ponto de vista das políticas nacionais? Você acha que o Brasil pode exercer um protagonismo maior nesse assunto?
A palavra protagonismo não me parece a melhor, já que nenhum país pode se arrogar a pretensão de liderar o processo de transformação global. Mas, com certeza, o Brasil pode exercer uma função muito mais importante na luta pela atenuação e desaceleração do colapso socioambiental. Para isso, é preciso, antes de mais nada, que o governo Lula e a sociedade brasileira entendam que o agronegócio é o nosso inimigo público número 1, em termos econômicos, sociais, ambientais, alimentares, sanitários, ideológicos, políticos, morais, em suma, em todas as dimensões da vida social e da vida de milhões de outras espécies. O modelo agroexportador é a mais perigosa doença que acomete o Brasil. O agronegócio destrói nossa manta vegetal nativa a uma velocidade que caracteriza claramente ecocídio.
No que se refere ao clima, o Sistema de Estimativas de Gases de Efeito Estufa (SEEG) mostra que cerca de 75% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa provêm do desmatamento e da agropecuária. Muitos são os que já compreenderam essas evidências, mas os governantes e a maioria dos governados no Brasil persistem em acreditar que é possível um agronegócio “sustentável”, o que é um absoluto contrassenso, pois toda monocultura é, por definição, ecocida e insustentável. A frente ampla democrática forjada por Lula em 2022 foi capaz de derrotar Bolsonaro, salvando o Brasil de um cenário ainda mais catastrófico. Por esse feito, Lula tem a gratidão profunda de nosso país. Mas Lula orientou seus dois primeiros mandatos (2003-2010) e continua orientando este terceiro (2023-2026) em função dos interesses do agronegócio e da “maldição do petróleo” em que o Brasil está agora afundando, tal como uma vítima tragicamente arrastada à dependência de uma droga que mata.
Andreas Malm, em A destruição da Palestina é a destruição do planeta, aventa que o genocídio palestino na verdade tem origem no projeto sionista do século XIX, que nada mais era do que um projeto imperialista e de expansão comercial que só se tornou possível graças ao uso do carvão no motor a vapor. Em sua recente palestra proferida a convite do Instituto de Letras da UFRGS, você esboçou um argumento segundo o qual está em curso, no Brasil e no mundo, um ecocídio. Existe uma relação direta entre o genocídio e a catástrofe climática, na sua opinião, correto? Você poderia desenvolver melhor esse argumento?
O genocídio foi formalmente definido e tipificado apenas em 1948 (ONU, Resolução 260). Já o termo ecocídio emerge apenas nos anos 1970 e tão somente em 2021 o Painel de Especialistas Independentes para a Definição Legal de Ecocídio elaborou uma descrição juridicamente formal do ecocídio nestes termos: “ecocídio significa atos ilegais ou irresponsáveis cometidos com conhecimento de que há uma probabilidade substancial de danos graves, generalizados ou duradouros, ao meio ambiente, causados por esses atos”. Ocorre que todo ecocídio é uma forma de genocídio, pois um território é um amálgama de sua diversidade civilizacional e biológica, bem como de seus padrões climáticos, e nenhuma sociedade pode sobreviver sem a base geofísica e biológica da qual ela depende existencialmente. De modo geral, ontem e hoje, as guerras que objetivam ou redundam em genocídio são também guerras de extermínio da natureza. E vice-versa.
Nos Estados Unidos, o genocídio dos indígenas por parte dos colonizadores europeus envolveu o quase extermínio dos bisontes que povoavam as grandes pradarias (Great Plains) desse país e que constituíam um elemento essencial dos ecossistemas e dos modos de vida de seus habitantes. No Brasil, essa interação entre genocídio e ecocídio se intensificou ainda mais a partir da guerra contra a natureza e contra os povos da floresta desencadeada pelos ditadores, sobretudo, desde 1970, com a abertura da Transamazônica. Enquanto a floresta era devastada a ferro e a fogo, Maurício Rangel Reis, Ministro do Interior do General Ernesto Geisel entre 1974 e 1979, declarava em janeiro de 1976: “Os índios não podem impedir a passagem do progresso. […] Dentro de 10 a 20 anos não haverá mais índios no Brasil”. O mesmo ocorre, enfim, no genocídio palestino que ocorre agora à luz do dia, com a cumplicidade ativa dos Estados Unidos e da União Europeia. Ao perpetrar esse genocídio monstruoso na Faixa de Gaza, as forças armadas de Israel estão perpetrando ao mesmo tempo um ecocídio, pois suas bombas não destroem apenas vidas humanas; elas destroem todas as formas de vida e, sobretudo, criam um território inabitável para todos, inclusive para os israelenses. O solo de Gaza está hoje profundamente contaminado pelas bombas incendiárias à base de fósforo branco e por inúmeras outras substâncias tóxicas que emanarão para todo o país.
Quando se pensa em aquecimento global, fala-se mais sobre a queima de combustíveis fósseis e menos sobre a agricultura predatória. Porém, a segurança alimentar é um tema presente em ambos os seus livros. Inclusive, atualmente a alta no preço dos alimentos já suplanta as reposições salariais, pressionando a inflação entre os mais pobres. Como a questão da produção de alimentos está diretamente ligada ao aquecimento global?
O EDGAR (Emission Database for Global Atmospheric Research) afirma que “um terço das emissões antropogênicas de GEE provém dos sistemas alimentares”. Francesco Tubiello e colegas publicaram um artigo em 2021 na revista Environmental Research Letters, confirmando essa estimativa. O sistema alimentar globalizado é o segundo fator mais importante na desestabilização do sistema climático, atrás apenas da queima de combustíveis fósseis. Mas, sobretudo, esse sistema, baseado no modelo agroexportador é, de longe, o principal fator na aniquilação em curso da biosfera em escala global e em particular no Brasil. E essa aniquilação representa, em termos morais e mesmo existenciais, um mal ainda maior do que o aquecimento, pois a extinção de uma espécie é uma perda irreparável.
Por fim, em seu livro, fica absolutamente clara a importância da Amazônia no regime de chuvas no Brasil central. Contudo, aparentemente os dados científicos reunidos não conseguem ainda formar uma consciência ativa de preservação ambiental que possa bloquear os interesses comerciais do agronegócio e do garimpo na região. Na sua opinião, o que tem impedido a certeza científica de penetrar mais decisivamente na mentalidade das pessoas?
É importante entender que a passividade da sociedade diante de sua rápida inviabilização não reflete um negacionismo coletivo. Diversas e recorrentes pesquisas de opinião pública, no Brasil e em outros países, mostram que os indagados, em sua maioria, não apenas identificam o caráter antropogênico dos impactos e das ameaças ambientais que se avolumam, mas demandam ações políticas efetivas no sentido de mitigá-las. Retornamos sempre ao mesmo problema levantado acima, qual seja, a incipiência de uma ação política cientificamente informada e engajada na atenuação e na desaceleração do processo em curso de colapso socioambiental. Essa é a luta central, eu diria mesmo quase exclusiva, de nossos dias. Estamos transitando para um aquecimento médio global de 3 oC no terceiro quarto do século XXI, aumentando enormemente os riscos de um aquecimento desenfreado, impulsionado por pontos de não retorno e por diversas alças de retroalimentação do próprio aquecimento. Toda tentativa de tergiversar sobre essa situação extremamente grave e sem precedentes na história de nossa jovem espécie é uma forma de negacionismo, a ser combatido pela demonstração da evidência, de modo sereno, mas com toda a energia e engenho de que formos capazes.