O nascimento de Israel e a morte do sionismo. Entrevista com Ilan Pappe

 

A Elefante está lançando Brevíssima história do conflito Israel-Palestina, de Ilan Pappe, que marca a chegada do autor à casa (outros livros virão em breve). Como o nome diz, trata-se de um relato sucinto, direto, que pretende tornar a situação desse pedaço do Oriente Médio compreensível para qualquer pessoa contrária à opressão e à injustiça. A entrevista abaixo foi realizada pelo podcast Big Picture, do portal Middle East Eye, e publicada em novembro de 2024, justamente por ocasião do lançamento da edição em inglês do livro. Transcrevemos e traduzimos a maior parte do papo, que tem mais de uma hora, no qual Ilan Pappe sintetiza suas principais ideias.

 

Por Mohamed Hassan
Publicado em The Big Picture
Tradução & edição: Paulo Silva Junior

 

Ilan, você passou a maior parte de sua carreira documentando a história de Israel e da Palestina. O que você está procurando? Há algo que te levou a analisar a região com tantos detalhes, com tanta veracidade?

O principal impulso é desafiar a fabricação de narrativas e a injustiça que, na minha opinião, estão interligadas, e desafiar a forma como a história da Palestina ainda é ensinada, contada, pela mídia, pela academia, pelo establishment político, especialmente no Norte Global, mas também em alguns países do Sul. A narrativa é um fator importante na contínua opressão dos palestinos. E, portanto, acredito que desafiar a narrativa dominante sobre o que aconteceu há 70 anos e sobre o que aconteceu há um ano é uma parte importante da luta para ajudar os palestinos a recuperar a liberdade, a independência e a autodeterminação. Espero que, ao estabelecer uma infraestrutura verdadeira para a reivindicação e a história dos palestinos, mais pessoas sejam convencidas de que a luta palestina é justa e precisa ser apoiada. Como sabemos, se você ouvir a mídia convencional, a versão histórica que eles contam imuniza Israel, proporciona a Israel uma posição excepcional pela qual pode praticar a limpeza étnica — hoje em dia, até genocídio se transformou em “legítima defesa” de um Estado democrático contra “terroristas”. Muitas dessas descrições estão ancoradas em uma determinada versão histórica do que é Israel e quem são os palestinos. É isso que busco desconstruir.

E você diz que nós precisamos mudar a forma como falamos sobre Israel e Palestina, que não há sentido em falar em paz, quando na realidade precisamos falar sobre descolonização. Olhar para Israel através de uma lente colonial nos ajuda a entender melhor sua história? De que forma?

Bem, na verdade, olhamos para Israel através da lente do colonialismo de assentamento, que é uma versão do colonialismo. E se entendermos bem o conceito de colonialismo de povoamento podemos talvez entender o que motiva Israel hoje em suas políticas genocidas em Gaza. Trata-se de um movimento de judeus europeus que foram excluídos da Europa. A Europa não os quis. Mas eles ainda queriam fazer parte da Europa. Assim, quiseram construir uma nova Europa fora da Europa. Mas frequentemente escolheram países onde já vivia gente, ou seja, onde havia uma população nativa. Como diz Patrick Wolfe, grande acadêmico do colonialismo de assentamento, no momento em que esses colonos encontraram população nativa, uma lógica de eliminação do nativo foi promulgada ou ativada. E isso também é verdade sobre o sionismo. Existem alguns nobres motivos ou impulsos por trás da ideia do sionismo. Os judeus da Europa Central e do Leste certamente estavam enfrentando um novo surto do antissemitismo no século XIX que eventualmente levou ao genocídio de judeus nos meados dos anos 1920, na década de 1930 e início dos anos 1940. Então, eu diria que foi um movimento genuíno, a parte genuína na tentativa dos judeus em toda a Europa de tentar enfrentar uma ameaça existencial.

Mas, no momento que decidiram — e muitos de seus aliados ou aqueles que se tornaram seus aliados por diferentes razões — que a melhor maneira de lidar com o antissemitismo na Europa era estabelecer os judeus na Palestina à custa dos palestinos, o sionismo, de um projeto destinado a salvar judeus, se tornou um projeto de colonialismo de assentamento. Essa lógica que acabei de mencionar, da eliminação do nativo, é o que podemos ver em ação agora na Faixa de Gaza. Muito claramente. Há sempre o desejo de assumir o controle do espaço, da geografia, do território, do país. Tanto quanto for possível. É o que o sionismo tentou fazer desde que os primeiros colonos chegaram à Palestina, no final do século XIX. E sempre que você conquista mais território, você tem mais população nativa da qual você deseja se livrar. Nos últimos 120 anos, o sionismo fez o que podia para conquistar o máximo possível da Palestina e deixar o mínimo possível de palestinos nela. Os meios mudaram, é claro, de acordo com as circunstâncias históricas e com o nível de resistência palestina ou de quem quer que tenha vindo ajudar os palestinos. Mas essa é ainda a lógica, o DNA, do Estado de Israel quando se trata de enfrentar presença demográfica dos palestinos. Mesmo antes de um palestino estar envolvido em um ato de resistência, eles são vistos por Israel como um problema. E isso é muito típico dos movimentos coloniais, como os que estabeleceram os Estados Unidos, onde houve um genocídio dos nativos americanos antes da instalação de uma democracia moderna.

Eu cresci na Nova Zelândia, que é também outro estado de colonialismo de assentamento. E o elo comum é o Reino Unido. O Reino Unido, assim como os Estados Unidos, gosta de ver seu papel em Israel como salvador de judeus europeus perseguidos. Mas você também mostra em Brevíssima história do conflito Israel-Palestina que havia outros interesses mais egoístas, motivos pelos quais o Ocidente apoiou um estado no Oriente Médio que foi modelado essencialmente como um lugar para judeus europeus. Quais eram esses interesses? Por que os primeiros líderes sionistas judeus encontraram esses aliados no Reino Unido e nos Estados Unidos?

Sim, a ideia de um Estado judeu serviu a diferentes interesses. Alguns desses interesses até se contradiziam com outros, mas ainda compartilhavam a visão de um Estado judeu como um ativo que serviria a eles no futuro. Assim, um grupo importante era uma corrente específica dentro do evangelicalismo cristão, que eram sionistas antes dos judeus se tornarem sionistas no século XVII, já desenvolvendo essas ideias. E a ideia era que “o retorno dos judeus à Palestina” era a vontade de Deus e parte de um plano divino que eventualmente levaria à ressurreição dos mortos. Iria trazer de volta o Messias, que é Jesus Cristo, e começar uma nova era do governo de Cristo no mundo. Eles genuinamente acreditavam nisso, e todos nós respeitamos a fé e as ideias religiosas. E entre eles, havia algumas pessoas poderosas que eram políticos ou membros importantes do sistema judicial e da elite financeira dos Estados Unidos. Assim, esse foi um grupo que ajudou o sionismo.

O outro grupo era um grupo de capitalistas, como os membros da família Rothschild, que, sendo judeus, acreditavam que os projetos econômicos na Palestina poderiam beneficiar seus negócios. Um terceiro grupo eram os imperialistas britânicos. Temos que lembrar que o sionismo surge como ideia quando a Palestina ainda faz parte do Império Otomano. Assim, você pode imaginar um Estado judeu na Palestina, mas isso não está sob seu controle. E esses imperialistas britânicos queriam muito que a Palestina, e o resto do Mediterrâneo Oriental, fizessem parte do Império Britânico. Assim, eles também engajaram com o sionismo.

E o último grupo é formado por aristocratas anglo-judeus no Reino Unido que estavam preocupados com o aumento do antissemitismo na Europa Central e do Leste empurrando judeus para o Reino Unido — judeus que eram pobres, que poderiam aderir a algumas ideologias mais radicais ou revolucionárias. E eles juntaram forças com pessoas como lorde Balfour, o secretário de Relações Exteriores britânico, na tentativa de desviar o fluxo de judeus que, entendendo que a Rússia não era um lugar seguro, devido aos pogroms, emigrasse para o Reino Unido. O sionismo procurava redirecioná-los para a Palestina.

Então esta foi a primeira ampla aliança sionista. Claro, mais tarde, os mais importantes membros da aliança foram os Estados Unidos. Mas isso não começa com os Estados Unidos, temos que lembrar.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tentaram limitar a imigração judaica para o seu território.

Exatamente. Eu acho que nos Estados unidos muitas pessoas não percebem, mas é verdade que Washington apoiou o estabelecimento de um Estado judeu após a resolução da Assembleia Geral da ONU, adotada em 29 de novembro de 1947. E quando Israel declarou-se como um Estado em 15 de maio de 1948, os Estados Unidos reconheceram Israel. Mas eles fizeram isso ao mesmo tempo em que a União Soviética. Era assim. Muito mais a ver com essa política da Guerra Fria. E ainda havia muitos americanos importantes entre 1948 e eu diria que até o final da década de 1950 que não estavam entusiasmados com a ideia de Israel. E eles eram importantes. É por isso que Israel e a comunidade judaica estabeleceram muito cedo um lobby muito poderoso e eficaz nos Estados Unidos.

Você destaca que, curiosamente, 1948 foi um ano de eleições nos Estados Unidos, vencidas por Harry Truman. Mas antes disso os Estados Unidos tentaram implementar, ou pelo menos sugerir, uma tutela internacional sobre a Palestina. E então você disse que houve influência, houve pressão do lobby de Israel na época.

Absolutamente. O Departamento de Estado dos Estados Unidos foi muito lógico. Alegou que o plano de paz das Nações Unidas produziu a guerra entre palestinos e sionistas. E eles já sabiam que Israel (ou o que se tornaria o Estado de Israel) tinha dado início à limpeza étnica dos palestinos. Então eles sugeriram duas coisas. Uma opção era continuar as negociações, pois não viam lógica em impor uma solução que os palestinos não aceitavam. Eles disseram: vamos continuar negociando por mais cinco anos e encontrar uma solução que também seja aceitável para os palestinos, não apenas para o lado judeu. Em segundo lugar, o que é muito importante, eles produziram um documento no Departamento de Estado que vislumbrava um Estado democrático para todos — o que é inimaginável se pensarmos nos Estados Unidos de hoje. Um Estado democrático único para todos é a melhor solução para a Questão Palestina. E sim, você está certo, 1948 era um ano de eleições, e o outro candidato, Dewey, entendeu que esse era um ponto fraco na administração, e ele apoiou totalmente a ideia de um Estado judeu. E isso, junto com uma pressão muito agressiva sobre Truman, o levou a se retratar, ou forçar o Departamento de Estado a se retratar. Se você ler a autobiografia de Harry Truman, a descrição de como ele era agressivo se aproximando do representante da comunidade judaica sionista nos Estados Unidos, você pode ver o quanto ele achava a criação do Estado de Israel abominável. Mesmo assim, como político, ele decidiu concordar.

E falando sobre os sionistas cristãos e o movimento evangélico, o quão influentes eles são sobre as políticas pró-Israel dos Estados Unidos? Estava falando com a ativista judaico-americana Simone Zimmerman e ela levantou o ponto de que, quando falamos sobre o sionismo, a maioria dos sionistas no mundo não é judia, é cristã. E isso também me faz pensar sobre a maneira como muitas pessoas não consideram o conflito Israel-Palestina como um conflito religioso. E há um aspecto disso. É claro que é religioso, mas as pessoas não falam sobre isso da perspectiva cristã.

Sim, com certeza. Como eu disse, em primeiro lugar, isso começa pelo fato de que o sionismo foi primeiramente um projeto cristão evangélico, antes de se tornar um projeto judaico. Então é até um projeto mais antigo, a ideia de restaurar os judeus à Palestina. E definitivamente há uma conexão entre suas percepções de um Armagedom ou um cenário de Apocalipse e a percepção judaico-messiânica dessa visão. Sim, eu acho que eles têm algo em comum. E não é apenas baseado na religião, é baseado no sentimento do famoso choque de civilizações (de Samuel Huntington), que você tem o mundo civilizado lutando contra o mundo não civilizado — que é principalmente árabe, islâmico e de outras crenças que não são ocidentais. E eu acho que tudo isso ofusca o fato de que o problema na Palestina nunca foi a religião. O problema na Palestina, como descrevemos, infelizmente foi muito simples, de certa forma. É um grupo de colonos com uma ideologia cujo principal impulso era desapropriar as pessoas nativas, um projeto de deslocamento e substituição que recebeu o apoio do Ocidente pelas razões que acabamos de mencionar. E os palestinos resistem a este projeto. Eles não estão interessados nos judeus como judeus. Eles não estão interessados em cristãos como cristãos. Os palestinos são cristãos e muçulmanos — e costumavam ser judeus também. Como qualquer outro povo, eles não concordam com a ideia de que devem ser deslocados e desapropriados de sua terra. Então, resistiram.

Agora, aqui e ali, é claro, a religião desempenha um papel, até quando as pessoas acreditam que talvez alguma identificação mais religiosa com a resistência poderia deixar o povo mais perto da libertação. Mas temos que analisar a história do Movimento Nacional Palestino. Por exemplo, para começar, era muito secular. A esquerda palestina era muito poderosa, mas não alcançou a libertação. Então, se os grupos políticos islâmicos estão continuando a luta, e o resto desistiu da luta, os palestinos vão dar suporte a esses grupos. Isso não significa que todo mundo concorde com tudo que o grupo político islâmico defende. Mas é aí que a religião entra em cena, como algo muito importante para as pessoas, e que pode ser político se outras forças políticas não estiverem fazendo seu trabalho. De maneira semelhante, mas de forma muito contrária em Israel, o sionismo foi um movimento muito secular, mas não estava conseguindo levar a cabo o projeto de assumir o controle total da Palestina e desapropriar os palestinos.

Agora você tem pessoas que dizem, “ah, se a gente for mais religioso, nós iremos concluir o projeto”, ou seja, se livrar de todos os palestinos e criar um Estado judeu do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Então, apesar de a religião ser um fator importante, o problema principal não era a religião. Na verdade, o problema central era o tipo de religião que tínhamos na Palestina antes de 1948, que coexistia com três grupos religiosos diferentes. Coexistiram e encontraram uma maneira de viver juntos no mesmo mundo, na mesma civilização. Isso foi interrompido por um movimento secular apoiado pelo imperialismo ocidental. E muitos de nós acreditamos que, na realidade, recriar essa convivência religiosa é a única maneira de seguir em frente, como meu grande amigo Ussama Makdisi escreveu em um livro brilhante chamado A estrutura ecumênica, que analisa essa coexistência antes da chegada do sionismo, não apenas na Palestina, mas também em outras partes do Mediterrâneo Oriental, para vê-lo como um modelo para o futuro.

E isso também me lembra das memórias do professor Avi Shlaim. Quando fala sobre sua criação como judeu árabe, ele faz questão de afirmar que acredita que os judeus árabes — o povo judeu que tem origem em lugares como Iraque, Marrocos, Egito e Iêmen — possam ser uma visão para integrar Israel na região em oposição aos judeus europeus. E quando se trata do aspecto do colonizador, esses colonos que você descreve acabaram chegando antes de 1948, no final do século XIX. Quem são essas pessoas? Em que eles acreditavam? Para que é que eles chegaram à Palestina?

Primeiramente, sobre os judeus árabes, espero que Avi Shlaim esteja certo. Porque essa comunidade foi “desarabizada” de cima para baixo e é mais racista contra os árabes muçulmanos do que qualquer outra seção da sociedade israelense. Bem, devemos esperar que ele esteja certo, que eles possam retornar às suas raízes. E não é surpreendente que os judeus que viviam no mundo árabe ou no Norte da África jamais tenham pensado na ideia de um Estado judeu. Não houve nenhum impulso, entre os judeus que viviam nesses países, aderir ao sionismo. O sionismo foi trazido a eles por Israel, pelos judeus europeus. Agora, quanto aos colonos, como em qualquer projeto de colonização, você tem o núcleo ideológico, mas depois você tem muitas pessoas que são apenas imigrantes que seguem em frente. Depois entendem que, ao se inserir na ideologia, eles obtêm ainda mais benefícios, mais privilégios. Meus pais são um bom exemplo disso. As pessoas estavam imigrando por causa do antissemitismo, porque outros lugares estavam fechados. Estados Unidos, Reino Unido e Austrália não estavam abrindo as portas para judeus, nem mesmo durante o Holocausto. Mas os judeus que chegavam não são os mesmos que decidiram o destino do país. Eles eram liderados por quem chegou entre 1905 e 1920, um grupo ideológico muito radical, que definia os objetivos do movimento sionista naquela época.

E o objetivo era muito claro: você precisava conquistar o máximo possível da Palestina, com o menor número possível de palestinos. Isso permitiria, ironicamente, que o Estado judeu também fosse uma democracia. Eles até tinham algumas tendências socialistas. E, nesse ponto, eles ainda consideravam os judeus no mundo árabe como árabes. Não havia planos de trazer judeus do mundo árabe na década de 1920, quando esse grupo efetivamente estabeleceu o que mais tarde se tornou o Estado de Israel. Devido ao Holocausto e ao fato de os membros da comunidade judaica anglo-americana não terem emigrado em grande número para Israel, eles direcionaram sua atenção para as comunidades judaicas no mundo árabe e no Norte da África. E de uma forma muito intrigante, como Avi descreve em seu livro, no caso do Iraque, os empurrou em direção a Israel.

Isso parece uma pergunta simples, mas acho que é algo que sempre tentei entender. Os ideólogos, os colonos, a própria noção de sionismo… Por que se luta por um Estado judeu? Por que um Estado-nação? Que propósito isso dá para as pessoas judias que viveram por milênios em diferentes partes do mundo e do Oriente Médio? Por quê?

Quando o sionismo surgiu na Europa, ele respondeu a dois impulsos. Um é a maneira de lidar com o antissemitismo; o outro era a noção de que os judeus são muito tradicionais e muito religiosos, e apenas a modernização dos judeus diminuiria o antissemitismo e ofereceria um futuro melhor para o povo judeu. Isso transformou o judaísmo não apenas em um movimento nacional, mas num movimento nacional romântico.

De várias formas, o nacionalismo foi a base do novo antissemitismo na Europa: o nacionalismo romântico alemão, italiano, austríaco, francês, que estava no cerne da ideia de que a Europa moderna não queria os judeus depois de anos eliminando o antissemitismo antigo da Igreja católica. Essa ideia era muito atraente para os primeiros sionistas. Eles também se viam como um movimento nacional romântico, mas precisavam do Estado, de um país onde esse Estado pudesse ser construído. Isso fez parte do DNA do sionismo desde o início: se você acredita que um “judeu moderno” é a melhor forma de lidar com o antissemitismo, então o judeu moderno precisa de um Estado, precisa fazer parte de um movimento nacional romântico, precisa estar na terra ancestral desse movimento.

Todas essas ideias românticas lembram o nacionalismo alemão, italiano, um tipo de nacionalismo de direita que acredita que houve um período dourado no passado que você tem que recriar, o período ariano no caso da Alemanha, o Império Romano no caso da Itália. Nós conhecemos isso de outros lugares do mundo. E isso significava realmente uma fusão de ideias bíblicas com ideias modernas seculares. Mas não funciona. O que eles não levaram em conta foi o fato de que os judeus seculares tomaram o Antigo Testamento e o transformou num livro histórico-político. Funcionou por um tempo. Mas os judeus que são realmente religiosos disseram: espera um pouco, esses judeus seculares não são realmente judeus nesse aspecto.

O texto bíblico não trata apenas do direito dos judeus de herdar a Terra Santa. Também trata de leis. Trata do domínio público, da relação entre homens e mulheres. Todo o tipo de sistema judicial que tem que ser imposto se você realmente quer ressuscitar o antigo Reino de Israel. Eu não sei o quanto você está familiarizado com o Antigo Testamento, mas todo profeta que aparece no Antigo Testamento tem a mesma mensagem para os israelitas ou povo de Judá. E a mensagem é a seguinte: uma vez que você não é suficientemente piedoso na forma como está mantendo suas obrigações religiosas, uma catástrofe vai acontecer com você muito em breve. Catástrofe geralmente significava a ocupação por um dos…

Uma Nakba.

Exatamente. Uma espécie de Nakba, uma Nakba repetida, isso está sempre ligado à falta de comportamento moral e religioso da sociedade. E eles também acreditam nisso agora. Então voltando a essa questão, é o nacionalismo romântico que tornou o Estado sagrado para o judaísmo. E agora aqueles que estão no poder ou que estão ascendendo ao poder em Israel dizem: um Estado, sim, mas não uma democracia; queremos uma teocracia judaica. Esse é o Estado que é o objetivo final do sionismo. Mas, claro, a melhor coisa para o judaísmo, na minha opinião, é realmente voltar no tempo e, se for possível, redefinir o judaísmo como religião, e não como nacionalismo. E esquecer o Estado. Os judeus têm muito mais a contribuir para o mundo como um povo sem Estado, ao invés de pessoas com um Estado. E o judaísmo é uma religião monoteísta, não é um movimento nacional. Eu acho que qualquer deterioração na situação em Israel aumenta o retorno dos judeus às identidades coletivas pré-estabelecidas, que é melhor para eles e eu acho que é muito melhor para as suas sociedades. Pense no Iraque e no Marrocos. Quão trágico é o sionismo para esses dois países? Eles perderam a comunidade judaica que contribuiu imensamente para a cultura e a economia desses dois países. E os judeus tornaram-se refugiados lá. E eles fazem parte do projeto de desapropriar os palestinos de suas terras. Então, são três coisas terríveis que aconteceram como resultado do sionismo. Isso era totalmente alienígena para os judeus no mundo árabe, onde o judaísmo era uma religião, não um nacionalismo.

E essa ideia de um único Estado, que é o que muitas pessoas pró-Palestina têm defendido. A ideia de ter um único Estado onde judeus e palestinos sejam iguais. Isso foi rejeitado pela maioria das pessoas de ambos os lados. Mas recentemente estamos começando a ouvir essa linguagem da direita israelense sobre a ideia de um único Estado e sobre a ideia da expulsão dos palestinos para se dirigir para uma espécie de Solução Final. Você acha que é isso que se pretende? Está vendo acontecer hoje?

Não, acho que o que temos aqui é algo diferente. Já existe um único Estado na Palestina e esse Estado chama-se Israel. É esse Estado que governa os palestinos com diferentes sistemas legais: um para o Cisjordânia, um para a Faixa de Gaza, um para Jerusalém, um para dentro de Israel propriamente dito. E toda a conversa para mim não é sobre um ou dois Estados; a conversa é sobre uma mudança de regime. Permitiremos que o atual regime continue — um regime de apartheid, limpeza étnica e genocídio —, ou estamos nos esforçando para substitui-lo por outra coisa? Essa é a primeira pergunta. Minha resposta é, sim, estamos lutando para substituir um regime de apartheid por um regime democrático.

Segunda pergunta: quem deve conduzir o caminho para a transformação? O mundo diz que qualquer solução deve ser liderada por Israel, por causa do desequilíbrio de forças. Essa foi a lógica do processo de paz até agora. Eu digo que não. A lógica é que o movimento de libertação palestino deve liderar o caminho para a mudança de regime e oferecer a alternativa a esse regime. E eles devem dizer como eles enxergam os milhões de judeus israelenses nesse novo regime. Eles veem isso como “uma pessoa, um voto”, e então não importa se você é judeu, muçulmano ou cristão? Ou gostariam de respeitar, como fazem no Mediterrâneo Oriental, um certo coletivo judaico etnocultural? Ou talvez eles até estejam dispostos a oferecer aos judeus um Estado binacional? Eu não vou entrar nessa discussão. Tenho minhas próprias opiniões. Mas não é esse o ponto. O ponto é: quem entre os palestinos vai liderar esse debate? E neste momento não há uma liderança ou uma organização palestina que possa fazê-lo. Só podemos esperar que essa liderança e essa organização apareça muito em breve.

O consenso internacional, por mais falho que seja, tem apoiado a ideia de dois Estados. E agora você está ouvindo vozes, não apenas em Israel, mas na direita estadunidense, que estão defendendo um único Estado — que deve ser judeu. David Friedman, ex-embaixador estadunidense em Israel, publicou um livro chamado Um Estado judaico, no qual defende uma relação com os palestinos similar à que os Estados Unidos têm com os porto-riquenhos, que estão tecnicamente sob o guarda-chuva de Washington, mas não gozam todos os direitos dos estadunidenses — não votam, por exemplo. Você se preocupa com a direção que o debate tomou, sendo que antes se costumava falar em “processo de paz”?

Não, não estou preocupado, porque o processo nunca foi um processo de paz. Estou interessado em analisar o processo de descolonização que já começou — e que vai ter sucesso. Não me importo com o que David Friedman está escrevendo. Não é relevante para o progresso da história. Pode colocar obstáculos no caminho para a libertação da Palestina, mas não irá deter a libertação ou a descolonização da Palestina. A Palestina será descolonizada — isso é um fato que as pessoas precisam entender. A questão não é “se”, mas “quando”. E “quando” é muito importante. Porque, quanto mais a descolonização demora, mais palestinos sofrem. Estamos agora no meio de um processo histórico que já começou. E você pode atrasar a desintegração de Israel, você pode atrasar a descolonização, mas você não terá sucesso em detê-la. E, de fato, em benefício de todos, tanto judeus como palestinos, dedicar-se à conversa certa é o que realmente importa. E a conversa de dois Estados não é a conversa certa. Talvez houvesse períodos da história em que pudesse ter sido útil. Mas a conversa de dois Estados está levando a uma única direção: a perpetuação da realidade atual. Não irá deter a limpeza étnica na Palestina nem as políticas genocidas de Israel. Não permitirá o retorno de um único refugiado sequer. Não respeitará o direito palestino à autodeterminação. Então, qual é o ponto de oferecer apoio para uma alternativa que propõe apenas continuar o regime de apartheid atual?

Quando as pessoas me perguntam, “Você prevê alguma mudança na política dos Estados Unidos para a Palestina?”, tenho de admitir que não, pelo menos num futuro próximo. Mas eu digo que não é para isso que estou trabalhando. Estou trabalhando para persuadir os estadunidenses a sair do Oriente Médio, o que beneficiará todos que lá vivem. O legado dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial é muito negativo. O que me preocupa é que o movimento nacional palestino não explore este momento histórico para desenvolver uma visão clara de uma proposta de solução com a qual todos podemos nos reunir, nos inspirar, e fazer o nosso trabalho para que isso aconteça. Mas não podemos fazê-lo se ainda houver líderes palestinos falando sobre a solução de dois Estados, se ainda houver fragmentação, desunião. Mas estou otimista. Acho que vai acontecer. E então seria muito mais fácil construir um processo mais pacífico e mais rápido de descolonização da Palestina.

Você escreve em Brevíssima história do conflito Israel-Palestina sobre a Faixa de Gaza, que é uma invenção de Israel. Pode me falar sobre isso?

Gaza até 1948 era uma pequena cidade, mas um local muito próspero, aliás, onde judeus, muçulmanos e cristãos viviam em paz. E era uma espécie de capital de distrito para a área ao redor dela. Sua localização na Via Maris, a estrada que ligava o Egito à Turquia, significava que era muito cosmopolita. Muitas pessoas de diferentes culturas passaram por ali. E essa foi sua existência orgânica. Israel criou a Faixa — que engloba a Cidade de Gaza, mas não se limita a ela — porque tinha um problema com centenas de milhares de refugiados, pessoas que os israelenses expulsaram do centro e sul da Palestina. Os palestinos que durante a Nakba viviam no norte do país foram expulsos pela fronteira até Líbano, Síria, e alguns para o centro da Cisjordânia. Mas o Egito não abriu a fronteira na Península do Sinai e, portanto, Israel decidiu, por assim dizer, ceder uma área naquele local para transformá-lo em um grande campo de refugiados, pois essas pessoas não estavam autorizadas a entrar no Egito. Então eles os empurraram para esta faixa de terra, e assim foi criada a Faixa de Gaza, como uma entidade geopolítica, solução para o desejo demográfico de Israel de reduzir o número de palestinos com os quais que eles têm de lidar diretamente. Ou que possam ser forçados a conceder-lhes cidadania, e cujas terras e casas invejavam. Então é isso, a Faixa de Gaza foi criada como um megacampo de refugiados e, quando começou a resistir, na década de 1990, tornou-se uma megaprisão, um gueto. E agora, claro, é um campo de morte, de políticas genocidas. Israel usou o 7 de outubro de 2023 como pretexto para atualizar sua ação — ou sua solução — para a Faixa de Gaza.

Estamos vivendo um momento decisivo e é difícil prever o que vem a seguir, mas é definitivamente o momento mais catastrófico para os palestinos e para os israelenses desde 1948. E a partir disso, neste momento, você fala sobre a ideia de descolonização. Quais são os primeiros passos? Para onde você vê a situação caminhando?

Eu acho que nós temos que distinguir dois processos. Um já está acontecendo, e este é o início da desintegração de Israel. Há problemas enormes e fundamentais que Israel não será capaz de resolver, o que pode levar a todos os tipos de cenários. Claro, não posso saber exatamente como irá se desenrolar, mas, conhecendo a história, sabemos que existem várias maneiras pelas quais os países se tornam Estados falidos. E temos exemplos próximos, Síria, Líbia, Iêmen; o Líbano está chegando lá e o Iraque não está livre desse perigo. Então, a desintegração dos Estados geralmente é um processo muito violento, onde se perde o controle de grandes extensões de terras, como aconteceu com a Síria. Israel já está com dificuldades para controlar a fronteira norte e a Cisjordânia. É claro, usará os mesmos métodos que usou na Faixa de Gaza, se sentir que está realmente perdendo o controle. Mas é também autodestruição.

O segundo processo é: alguém é capaz de preencher o vazio? Porque, se você não preencher o vazio, o caos, como você pode ver na Síria… Isso pode levar trinta, quarenta anos, a menos que o movimento nacional palestino e a comunidade internacional apareçam e digam: espera aí, temos um cenário diferente aqui, isso não está funcionando. Precisamos de um Estado democrático, não sei, binacional… Neste momento, essa não é a questão. A questão, como eu disse, é o tipo de solução a ser proposta e quem está propondo essa solução, bem como o momento em que a região e a comunidade internacional estariam dispostas a se engajar nessa solução. Os palestinos devem ser o povo que determina o futuro na Palestina, em conversa com os judeus israelenses, sem dúvida. Os palestinos devem deixar de ser secundários para se tornar os atores principais.

Deixando de ser o problema para ser a solução.

Exatamente. Os palestinos devem transformar a descolonização, não apenas num processo de desconstrução e destruição, mas sim de construção.

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