Por Jorge Carrión
Publicado originalmente em France Culture
Por vários anos, sustentei a ideia de que a ficção científica é o novo realismo. Devo admitir, porém, que nós, autores desse gênero literário, fracassamos. A distopia não se originou de uma hecatombe nuclear, de um ataque terrestre, de uma mudança entre universos paralelos ou de um apocalipse zumbi, como prevíamos, mas uma epidemia viral.
Ninguém sabia como antecipar a pandemia que colocou o século XXI em quarentena. Quando, em meu romance Los huérfanos [Os órfãos], imaginei o confinamento de um grupo de sobreviventes em um abrigo após a Terceira Guerra Mundial, a causa desse desastre foi um aumento excessivo da adoração ao passado e da memória histórica que levou a um ressurgimento global do nacionalismo violento.
Em outras palavras, imaginei um futuro a partir do século XX. O século XXI, com o Onze de Setembro e a covid-19, inventa suas próprias formas de desastre sem precedentes.
Nem mesmo Charlie Brooker, criador da série Black Mirror, conseguiu imaginar o SARS-CoV-2: um vírus ciborgue, um vírus viral, um fenômeno que se espalha rapidamente tanto nos corpos como nas telas.
Desde o início das medidas de isolamento, há uma grande produção midiática na internet ligada à pandemia. No Twitter, em 24 de fevereiro, surgiu a conta humorística @CoronaVid19, que possuía, em alguns dias, 750 mil seguidores. Na indústria do pornô, nasceram criações que combinavam sexo, máscaras e quarentena. E, finalmente, na imprensa, o número de dários literários do coronavírus explodiu, certamente com mais escritores do que leitores.
Em 2020, no entanto, nenhuma série, nenhum fenômeno midiático, nenhum meme será tão viral quanto o próprio coronavírus. Ele conseguiu monopolizar nossa atenção nos mundos físico e virtual, em supermercados e transportes, em redes sociais e televisões. O vírus é uma realidade híbrida: meio biologia, meio pixel.
A contenção incentiva mais pessoas do que nunca a consumir mais conteúdo na internet, acelerando a transição digital. Embora muitos de nós gostemos de ler no papel, porque temos uma grande biblioteca em casa, muitos outros usam e-books, passam milhares de horas em plataformas e se acostumam a usar Zoom, WhatsApp ou Siri para se comunicar.
Sinto que, assim como há menos pesquisas sendo feitas para curar o câncer agora do que há um mês, porque todos os esforços estão focados no SARS-CoV-2, também haverá indústrias que receberão menos recursos do que outras. E aqueles que mais perceberem serão aqueles que serão vinculados a plataformas e algoritmos.
Assim, enquanto meu livro Los huérfanos imagina um futuro atualmente improvável, meu ensaio Contra Amazon de repente assume um caráter quase profético. Neste ensaio, chamo a atenção para o perigo representado pelo acúmulo de dados e recursos da corporação criada por Jeff Bezos. Embora ele já fosse o homem mais rico do mundo antes da crise, o capital que sua empresa está acumulando durante a emergência global da pandemia, tanto econômica quanto em termos de dados, é extraordinário.
A Amazon agora é muito mais poderosa do que qualquer outra marca, empresa ou grupo do mundo, mesmo na história. Assim como a pandemia, é um ator global; e não é coincidência que sua trajetória nos últimos 25 anos coincida exatamente com a do conceito de viralidade.
É possível que a Amazon seja o primeiro vírus ciborgue, pois alcançou, em uma velocidade ultraviral, todas as dimensões físicas e virtuais do mundo. É a empresa que melhor representa a hiperconexão global que fez da covid-19 a primeira pandemia do século XXI. Simultaneamente realidade e símbolo, a Amazon é uma criação inteiramente humana.