O poder e a sabedoria do corpo
Por Silvia Federici
Introdução de Além da pele
Além da pele foi originalmente concebido como resposta a questões que surgiram nas três conferências que fiz no Instituto de Estudos Integrais da Califórnia no inverno de 2015, sobre o significado do corpo e da política corporal no movimento feminista dos anos 1970 e no meu próprio trabalho teórico. Essas conferências tiveram múltiplos propósitos: enfatizar a contribuição do feminismo da década de 1970 para uma teoria do corpo, agora tão subestimada pelas novas gerações de feministas; reconhecer, ao mesmo tempo, sua própria incapacidade de conceber estratégias que pudessem transformar significativamente as condições materiais da vida das mulheres; e apresentar o arcabouço que desenvolvi em Calibã e a bruxa, de modo a examinar as raízes das formas de exploração às quais as mulheres têm sido submetidas ao longo da história da sociedade capitalista.
Nesse sentido, minha apresentação foi uma forma de repensar as lições aprendidas no passado. No entanto, as discussões que se seguiram às conferências suscitaram questões que ultrapassaram esse arcabouço original, convencendo-me a ampliar o horizonte das minhas conferências e deste livro. Quatro perguntas se destacaram como essenciais para este volume. Em primeiro lugar: “mulheres” ainda é uma categoria necessária para a política feminista, considerando a diversidade de histórias e experiências que esse rótulo abarca, ou devemos descartá-la, como propuseram Judith Butler e outras teóricas pós-estruturalistas? De forma mais ampla, devemos rejeitar qualquer identidade política como inevitavelmente fictícia e optar por unidades construídas com base em fundamentos puramente oposicionistas? Como devemos avaliar as novas tecnologias reprodutivas que prometem reestruturar nossa aptidão física e reconstruir nosso corpo para que se adapte melhor a nossos desejos? Será que essas tecnologias fortalecem o controle que temos sobre nosso corpo ou o transformam em objeto de experimentação e de lucro a serviço do mercado capitalista e da profissão médica?
O livro está organizado em torno dessas questões, com exceção da primeira parte, que é uma preparação para elas, uma vez que meu objetivo implícito é demonstrar que o movimento feminista dos anos 1970 deve ser avaliado principalmente com base nas estratégias que adotou, e não por sua perspectiva marcada pelo gênero. Nesse sentido, a posição que defendi difere significativamente das teóricas da “performance”, que têm se mostrado mais propensas a criticar o movimento de libertação das mulheres da década de 1970 por sua suposta política identitária do que pelas estratégias políticas reais que colocou em prática.
Desenvolvidas no início dos anos 1990 — numa época em que o feminismo passava por uma grande crise devido ao impacto de uma absorção institucional, à entrada das mulheres em cargos dominados por homens e a uma reestruturação econômica que exigia uma força de trabalho mais fluida no que diz respeito ao gênero —, teorias pós-estruturalistas que postulavam que corpo e gênero são produto de práticas discursivas e performativas eram sem dúvida atraentes, e continuam a ser, para muitas pessoas. Mas deve ficar claro que, se descartarmos “mulheres” como categoria analítica/política, o mesmo deveria acontecer com “feminismo”, uma vez que é difícil imaginar um movimento de oposição se não houver uma experiência comum de injustiça e abuso. De fato, os empregadores, assim como os tribunais, rapidamente passaram a tirar proveito da reivindicação feminista quanto a uma diversidade irredutível entre as mulheres, negando o status de certificação de classe para funcionárias de empresas (como o Walmart) que denunciam a discriminação baseada no gênero, e obrigando-as, em vez disso, a registrar suas reclamações individualmente. E o mais importante: podemos certamente imaginar experiências como a maternidade, a criação de filhos e a subordinação social aos homens como constituintes de um terreno comum de luta para as mulheres, mesmo que nesse terreno possam se desenvolver estratégias contrastantes? Identidades alternativas, tais como gay, trans e queer, estão menos sujeitas à fragmentação com base em classe, raça, origem étnica e idade.
Escrevo estas palavras depois de ver as imagens incríveis vindas das ruas de Buenos Aires e de outras partes da Argentina, onde há vários anos centenas de milhares de mulheres têm se reunido para combater — apesar de suas diversidades e, muitas vezes, de seus desacordos — a violência contra as mulheres e o endividamento das mulheres, e para lutar pelo direito ao aborto, tomando decisões coletivas que transformam o que significa ser mulher. O que seriam essas lutas sem o reconhecimento da “mulher” como sujeito político, como uma identidade que é claramente contestada, mas também constantemente redefinida de formas importantes para a construção de uma visão de mundo que nos esforçamos em criar?
É esse o argumento que desenvolvi na segunda parte do livro, na qual proponho que a negação de uma possibilidade de identificação social ou política é um caminho para a derrota. É uma negação de solidariedade entre os vivos e com os mortos, e é imaginar povos sem história. Outro pensamento que ajuda a ver as coisas com clareza é que cada conceito geral é construído na presença de grandes diferenças. Se considerarmos a diversidade um elemento excludente, não podemos falar com mais segurança sobre amor, educação e morte do que podemos falar de mulheres, homens [cis] e pessoas trans. Sabemos, por exemplo, que o amor na Grécia e na Roma antigas era muito diferente do amor vivido no século XX na Europa ou nos Estados Unidos, ou do amor vivido em um contexto poligâmico. Isso não nos impede de utilizar esse conceito e muitos outros construídos de forma semelhante, pois, sem isso, teríamos de nos limitar ao silêncio.
A segunda parte também examina o que pode ser definido como um novo movimento de reconstrução do corpo, no qual tanto as inovações tecnológicas quanto a profissão médica exercem um papel importante. No caso, meu objetivo é mais enfatizar o que está em jogo e advertir contra os perigos implícitos do que criticar as práticas envolvidas. As reconstruções do corpo são muito diferentes, passando por cirurgia plástica, barriga de aluguel e redesignação de gênero. Mas o que paira de maneira significativa em cada um desses casos são o poder e o prestígio que os especialistas médicos ganharam com as mudanças de vida que prometem. Essa dependência de uma instituição que tem uma longa história de cooperação com o capital e o Estado deveria nos preocupar. Deveríamos recorrer à história para nos orientarmos nesse contexto.
Na terceira parte, incluí artigos que discutem o papel da medicina e da psicologia no processo de organização e disciplinamento de trabalhadores da indústria e mulheres, estas últimas como sujeitos do trabalho reprodutivo. A terceira parte também analisa as discussões, incipientes na era Reagan, sobre o tipo de mão de obra necessário para o trabalho em novos ambientes tecnológicos e locais extraterrestres. O sonho capitalista, representado em “Mórmons no espaço”, de um trabalhador ascético, capaz de superar a inércia de um corpo construído ao longo de milhões de anos para funcionar, por exemplo, em colônias espaciais, é hoje elucidativo, pois o desenvolvimento capital da inteligência artificial exige novas habilidades e uma remodelação das subjetividades. Atualmente, a expressão concreta desse sonho é a instalação de microchips em nosso cérebro; os que tiverem condições de adquiri-los poderão aumentar suas capacidades e se libertar de passaportes e chaves. Entretanto, já são abundantes as visões de um tempo em que indivíduos seletos certamente funcionarão como mentes puras, capazes de armazenar grandes quantidades de memória e pensar a uma grande velocidade, lendo, por exemplo, um livro em meia hora. Enquanto isso, a experimentação com o desmembramento e a recombinação de nosso corpo também está avançando a um ritmo acelerado na direção de um mundo no qual a clonagem, a edição e a transferência de genes — já realizada com animais — farão parte do processo médico/científico, supostamente permitindo que um futuro mundo capitalista produza não apenas mercadorias inanimadas, mas novas formas de vida humanas.
Nesse contexto, reivindicar nosso corpo e nossa capacidade de decidir sobre nossa realidade corporal começa por afirmar o poder e a sabedoria do corpo tal como o conhecemos, uma vez que ele se formou durante um longo período, em constante interação com o planeta Terra, de maneiras que se modificaram trazendo grande risco para nosso bem-estar. “Em louvor ao corpo que dança”, artigo da quarta parte que conclui o livro, escrito depois de eu ter assistido a um espetáculo de dança criado pela coreógrafa Daria Fain, sobre o surgimento da consciência e da linguagem, celebra esse poder e essa sabedoria que o capitalismo hoje quer destruir. Minha visão aqui difere da concepção bakhtiniana do corpo pantagruélico, como imaginado por Rabelais na França do século XVI — um corpo que se expande além de sua pele, mas por meio da apropriação e da ingestão de tudo o que há de comestível no mundo, em uma orgia de prazer sensual e liberação de todas as restrições. Minha concepção é igualmente expansiva, mas de uma natureza diferente. Pois o que ela encontra, ao ir além da pele, não é um paraíso culinário, mas uma continuidade mágica com os outros organismos vivos que povoam a Terra: os corpos dos humanos e dos não humanos, as árvores, os rios, o mar, as estrelas. É a imagem de um corpo que reúne o que o capitalismo dividiu, um corpo não mais constituído como uma mônada leibniziana, sem janelas e sem portas, mas que se move em harmonia com o cosmos, em um mundo no qual a diversidade é uma riqueza para todos e um terreno de comunhão, e não uma fonte de divisões e antagonismos.