‘Odeio odiar’: hipóteses sobre como Hiroshima viu seus algozes

Segue um trecho de Hiroshima está em toda parte, de Günther Anders, em pré-venda com desconto no nosso site. Trata-se do segundo livro do autor lançado pela Elefante (antes: Nós, filhos de Eichmann). Aqui, os textos que compõem a edição abordam o advento do autoextermínio e a responsabilidade de cada ser humano pelos acontecimentos monstruosos que marcaram o século XX. Esse trecho está na primeira parte da livro, “O homem sobre a ponte”, um diário escrito pelo autor.

Por Günther Anders

Odeio odiar. E odeio aqueles que me obrigam a odiar. Se odiei Hitler, então também foi porque ele me obrigou a odiar; a ser capaz de odiar; a ser capaz de odiar incessantemente.

Mas aqui há muito pouco disso para o meu gosto. Eles falam da catástrofe como se estivessem se referindo a um terremoto, a uma inundação ou a um sol que explodiu. Sua insistência em poupar os assassinos, ocultar que o fato foi uma criação humana e não guardar o menor rancor — embora tenham sido vítimas do maior crime —, é demasiada e não está correta. É impensável que cada membro do grupo aleatório de vítimas que esteve sentado diante de nós essa noite seja um gênio do amor, do cuidado ou da sabedoria. O que está acontecendo? O que há por trás disso?

Primeira hipótese: os primeiros interessados que apareceram como entrevistadores das vítimas eram de delegações americanas, ou seja, vitoriosos, ou seja, “assassinos”. Por essa razão, os depoentes tiveram de encontrar ou inventar, à época, um modo de relatar que considerassem aceitável; que supunham poder expor tanto a seus ouvintes quanto a si mesmos sem se machucarem.

Desse modo, acho possível que essas versões surgidas nos primeiros relatos tenham se transformado em modelos continuamente usados pelos depoentes, sem modificá-los de maneira essencial. Também é possível que eles logo se lembrassem apenas dessa narrativa. Afinal, a relação entre a lembrança e o relato é reversível. Quer dizer: não só vale que a pessoa relate o que lembra como também que a pessoa só se lembre do que fixou uma vez (ou várias vezes) por meio de seus relatos.

Caso essa primeira hipótese esteja correta, então os americanos conseguiram — tendo isso em mente ou não — marcar as lembranças daqueles que se lembram a seu favor. Contra essa hipótese, entretanto, está a timidez com a qual as lembranças foram apresentadas.

Segunda hipótese: as vítimas não “vivenciaram” a catástrofe como tal, independentemente de quão estranho isso possa soar; apenas a vida que havia antes da catástrofe e a vida ou a morte que lhe sucedeu, mas não o raio no meio. Esse foi terrível demais, apareceu de repente e de maneira muito súbita, e também passou, de modo que não conseguiram apreendê-lo como tal. Essa impossibilidade de apreender se mantém, pois até agora eles não conseguem resumir ou nomear o acontecido, ainda costumam circundá-lo com um “it” (“Then it happened”). Talvez se trate de um eufemismo.

Terceira hipótese: o raio não foi entendido como uma ação do assassino. Porque não havia mais nenhum inimigo visível. O que sempre se ressalta hoje: o fato de o inimigo ter se tornado anônimo permanece insuficiente como caracterização e é antiquado. A verdade é que hoje não se vê mais nenhum inimigo: e que já no caso de Hiroshima não havia nenhum à vista. Por esse motivo, não houve a convergência do golpe com o golpeador; por isso nem se tentou fazer essa convergência. E, por isso, as vítimas permaneceram sem ódio.

Caso essa terceira hipótese esteja correta, então provavelmente também seja hoje, quer dizer, no futuro próximo e no distante, a mais séria. Na era dos foguetes de longa distância, é provável que nada mais seja visível: nem o atacante; nem a arma; nem o “golpe sem golpeador”. E, como a destruição vai ocorrer num átimo e destruir tudo, nem mesmo o efeito do golpe.

Mais importante, o mundo de amanhã se tornará mais invisível e, portanto, seus eventos serão inimputáveis. (Não apenas como se diz, no geral, atualmente: imprevisíveis.) Tudo acontecerá com um “álibi”. Quer dizer: aquele a ser atacado estará sempre em “outro lugar”, não no lugar do criminoso, não no lugar do crime, já que este é iniciado pelo pressionar de um botão e se encontra em outro lugar. Agredido e agressor estarão tão distantes um do outro que o agredido será incapaz de se enxergar como vítima de um crime. Enquanto antigamente qualquer “local do crime” era, ao mesmo tempo, o local do criminoso e da vítima, da ação e do recebimento da ação, ele está agora dividido em dois lugares. Essa divisão é uma das “condições de existência” da cisão de consciência do ser humano atual. Hoje em dia, não apenas a alma do ser humano é “esquizoide” como também os próprios acontecimentos.

Essas reflexões valem mais ou menos para cá, para Hiroshima. Supondo que o avião que lançou a bomba teria sido visto (e provavelmente foi visto por uma ou outra pessoa), associar esse ponto minúsculo zunindo no céu com a catástrofe sem limites que se sucedeu foi uma demanda psicológica excessiva, impossível — e continua sendo até hoje.

Quando um homem ergue seu punho para baixá-lo sobre mim, o gesto, o ato e o efeito formam um todo que vivencio de antemão como um nexo causal. Os sentimentos correspondentes às fases da ação — susto, defesa, raiva etc. — também formam um todo imediato. Não é preciso construir especificamente essas relações.

Essa vivência imediata de nexos e esses nexos de vivência nos foram roubados. Preparação, ato e efeito estão separados, e não apenas do ponto de vista espacial. Aquilo que percebemos permanece sempre um fragmento: ou é apenas a preparação ou apenas o efeito. E isso vale justamente para as situações mais importantes, ou seja, para aquelas nas quais decidimos sobre ser ou não ser, ou aquelas que se referem ao nosso próprio ser ou não ser. Essa mutilação da percepção corresponde à mutilação de nossas emoções. O que não sei, não me atinge.

Sem testemunhar seu efeito sobre a vítima, nossos sentimentos não conseguem elaborar aquilo que preparamos; sem que tenhamos visto os gestos de preparação do criminoso, nossos sentimentos não conseguem elaborar aquilo que nos atinge. Aqui em Hiroshima, lidamos com essa impossibilidade de elaboração. E, por esse motivo, as vítimas não conseguem odiar.

Isso não quer dizer que as vítimas de Hiroshima não saibam quem causou a catástrofe, quem são os culpados. Eles sabem. Mas seu saber não tem peso emocional, pelo menos não tem consequências. Quando os soldados americanos entraram no país, após a capitulação, oferecendo chocolates e chicletes às crianças, sua condição de “criminosos” permaneceu irreconhecível aos japoneses. Algo não apenas compreensível, mas em certa medida até justificável. Pois igualar esses rapazes com aqueles homens que ordenaram o lançamento da bomba seria moralmente errado. Quero dizer outra coisa: há o perigo de a invisibilidade do culpado tornar a culpa invisível. E isso na medida em que seja possível ainda falar de “perigo”. Pois se trata de um fato consumado: a falta de ódio aqui corresponde à consciência absolutamente limpa lá, na residência de Truman. Ambas as pontas andam juntas. A falta de verdade da situação é simplesmente espantosa. No exato instante em que o mundo se torna apocalíptico — por nossa causa —, acontece um instante de fata morgana, a visão de um paraíso habitado por assassinos despreocupados e vítimas sem ódio. Em nenhum lugar há sinal de maldade, apenas escombros. Mas esse amor generalizado não passa de defeito; nada além da terrível consequência de nosso estado tecnológico; a consequência do fato de que a destruição da “cena do crime” nos tornou incapazes de apresentar os sentimentos que seriam adequados à facticidade de nosso mundo.

 

Também o delegado S. notou — ele está quase perplexo — que os relatos das vítimas não contêm nenhuma palavra contra os americanos. Mas sua interpretação é totalmente diferente. É cristão. E, como cristão, está profundamente envergonhado de que num país de minoria cristã reine um grau de falta de vingança inédito na Europa cristã. Considero sua vergonha infundada. É difícil dizer que a população da Alemanha tenha sido vingativa contra as tropas de ocupação que entravam no país. Mas também não podemos afirmar que sua mentalidade fosse cristã à época. Lá também crime e criminoso não eram mais vistos juntos; lá também o “disfarce”, a “identificação”, haviam se tornado irrealizáveis.

Foto: U.S. National Archives

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