O império fóssil em ação na Palestina

Por Andreas Malm
Trecho de A destruição da Palestina é a destruição do planeta

 

Há momentos específicos de articulação entre a destruição da Palestina e a destruição do planeta? Por momentos de articulação, entendo pontos em que um processo impacta e forma o outro, em uma causalidade recíproca, uma dialética de determinação. Minha resposta é sim, de fato, tais momentos de articulação têm se concatenado em uma sequência bastante rigorosa por quase dois séculos. Por ser um aficionado em história, voltarei ao momento em que tudo começou: 1840. Os eventos daquele ano têm sido uma obsessão perene para mim. Eu os tenho mencionado aqui e ali, mas ainda não escrevi um relato coerente a respeito deles. Comecei essa pesquisa há onze anos, na reta final do meu doutorado, quando escrevi Fossil Capital [Capital fóssil],[i] e percebi que o tema exigia um estudo próprio, uma sequência com o título de Fossil Empire [Império fóssil]. Nas últimas semanas, retornei mais uma vez a esse momento da história com o objetivo de desenvolver uma análise a partir da perspectiva de longa duração[ii] sobre o império fóssil na Palestina.

O ano de 1840 foi crucial para a história do Oriente Médio e do sistema climático, pois marcou a primeira vez que o Império Britânico empregou navios a vapor em uma grande campanha militar. A energia a vapor foi a tecnologia por meio da qual a dependência de combustíveis fósseis teve início: os motores a vapor funcionavam com carvão, e foi sua difusão pelas indústrias da Grã-Bretanha que transformou aquela nação na primeira economia fóssil do mundo. Mas a energia a vapor nunca teria deixado sua marca no clima se tivesse ficado apenas nas Ilhas Britânicas. Foi só ao exportá-la para o resto do globo, lançando a humanidade em uma espiral de combustão fóssil em larga escala que a Grã-Bretanha mudou o destino deste planeta: a globalização da energia a vapor foi uma faísca necessária. A chave para essa faísca, por sua vez, foi o uso de navios a vapor em guerras. Foi projetando violência que a Grã-Bretanha integrou outros países na estranha economia que havia criado — por meio da transformação, poderíamos dizer, do capital fóssil em império fóssil.

Naquele momento, a Grã-Bretanha era o maior império que o mundo já tinha visto, construído com base na supremacia naval, até então fundamentada na tradicional força motriz do vento. Nos anos 1820, porém, a Marinha Real começou a considerar a propulsão a vapor — ou seja, a queima de carvão em vez de navegação com o vento, uma vez que o vento, apesar de ser uma fonte “renovável”, como chamaríamos hoje, inesgotável, barata, gratuita de fato, tem limitações bem conhecidas. Os capitães não podiam contar que ele soprasse como desejavam. No campo de batalha, os navios a vela podiam ser retidos pela calmaria, ou afastados de seus alvos por rajadas e tempestades na direção errada, ou conseguiam apenas avançar lentamente. Caprichos do vento podiam dar ao inimigo oportunidades de fuga, reagrupamento, contra-ataque. Em ações militares, quando a mobilização de energia era necessária com mais urgência, o vento não era uma força confiável.

O vapor obedecia a outra lógica; derivava sua força de uma fonte de energia que não tinha relação com as condições meteorológicas, ventos, correntes, ondas, marés: o carvão vinha de um estoque subterrâneo, um legado da fotossíntese com centenas de milhões de anos; e, uma vez trazido à superfície, podia ser queimado no lugar e na hora em que o proprietário exigisse. A força de ataque de um navio a vapor podia ser convocada a qualquer momento. Uma frota dessas embarcações poderia ser organizada exatamente como os capitães desejassem — canhões apontados, tropas desembarcadas, inimigos perseguidos, independente de como o vento soprasse. Essas liberdades foram particularmente enfatizadas pelo almirante Charles Napier, o defensor mais enérgico dos navios a vapor na Marinha Real, que as resumiu de forma incisiva: “O motor a vapor torna o vento sempre favorável”, ou: “O motor a vapor obteve um domínio tão completo sobre os elementos que me parece que agora possuímos tudo o que era necessário para tornar a guerra marítima perfeita”.[iii] A conquista dos elementos foi, em última análise, uma função do perfil espaço-temporal dos combustíveis fósseis: como estavam apartados do espaço e do tempo da superfície da Terra, prometiam libertar o império das coordenadas segundo as quais os barcos haviam navegado desde tempos imemoriais.

A primeira vez que Napier teve a oportunidade colocar esse aperfeiçoamento em prática foi em 1840, nas costas do Líbano e da Palestina. Naquele ano, a Grã-Bretanha entrou em guerra contra Muhammad Ali. Ali era o paxá do Egito, nominalmente a serviço do Império Otomano, mas na prática o governante de seu próprio reino, que, na época, estava em estado de guerra com o sultão. As forças de Ali haviam se espalhado a partir do Egito e conquistado o Hejaz e o Levante, e formaram um protoimpério árabe, em rota de colisão com a Sublime Porta e com Londres. A ascensão de Ali ameaçava derrubar o Império Otomano, cuja estabilidade e integridade, naquele momento, a Grã-Bretanha considerava um ativo estratégico contra a Rússia. Se o Império Otomano se dissolvesse, a Rússia poderia se expandir para o sul e o leste em direção à colônia real da Índia. Portanto, Londres desejava apoiá-lo. A Grã-Bretanha foi levada a intervir contra Ali, digamos, pela rivalidade entre impérios, assim como — e não menos importante — pela dinâmica do desenvolvimento capitalista dentro da própria Grã-Bretanha. A indústria do algodão era sua ponta de lança, mas na década de 1830 ela havia avançado tanto em relação a todos os outros ramos que estava sofrendo com uma crise de superprodução: montanhas grandes demais de fio de algodão e de tecido saíam das fábricas. A demanda era insuficiente para absorver toda a produção.

A Grã-Bretanha, portanto, estava desesperada por mercados de exportação; e, em 1838, felizmente, o Império Otomano concordou com um tratado de livre comércio absurdamente vantajoso, conhecido como Tratado de Balta Liman, que abriria os territórios sob controle do sultão para exportações britânicas essencialmente ilimitadas. O problema, no entanto, era que um número cada vez maior desses territórios estava passando a ser controlado por Muhammad Ali, que seguia uma política econômica oposta: substituição de importações. Ele construiu suas próprias fábricas de algodão no Egito. No final da década de 1830, elas haviam se tornado a maior indústria do ramo fora da Europa e dos Estados Unidos. O paxá não queria saber do livre comércio britânico. Por isso, instituiu tarifas, monopólios e outras barreiras protecionistas em torno de sua indústria de algodão e a promoveu de forma tão eficaz que ela passou a ter condições de incursionar em mercados antes dominados pela Grã-Bretanha, tão distantes quanto a própria Índia.

A Grã-Bretanha odiou a situação. E ninguém odiou mais do que lorde Palmerston, o secretário de Relações Exteriores e principal arquiteto do Império Britânico em meados do século XIX. Ele dizia: “A melhor coisa que Muhammad poderia fazer seria destruir todas as suas manufaturas e jogar suas máquinas no Nilo”.[iv] Palmerston e o resto do governo britânico consideraram a recusa de Ali em aceitar o Tratado de Balta Liman como casus belli. O livre comércio tinha que ser imposto ao paxá e a todas as terras árabes que ele governava. Caso contrário, a indústria de algodão britânica permaneceria sufocada, sem os pontos de venda necessários para continuar se expandindo, potencialmente ainda mais sufocada por esse arrivista egípcio. Lorde Palmerston não escondeu os princípios de sua política externa. “Era dever do governo abrir novos canais para o comércio do país”; seu “grande objetivo” em “cada canto do mundo” era abrir terras para o comércio, e por isso era seu compromisso uma confrontação total com Ali.[v] O lorde ficou obcecado com “a questão oriental”. “De minha parte, odeio Muhammad Ali, a quem considero nada mais do que um bárbaro arrogante”, escreveu Palmerston em 1839. “Considero sua suposta civilização no Egito a mais pura farsa”.[vi] Londres se tornou mais beligerante a cada mês. “Saiba”, advertiu ao paxá o cônsul-geral em Alexandria, “que está no poder da Inglaterra pulverizá-los”.[vii] “Devemos agir de uma vez, rápido e bem”, aconselhou lorde Ponsonby, o embaixador britânico em Istambul; e “todo o vacilante edifício do que é ridiculamente chamado de ‘nacionalidade árabe’ desmoronará”.[viii] Com tais palavras ecoando pelos corredores de Whitehall, lorde Palmerston ordenou que a Marinha Real reunisse seus melhores navios a vapor. No final do verão de 1840, um esquadrão de ponta partiu sob o comando de Napier em direção a Beirute.

 

Notas

 

[i] Andreas Malm. Fossil Capital: The Rise of Steam Power and the Roots of Global Warming. Londres: Verso, 2016.

[ii] O conceito de long durée foi introduzido pelo historiador francês Fernand Braudel e utilizado pela escola dos Annales, e que diz respeito a priorizar estruturas históricas de longo prazo e evolução lenta, em contraposição a uma visão dita tradicional, que se ocupa de eventos mais pontuais. [N.T.]

[iii] Charles Naiper, The Navy: Its Past and Present State. Londres: John & Daniel A. Darling, 1851, p. 48. Incluo a seguir apenas um mínimo de referências, sobretudo das fontes de citações diretas.

[iv] F. S. Rodkey, “Colonel Campbell’s Report on Egypt in 1840, with Lord Palmerston’s Comments”, Cambridge Historical Journal, v. 3, n. 1, 1929, p. 112.

[v] Hansard. House of Commons, v. 49, p. 1391-2, 6 ago. 1839.

[vi] Lorde Palmerston citado em Charles K. Webster, The Foreign Policy of Palmerston, 1830-41: Britain, the Liberal Movement and the Eastern Question. Londres: Bell, 1951, p. 629.

[vii] Coronel Hodges citado em William Holt Yates, The Modern History and Condition of Egypt, Its Climate, Diseases and Capabilities; Exhibited in a Personal Narrative of Travels in That Country, v. 1. Londres: Smith, Elder & Co., 1843, p. 428. Grifos do original.

[viii] Lorde Ponsonby citado em August von Jochmus, “Constantinople 22 March 1846: Secret Memorandum on the Syrian War of 1840-1841”, Broadlands Archive, 22 mar. 1846, mm/sy/1-3.

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